O que pensa Ricardo Domeneck, que vem a JF após passar pela Flip

Escritor apresenta algumas de suas criações na tarde deste sábado, 18, às 15h, no Museu de Arte Murilo Mendes, onde lança sua estreia nos contos, “Sob a sombra da aboboreira” (7Letras)


Por Mauro Morais

17/08/2018 às 07h00- Atualizada 17/08/2018 às 07h23

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Radicado em Berlim, poeta paulista Ricardo Domeneck vem pela primeira vez a Juiz de Fora (Foto: Paul Mecky/Divulgação)

O poeta quer subir ao Morro do Imperador para, num ritual, reverenciar a memória de Murilo Mendes. Ricardo Domeneck não conhece Juiz de Fora, mas conhece Murilo, o que o faz saber do morro, das ruas e das palavras que povoam a cidade. O conhecimento seria limitado, não fosse o caso de Ricardo conhecer o autor de “A idade do serrote” e também os que se colocam a escrever e ocupar Juiz de Fora nos dias que correm. E é justamente nesse recorte de perspectivas, do cânone às surpresas do presente, que reside a literatura do poeta de 41 anos, autor de quase uma dezena de títulos, nascido na paulista Bebedouro e radicado em Berlim. Domeneck flerta com a tradição e se compromete com o experimento. Sua intenção é esgarçar a linguagem. Convidado para duas mesas da edição deste ano da Festa Literária de Paraty, a Flip, o poeta permaneceu no Brasil e apresenta algumas de suas criações na tarde deste sábado, 18, às 15h, no Museu de Arte Murilo Mendes, onde lança sua estreia nos contos, “Sob a sombra da aboboreira” (7Letras). Considerado como uma das mais potentes vozes da literatura contemporânea brasileira, Domeneck interessa-se pela oralidade e também pelos dilemas da escrita. Seu tesão é pela linguagem. E recusa a crise da poesia, certo de que seu desejo é partilhado numa cena tão complexa quanto ampla. Em tempos de homofobias saídas do armário, o poeta não silencia. Pelo contrário: enrijece sua atuação e não rejeita que seus poemas de amor, verdadeiros poemas de amor, sejam lidos em tom político. “Em verdade, em verdade vos digo: se eu houvesse nascido mulher, já teria dado à luz nove filhos de 11 homens distintos. Agora vivo entretido com as teorias a explicar esse meu gosto por certos odores específicos”, recitou, na Flip, seu anti-sermão sobre uma sociedade castradora, mas impotente diante da força da literatura, vigor representado por um calendário distendido no qual cabem Murilo e outros juiz-foranos que chegaram bem depois de sua partida. Em entrevista à Tribuna, Ricardo Domeneck é enfático: “Há gente produzindo coisas muito fortes tanto no Brasil como lá fora”.

Tribuna – Sua literatura inclui vídeo, performance e também texto. Como compreende essas muitas linguagens em sua produção?
Ricardo Domeneck – Sempre considerei meu trabalho essencialmente textual, de composição poética. Mesmo o trabalho em vídeo tenta trazer uma camada imagética para performances textuais. O vídeo, a gravação sonora e a página estão todos abertos agora como possibilidades de publicação, de tornar público, o que sempre entendo como participação na doação à comunidade da qual se faz parte. Essas novas tecnologias têm tanto criado novas possibilidades como reaberto caminhos para traduções arcaicas da poesia como voz e como performance.

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De que maneira a vivência dentro e fora do Brasil impacta sua escrita?
A vivência fora do país e em especial fora da língua em que se produz traz várias transformações. Há o aspecto simples de ser confrontado com outras tradições e outras práticas. Estar cercado por outra língua, em especial uma língua tão diferente do português quanto a alemã nos torna ainda muito consciente de certas particularidades da nossa própria língua. Eu creio que me tornei muito mais consciente da sonoridade do português brasileiro e de sua estrutura sintática (e as possibilidades criativas nesses aspectos) por estar cercado todos os dias por outra língua. Berlim agrega muitos artistas estrangeiros, na música, nas artes visuais e também na literatura. Mas nós escritores, por trabalharmos na e com a língua, parecemos estar mais ligados a nossos contextos nacionais, talvez. Ainda que eu more na Alemanha, quando escrevo é primeiramente na tradição e no público brasileiros que eu penso.

“Ainda que eu more na Alemanha, quando escrevo é primeiramente na tradição e no público brasileiros que eu penso”

Qual o lugar de Murilo Mendes em suas referências? O que mais te toca na obra dele?
Quando comecei a me formar na década de 1990, a obra de Murilo Mendes não parecia estar no centro das discussões do Brasil, até sua obra voltar a circular com a publicação de sua poesia completa em 1994. Meus colegas de geração pareciam dialogar especialmente naquele momento com as obras de João Cabral de Melo Neto e Augusto de Campos. Eu me sentia um estranho no ninho, já que tinha em Murilo Mendes e Hilda Hilst minhas referências. A poesia muriliana me ensinou a pensar imageticamente e confiar no elíptico. Além disso, vindo de uma família bastante religiosa, as relações corporais de Murilo Mendes e Hilda Hilst com o misticismo foram essenciais para mim.

Por falar em Hilda Hilst, falemos da Flip, que a homenageou este ano. Sua performance numa das mesas da qual participou foi dedicada a Dandara dos Santos. Num dos trechos de sua apresentação você disse: “Brasil: máquina de moer carne, de moer gente”. De que forma essa atualidade alimenta sua poesia?
Poetas trabalham com a língua, um bem comum, cordão umbilical com a comunidade. O contexto histórico sempre alimenta a linguagem e o poeta que bebe nela. É inescapável. Cada poeta lidará com isso da sua maneira, até mesmo tentando desligar-se do contexto histórico e político. Mas não se pode falar uma língua e não ligar-se com ela a sua pólis.

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Domeneck participou de duas mesas na edição da Flip deste ano (Foto: Divulgação)

E qual é o papel social do poeta, do escritor, na contemporaneidade?
Eu fico tentado a responder como Clarice Lispector naquela entrevista (de 1977, na TV Cultura): “O de falar o menos possível”. Eu acredito que mesmo que a longo prazo, o trabalho poético pode ter efeitos sobre a língua, que pertence a todos, e isso gera responsabilidades. Além disso, eu sei o quanto alguns poetas brasileiros mudaram a minha vida e minha forma de ver o mundo. Se é possível ter este efeito sobre uma única pessoa, positivamente, já está justificado politicamente o trabalho de um poeta. William Carlos Williams escreveu: “It is difficult / to get the news from poems / yet men die miserably every day / for lack / of what is found there.” (É difícil obter as notícias de poemas e no entanto homens morrem de forma miserável todos os dias por falta do que lá se encontra)

Você está envolvido na organização de uma antologia de poesia queer internacional para a Companhia das Letras. Como você encara as vozes conservadoras do Brasil neste momento?
Essas vozes conservadoras não surgiram do nada. Elas sempre estiveram entre nós. E são as vozes de nossos concidadãos. Nós todos teremos que aprender a conviver uns com os outros. Política é a arte da convivência. A política surgiu no primeiro momento em que duas pessoas se perguntaram: como conviver sem nos matar um ao outro? Isso é assunto para um longo colóquio. O que geralmente penso é que a poesia, com sua força de outridão, sua potência de subjetivar o outro, pode nos ensinar a conviver, a sentir na pele o que o outro sente. Estou certo de que nos mataríamos menos se nos colocássemos em mais sapatos poéticos de gente que nos é outra.

“Essas vozes conservadoras não surgiram do nada. Elas sempre estiveram entre nós. E são as vozes de nossos concidadãos. Nós todos teremos que aprender a conviver uns com os outros. Política é a arte da convivência”

Este ano você resgatou a produção poética da Hilda Machado, uma cineasta e professora cuja literatura ainda se mantinha bastante desconhecida do grande público. O que há de urgente em Hilda?
Em primeiro lugar, simplesmente pela qualidade dos textos de Hilda Machado, que vêm deixando muitos leitores felizes desde que saiu “Nuvens” (São Paulo: Editora 34, 2018). Há ainda uma potência de sarcasmo em sua poesia que nos ajudaria a driblar certos desesperos.

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Foto: Reprodução

“Sob a sombra da aboboreira” é seu primeiro livro de contos. Escrever diferentes gêneros textuais exige procedimentos diversos?
O livro é na verdade bastante híbrido. Há textos que são contos em sua acepção mais definida, há textos que se aproximam mais do que chamaríamos de crônica, jogos com a noção de parábola e poema, e até mesmo um sermão. Imagino que mesmo nesse livro de prosa minha relação com a linguagem seja de poeta. Mas prefiro deixar que os leitores decidam.

Por fim, volta e meia retorna à cena as discussões acerca de um possível revigoramento da poesia no cenário cultural brasileiro. Qual é a sua leitura desse terreno literário?
O que se precisa parar de fazer é dizer que a poesia está em crise porque não vende. Isso sequer é verdade, como vimos no Brasil com Paulo Leminski e outros poetas no cenário internacional hoje. Há gente produzindo coisas muito fortes tanto no Brasil como lá fora. Mesmo no cenário das artes visuais, houve nos últimos anos uma explosão de interesse pela poesia como arte. É importante que a imprensa tente fazer chegar aos leitores esta produção. Com seu poder de síntese, a poesia ainda traz muita alegria para muita gente necessitada. É minha crença, e pretendo seguir escrevendo poemas até bater com as botas ou ficar gagá.

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Trapezista bambo sobre a rede social dos silêncios de um menino

Faço diligente meus autorretratos
e espero que ele erga o polegar
em público, qual um césar decida
que eu posso viver um dia a mais
na arena em que nos digladiamos.
Ao fim do mês, tabelo e analiso
a informação dos seus gostos
e desgostos, estes últimos
interpretados de seu silêncio
que é, em si, o meu desgosto:
ele não gosta deste cabelo,
ele não gosta desta pose,
ele não gosta deste rosto,
mas ele gosta deste casaco!
Talvez um dia ele desça o polegar
e gládios de estranhos
me trespassem
e não afinal a sua glande,
ou abandone de todo estes sinais
mudos, esta fumaça sem fogo,
estes pombos-correios casmurros.
Mas quem sabe, ai loteria!, ele
até mesmo, apesar de tão jovem,
seja ensinado que o telefone
foi inventado para hábitos antigos,
conversas! imaginem! ouvir vozes!
Quando então leve ao bucal a boca,
eu saberei como pentear o cabelo,
que pose não assumir no corpo,
que rostos esconder no rosto.
E estará limpo aquele casaco.

Berlim, 23 de novembro de 2017.

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