Cotado para o Oscar, “Mank” é atração da Netflix

Longa de David Fincher resgata a história do roteirista Herman J. Mankiewicz, que teria escrito sozinho o roteiro “Cidadão Kane”


Por Júlio Black

17/12/2020 às 07h00

Gary Oldman interpreta o roteirista Herman J. Mankiewicz no longa de David Fincher (Foto: Divulgação)

“Cidadão Kane” é considerado por grande parte dos cinéfilos, crítica especializada e daqueles que vivem do cinema como o melhor filme de todos os tempos, entre outros motivos pela revolução cinematográfica orquestrada pelo então estreante diretor Orson Welles, que também interpretou o protagonista.

Na época, entretanto, o longa venceu apenas um dos nove prêmios do Oscar a que foi indicado, o de roteiro original, dividido por Welles e Herman J. Mankiewicz, escritor que é o protagonista de “Mank”. Dirigido por David Fincher, o filme estreou na Netflix no último dia 4 já cotado como concorrente na próxima edição do Oscar.

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A produção demorou quase três décadas para encontrar um estúdio disposto a encarar o projeto. O roteiro foi escrito na década de 1990 por Jack Fincher, pai do diretor, que morreu em 2003 sem ver sua história filmada. O principal motivo é que David tinha planos ambiciosos para o longa, como filmar em preto e branco e com uma estética que remetesse aos filmes da época do próprio “Cidadão Kane”.

O que levou pai e filho a se interessarem pela história é a polêmica que persiste até hoje sobre a autoria do roteiro de “Cidadão Kane”. Tanto Welles quanto Mankiewicz reivindicavam para si a autoria exclusiva, com o outro sendo apenas o colaborador. “Mank”, porém, não é uma cinebiografia tradicional, que mostraria o duelo entre a dupla sobre a paternidade do trabalho: Orson Welles, interpretado por Tom Burke, pouco aparece em cena; aqui, o objetivo é mostrar a história pelo “ponto de vista” de Mankiewciz, em interpretação de Gary Oldman que deve ganhar indicação ao Oscar.

Um esquerdista em uma Hollywood conservadora

O filme, aliás, usa o mesmo recurso de flashbacks de “Cidadão Kane” para mostrar o caminho que levou o roteirista a escrever o maior dos clássicos da sétima arte. Isolado em um rancho após um grave acidente automobilístico, Mank é pressionado a escrever a história em tempo recorde depois de ser avisado que terá apenas 60 dias para concluir o texto, ao invés dos 90 dias acordados previamente.

Entre uma e outra crise de bebedeira do protagonista, o longa usa os flashbacks para viajar de volta à década de 1930 e mostrar a difícil relação de Mankiewicz com os estúdios de Hollywood, em especial o MGM do todo-poderoso Louis B. Meyer, a ligação da indústria do cinema com a política e como o personagem – esquerdista convicto, de personalidade forte, sagaz nas ruas respostas, viciado em álcool e na jogatina – passa de um dos grandes do seu ofício a persona non grata. Mas o principal destaque vai para a amizade do roteirista com a atriz Marion Davies (Amanda Seyfried) e, principalmente, o marido dela, o magnata da imprensa William Randolph Hearst (Charles Dance), que inspirou o atormentado, ambicioso e amargurado protagonista de “Cidadão Kane”.

Para Jack e David Fincher, conhecer as entranhas de Hollywood e do poder, fossem eles artísticos ou políticos, foram a matéria-prima para Mankiewicz escrever “Cidadão Kane”, e “defendem’ a tese de que ele – e não Orson Welles – foi o único autor do roteiro. Por isso, os flashbacks servem para mostrar os gatilhos que levaram o escritor a usar sua obra-prima para fazer sua crítica e também se “vingar” de seus desafetos.

Perfeito na técnica, falho na emoção

Estética e tecnicamente brilhante, “Mank” é um filme sobre uma Hollywood que não existe mais em suas qualidades e muitos defeitos, que era capaz de destruir talentos que não se ajustassem ao sistema. A escolha e insistência de David Fincher pelo preto e branco ajuda o espectador a se sentir como se estivesse assistindo a um filme dos anos 40, seja pela fotografia de Erik Messerschmidt, o uso do plongée e contra-plongée, os créditos logo na abertura, o uso do Cinemascope (técnica surgida anos depois de “Cidadão Kane”), a trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Finch, a profundidade de campo e até mesmo detalhes que hoje não mais existem, como a bolinha no canto superior direito para indicar a troca do rolo de filme.

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Alguns destes maneirismos poderiam estragar a experiência nas mãos de outros diretores, mas David Fincher, acostumado a transitar por gêneros tão distintos (ele é o diretor de “Se7en”, “Clube da Luta”, “A rede social”, “Os homens que não amavam as mulheres”, “Zodíaco”, “Garota exemplar” e “O curioso caso de Benjamin Button”), não se perde em meio às escolhas. Se há um defeito em “Mank”, talvez seja técnica demais e emoção de menos: apesar de ser uma cinebiografia, pouco há sobre a vida de Herman J. Mankiewcz. Conhecemos o que levou o roteirista a escrever “Cidadão Kane”, mas faltou a alma do homem que sofreu o diabo ao ser escanteado por Hollywood antes de criar seu trabalho definitivo.

Este detalhe, porém, não impede que Gary Oldman entregue na tela mais uma grande atuação, daquelas capazes de garantir, pelo menos, uma indicação ao Oscar. O mesmo vale para o restante do elenco, entre eles Amanda Seyfried, Charles Dance e Lilly Collins, que devem ser lembrados na temporada de premiações. “Mank” é, definitivamente, um “filme de Oscar”, e não será surpresa se acumular pelo menos uma dezena de indicações ao principal prêmio da indústria cinematográfica – mesmo que seja mais pelo virtuosismo que pela emoção.

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