Reformas modernas
Quando o historiador José Luiz Stehling foi morar na casa da esquina das ruas Bahia e Herculano Pena, no Poço Rico, havia um afresco pintado por Edson Motta na fachada, bem como uma parede toda encerrada com tijolos vazados. Tanto a parte externa quanto a planta exibiam a influência da composição do pintor holandês Mondrian, com linhas criando retângulos. Dois telhados em meia água se encontravam ao centro, com uma calha, formando um “M”. Já quando Maria José de Oliveira Bento comprou o imóvel da família de Stehling, nos anos 1990, tudo estava no lugar, mas já bastante deteriorado. Segundo ela, logo ao chegar, foi preciso aumentar as portas de acesso, pelas quais mal passavam seus móveis e eletrodomésticos. Pouco a pouco, ela foi fazendo com que a edificação servisse a seus anseios.
Hoje, quando Maria José coloca a casa à venda, resta apenas o formato da fachada. Tudo mudou. “De antigamente ela não tem mais nada. Não era funcional”, comenta a aposentada de 57 anos, que com o casamento dos filhos percebeu que os quatro quartos eram demasiado grandes para a família que se apequenou. Projetada no início da década de 1950, por Arthur Arcuri, juiz-forano que foi um dos maiores nomes da arquitetura do movimento moderno no país, a residência é um dos muitos exemplares a confirmar o atual problema de descaracterização dos imóveis que ajudam a contar a história recente da arquitetura na cidade.
“Em Juiz de Fora, a produção da arquitetura moderna remonta o final da década de 1940, período no qual o estado vivia grande desenvolvimento econômico e industrial e de valorização do seu cenário urbano através da elaboração de projetos por nomes em destaque na arquitetura brasileira. É exatamente neste momento que se introduzem as vertentes do movimento moderno, particularmente o Edifício Banco do Brasil e o Edifício Clube Juiz de Fora”, destaca a professora do departamento de arquitetura e urbanismo da UFJF Raquel von Randow Portes, referindo-se ao prédio projetado por Oscar Niemeyer, na esquina da Getúlio Vargas com a Halfeld e o outro, projeto de Francisco Bolonha, na esquina da Halfeld com a Rio Branco.
Contra o tempo
De acordo com Marcos Olender, professor do curso de história da UFJF e presidente do núcleo local do Departamento de Minas Gerais do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-MG), “coube aos modernistas uma participação decisiva na institucionalização da preservação do patrimônio no Brasil, e várias edificações modernistas foram tombadas, inclusive, logo após a sua finalização, como é o caso da Catedral de Brasília, de autoria de Niemeyer. “Cabe lembrar, também, do tombamento do conjunto modernista da cidade de Cataguases”, acrescenta, apontando para a decisão do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que reconheceu, em 1994, o valor cultural de manifestações e monumentos.
Contudo, ainda que siga como exemplar da política protecionista no país, a cidade sofre com a descaracterização de casas simples, em bairros que circundam o Centro. São muitas as residências de influência modernista que ajudariam a contar uma história ainda mais ampla, mas hoje ostentam esquadrias de alumínio no lugar das janelas de madeira. Maria José, que hoje mora na casa projetada por Arcuri, também desistiu de gastar altas cifras com conserto das janelas, além de muitas vezes não encontrar as peças, algumas já extintas.
Segundo Raquel von Randow Portes, a madeira tem sido utilizada largamente ao longo do tempo, o que a fez constante em diversas tendências arquitetônicas. “Para que ela tenha uma boa durabilidade, assim como outros materiais, são necessárias ações de manutenção. Tudo que não recebe manutenção nem conservação está fadado à degradação. A troca da madeira por outro material dentro de imóveis de valor patrimonial é questionável, principalmente no tocante à autenticidade do bem”, comenta.
Além das madeiras, Maria José também substituiu a defasada instalação hidráulica e elétrica, os tacos antigos, a pedra que calçava a área de entrada e o muro, pequeno demais diante de uma cidade em crescente risco de violência. Para a aposentada, que ainda trocou a cozinha pelo quarto, era preciso fazer com que sua casa lhe servisse da forma que precisava. “Como esses imóveis são pensados para serem funcionais atendendo as necessidades da época quando foram construídos, com as mudanças dos hábitos de morar, pode acontecer de algo que funcionava bem em uma época não funcionar tão bem em outra. Geralmente isto ocorre mais nas arquiteturas (como as modernistas) que têm uma preocupação específica em serem funcionais”, explica Olender.
O que vale ou não
Apesar de diferentes projetos de Arthur Arcuri terem sido tombados nos últimos anos, além dos monumentais prédios de Bolonha e Niemeyer, casas simples, capazes de contar o cotidiano de um tempo em suas linhas e formas, permanecem desprotegidas, correndo o risco de desaparecerem da paisagem urbana. “É natural que, com um maior distanciamento de tempo em relação à produção desta arquitetura, ela se torne mais valorizada, porem isso não é uma regra”, pontua Raquel Portes. “Hoje em dia, os critérios que privilegiavam bens imóveis, móveis ou integrados muito antigos ou de caráter excepcional já foram revistos, e temos a preservação de vários bens que são identificados como importantes não só pelo seu valor artístico, mas também por sua dimensão histórica em relação à comunidade onde se localizam e que sejam importantes também como referência cultural e, mesmo, afetiva, para estas comunidades”, pondera Olender. “Existe, há algum tempo, a preocupação com a preservação do patrimônio moderno. Pesquisas, associações, encontros e publicações que tratam sobre o tema não são raros e tem se tornado cada vez mais frequentes. Um exemplo é o Docomomo (Documentation and conservation of buildings, sites and neighborhoods of the Modern Movement), movimento internacional com 25 anos de fundação e sedes em diversas nações (como o Docomomo Brasil)”, completa Raquel.