‘A cultura não tem estatísticas’, aponta superintendente estadual

Em conversa com a Tribuna, Célia Corsino, Superintendente de Equipamentos Culturais do Estado, convidada para debate promovido pela Funalfa na última quarta (13), destaca os desafios das políticas públicas em cultura no país, em Minas e em Juiz de Fora


Por Mauro Morais

17/11/2019 às 07h00- Atualizada 18/11/2019 às 10h09

Tribuna – Como a senhora percebe a parceria público-privada em relação à cultura?
Célia Corsino – Tenho certeza de que hoje em dia sempre temos que ter parcerias público-privadas. Não conseguimos, nós, Governo, fazer nada sozinhos. Só que essas parcerias ficaram sendo um mote da desregulamentação e despreocupação do setor público para com os equipamentos culturais. Se formos ver essas parcerias, percebemos que o estado não deixou de aportar recursos, o que fez foi dar o básico e dizer que para o “plus” é preciso ir ao mercado buscar. Isso, de alguma forma, sempre foi feito. Na área de museus, da qual falo com mais propriedade, foi feito através das associações de amigos dos museus, com o governo mantendo e uma associação trazendo aporte de novos projetos que ajudam a caminhar. A partir dessa experiência, temos um modelo no qual se tem uma planilha de custo, faz-se uma licitação e transfere-se para o ente privado a manutenção e a gestão daquele serviço cultural. Isso é bom? É, mas o gestor público precisa entender que quando faz isso não se desobriga com aquele equipamento. São pouquíssimos os recursos que se consegue fora. Pegando o exemplo do que aconteceu com a Biblioteca Pública do Rio de Janeiro: ela funcionava das 7h às 22h, em três turnos, e, à medida em que o Governo estadual não passou mais os recursos, a empresa que ganhou a licitação não teve caixa para manter meses sem repasses e foi cortando os serviços a ponto de quase fechar a biblioteca. Deve haver um equilíbrio. Precisamos entender que temos ativos importantes.

A cultura ainda deve depender do Poder Público?
Acho que a gente não tem disponibilidade de recursos para manter fora do governo. Vou pegar outro museu do Rio de Janeiro: o Museu do Pontal, que é particular. É muito difícil ele sobreviver sem o aporte de algum recurso público, seja por meio de editais, seja por meio de financiamentos. Ele não é um museu público, é privado, mas faz um serviço público. Temos que despertar para saber o valor desses ativos que temos na área da cultura. Temos que potencializar, porque tem muita coisa subutilizada, espaços que podem ser usados com mais frequência e mais eficácia.

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Célia Corsino: “O Museu Mariano Procópio é um ativo da cidade que se usa pouco” (Foto: Carlos Mendonça/Funalfa/Divulgação)

Existe, hoje, um raciocínio vigente de que tudo deve ser monetizado, tudo deve gerar lucro, mas, na cultura, nem sempre isso faz sentido. Concorda?
Monetizar alguma coisa para cobrar um ingresso, ok, mas isso não quer dizer que tenha lucro. Os museus mais visitados do mundo, o MoMa, o Met, o Museu do Louvre cobram ingressos e não são baratos. Esse preço tem o mesmo impacto dos valores que cobramos aqui no Brasil, de R$ 10 e R$ 5, ou seja, quase nenhum impacto no orçamento. Essa é uma discussão muito grande. Pessoalmente acho que a gente deve cobrar um ingresso, nem que seja pequeno, porque tem que dar alguma coisa em troca. Entrega-se o folheto para o cara que comprou um ingresso e, naturalmente, ele não vai jogar aquilo no chão. Se ele ganha, quando for arrumar o museu, no final do dia, parte dos folhetos estarão lá, no chão. Cobrar é educativo e não quer dizer que deva ser R$ 50 um ingresso de museu. Qualquer nível de governo tem um compromisso com a educação de sua comunidade. E educação se faz por outros meios que não só a escola. Então, temos que dar acessibilidade, como, por exemplo, cobrar um ingresso a R$ 5 ou ter um dia livre. Algumas pessoas dizem: quinta-feira é livre. Mas quem vai ao museu quinta-feira à tarde? Tem que ser livre o sábado, mesmo que isso faça baixar a receita. Dar acesso à população como um todo é muito importante. Gratuidade e ônibus na porta são coisas que podemos fazer para contrabalançar o conhecimento, que não pode ficar restrito a um grupo só. Museus, bibliotecas e arquivos são repositórios do conhecimento, por isso é importante a gente ter uma política de acesso, que passa, muitas vezes, pela gestão. É um desafio. Estamos num momento de grande reflexão sobre o tipo de parcerias que temos. O caso do Museu do MAR neste momento, que fez o aviso prévio para todos os seus funcionários, nos convida a refletir.

“Monetizar alguma coisa para cobrar um ingresso, ok, mas isso não quer dizer que tenha lucro. Os museus mais visitados do mundo, o MoMa, o Met, o Museu do Louvre cobram ingressos e não são baratos. Esse preço tem o mesmo impacto dos valores que cobramos aqui no Brasil, de R$ 10 e R$ 5, ou seja, quase nenhum impacto no orçamento. Essa é uma discussão muito grande. Pessoalmente acho que a gente deve cobrar um ingresso, nem que seja pequeno”

Em Minas, como está a condição dos museus?
Não temos museu dessa condição de parceria público-privada no estado. Temos concessões, principalmente dos prédios da Praça da Liberdade (em Belo Horizonte). Não só em Minas, mas no Brasil inteiro, temos uma diminuição muito grande do fôlego de captação de recursos, e alguns museus estão se ressentindo muito por falta de recursos. Temos equipes sendo diminuídas, trabalhando com o básico, porque não conseguimos captar recursos como se fazia há dez, cinco anos, seja para o funcionamento dos órgãos, seja para restauração. O problema maior é que há cinco anos vemos, também, caírem os orçamentos oficiais, seja federal, estadual e municipal. Eles vêm caindo em todas as áreas, e na área da cultura vem caindo mais porque a gente não consegue mostrar toda a potencialidade do setor para um trabalho mais integrado com a comunidade. Muitas vezes o gestor administrativo não tem o entendimento da importância da área cultural e acha mais fácil cortar. A gente precisa manter os nossos espaços porque são eles que vão dar oportunidade para algumas comunidades. Acho fundamental que cultura e turismo se deem as mãos e saiam fazendo programas, mas se deem as mãos e não que se faça cultura em função do turismo. A cultura deve ser feita em função da comunidade que a cerca.

Como fazer esse trabalho de convencimento de que investir em cultura vale a pena?
Temos algumas experiências exitosas. O problema é que a área cultural, às vezes, não tem estatísticas. A gente faz muita coisa, mas mede pouco. Isso é da natureza da cultura. Não estamos preocupados com medição, mas hoje deveríamos. Minha tarefa é fazer a medição e mostrar como ficaria ruim se a gente não tivesse fazendo aquilo. Como é bom entrar num ônibus e ver um cidadão que acabou de pegar um livro numa biblioteca. Gosto muito de ler e vejo que hoje em dia as pessoas leem pouco porque acham que tudo está no celular, na internet. Não! A vida não está na palma da sua mão! Sei que a vida moderna não permite carregar um livro, mas as bibliotecas estão aí para isso. Nem todo mundo tem celular com 4G funcionando cem porcento. O povo brasileiro ainda é muito sofrido, e a gente sabe que, às vezes, as coisas não chegam nas comunidades como deveriam chegar. Por isso é tão importante trabalhar com patrimônio cultural de natureza imaterial, porque está no coração de qualquer comunidade. Não podemos fazer com que isso seja anulado por conta de uma cultura hegemônica. É preciso atuar com a diversidade.

“O povo brasileiro ainda é muito sofrido, e a gente sabe que, às vezes, as coisas não chegam nas comunidades como deveriam chegar. Por isso é tão importante trabalhar com patrimônio cultural de natureza imaterial, porque está no coração de qualquer comunidade. Não podemos fazer com que isso seja anulado por conta de uma cultura hegemônica. É preciso atuar com a diversidade”

Como garantir a existência desse patrimônio imaterial?
Falo da sustentabilidade. Porque vou colocar o pão alemão como patrimônio imaterial se não vou botá-lo para ser vendido? Se quem produz não tem ganho nenhum com aquilo? Temos que entender que estamos em outro momento, e não é de saudosismo ou lírico. Para sobreviver fazendo o seu pão alemão do jeito que ele é, você tem que ter mercado, não pode fazer só para você. Aí é que entram as políticas públicas. De que forma vou propiciar uma feira aos domingos de produtos tradicionais com uma barraca especial com aquele produto que é registrado como patrimônio? São pequenas ações que, juntas, fazem toda a diferença.

Ex-presidente do Iphan, a arquiteta e urbanista Jurema Machado, em entrevista recente à Tribuna, fez uma boa avaliação do patrimônio mineiro. Qual é a sua avaliação do nosso patrimônio?
Sou mineiroca, mineira e carioca, e estou em Minas por opção. Nasci no Rio de Janeiro, morei em Brasília e vim para Minas por escolha. Tenho casa montada em Belo Horizonte desde 2006. Hoje tenho meus netos aqui e sou cidadã de Belo Horizonte. Acredito que Minas é uma síntese do Brasil. Ficamos muito no quadrilátero ferrífero, mas temos que andar mais. A diversidade cultural mineira é imbatível. Temos todo o Nordeste do país no Norte de Minas. Temos o Sul, na região sul do estado. Temos o sudeste com a tecnologia de ponta. Tudo isso, junto e misturado. Aí é que reside a importância de Minas para o patrimônio nacional. E não é à toa que temos 60% do patrimônio histórico e artístico do Iphan tombado em Minas Gerais. São tombamentos desde 1938. Sete cidades mineiras foram tombadas naquele ano. Em Minas Gerais temos nove cidades enormes tombadas como patrimônio nacional, que vai do barroco até o modernismo. O mineiro é a conversa, o pão de queijo, o cafezinho, o forno a lenha, as quitandas, e esse modo de ser deve ser preservado, porque aqui estão os causos, e se perder isso perde-se a essência do estado. Essa consciência que temos hoje, e que não havia em 1938, mostra que evoluímos para algo mais inclusivo.

“O mineiro é a conversa, o pão de queijo, o cafezinho, o forno a lenha, as quitandas, e esse modo de ser deve ser preservado, porque aqui estão os causos, e se perder isso perde-se a essência do estado. Essa consciência que temos hoje, e que não havia em 1938, mostra que evoluímos para algo mais inclusivo”

Durante sua gestão à frente do Iphan em Minas, a senhora teve muito contato com o Museu Mariano Procópio. A instituição sempre foi alvo de uma discussão especulando se não seria melhor federalizá-lo ou transferi-lo ao Governo estadual. Com a sua experiência, a quem deveria pertencer o museu?
O Museu Mariano Procópio é muito importante. Ele mostra para muito além do acervo. Ele mostra a formação das elites brasileiras. O museu mostra a importância de Juiz de Fora e dos industriais da cidade num período crítico da história do Brasil, como foi o início da República e a dramática retirada da família imperial. Eles adquiriram as peças, muitas das vezes, em leilões, que foram feitos dos objetos da família imperial, com o sentido de mostrar o que foi o império brasileiro. Isso não deve ser federal, é uma coisa daqui. Foi um movimento feito pelo (Alfredo Ferreira) Lage aqui. A construção do museu é muito emblemática, fora a beleza que é. Sempre digo aos diretores que a restauração é uma sina e tem que acabar. É um símbolo muito grande esse museu. O Museu Mariano Procópio não é de ninguém, é da cidade de Juiz de Fora e está muito bem colocado assim. Dá um pouco mais de trabalho, porque os prefeitos acham que é tudo muito caro para manter, mas é um ativo da cidade que se usa pouco.

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“O Museu Mariano Procópio não é de ninguém, é da cidade de Juiz de Fora e está muito bem colocado assim. Dá um pouco mais de trabalho, porque os prefeitos acham que é tudo muito caro para manter, mas é um ativo da cidade que se usa pouco”

Sua saída do Iphan criou algum trauma? Como foi esse momento da sua carreira?
Senti muito por ter saído do Iphan da forma que saí. Mas entendo. Acho que quando a gente está num cargo comissionado, tem que estar preparado para sair. Só que antes haviam me dito que as coisas estavam resolvidas. Não pensei que fosse dar tanta repercussão, tive muito apoio. Tenho muita consciência do trabalho que vinha desenvolvendo. Eu abri frentes de trabalho, e elas estavam inconclusas. Minha preocupação maior era deixar o Iphan num momento de trabalho ainda não finalizado. Por exemplo, eu tenho um compromisso com a estação Leopoldina e já me comprometi com a Funalfa, batalhando para conseguirmos a restauração. Estava há dois anos para assinar um acordo de cooperação técnica com a UFMG para funcionarmos com um grande ateliê de restauração dentro do Iphan. Coloquei quatro pessoas do último concurso nesse laboratório. Gostaria que a superintendência pudesse assumir o tamanho de Minas Gerais dentro do cenário nacional. Mas é vida que segue. Queria mais alguns anos na superintendência, para terminar os assuntos que comecei, mas meu ciclo terminou. Para surpresa minha, 24 horas depois já estava sendo convidada para assumir uma superintendência nova na Secretaria de Cultura, com uma complexidade enorme e que no governo anterior eram três superintendências. Não tenho medo do trabalho e estou muito à vontade. Quero tirar a superintendência de uma ação só em Belo Horizonte, quero fazer com que o Museu de Crédito Real funcione e possa ser uma porta de entrada para outras ações nossas na área.

“Queria mais alguns anos na superintendência, para terminar os assuntos que comecei, mas meu ciclo terminou. Para surpresa minha, 24 horas depois já estava sendo convidada para assumir uma superintendência nova na Secretaria de Cultura, com uma complexidade enorme e que no governo anterior eram três superintendências”

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