Fios brancos na plateia
Dona Adelia Bassani, 68 anos, estava só. Era uma tarde de quarta-feira. Seu companheiro de quase meio século de união não a acompanhava como de costume. Fisicamente, apenas. Cumprindo um pós-operatório, José Paulo da Silva, 74, havia ficado em casa. “Adelia, não esquece de falar de mim. Boa sorte”, disse ele à mulher, que, assentada em uma das salas do Forum da Cultura, relembrava os idos de 1984, quando chegaram a Juiz de Fora e, aos poucos, se integraram ativamente na vida artística da cidade. A terra que os acolheu é a mesma que escolheram para envelhecer, assim como outros cerca de 70 mil idosos que, segundo dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), colocam o município como o terceiro do país com maior concentração de pessoas na terceira idade, atrás somente de Porto Alegre e Rio de Janeiro.
Foi no berço de Murilo Mendes que Adelia passou a dividir as funções de dona de casa e de atriz e também a se reconhecer como público, frequentando teatro, cinema e shows. Contudo clama por mais acesso à programação. “A gente sente que precisa de mais. A população de idosos é grande e tem muita carência. Às vezes, fico sabendo de algo quando já passou, falta divulgação diretamente para nós. Nem todos têm acesso à internet”, afirma ela, ressaltando que demorou 15 anos para descobrir que a Casa de Cultura da UFJF oferecia um curso de atualização em conhecimentos gerais.
‘Muitos querem consumir’
Pelo bichinho do teatro, Adelia e José Paulo foram mordidos em 2000, e não demorou muito para que eles experimentassem a sensação de fazer parte do Núcleo de Terceira Idade do Grupo Divulgação. Lá se vão 15 anos, dezenas de espetáculos teatrais, gravação de comerciais e produções cinematográficas. Se a promessa do marido era de que eles fariam um curso superior quando a aposentadoria se realizasse, assim foi feito. Como ouvinte, os dois fizeram todo o curso de serviço social da Universidade Federal de Juiz de Fora. “Como diziam os colegas de sala, éramos os ouvintes mais falantes que havia. Fomos nome de turma e tudo”, brinca ela, esbanjando a mesma vitalidade exibida nos palcos. Adelia aponta para a necessidade de uma melhoria na acessibilidade aos espaços culturais. “Muitos querem consumir, mas têm dificuldades de se locomover. Com isso, acabam não desfrutando das opções ofertadas.”
A disposição para a arte do casal parece coincidir com a nova realidade que se apresenta para a terceira idade no país. “Existe um grupo novo de velhos e, principalmente, velhas, que é muito diferente, que consomem muito mais livros e jornais. As mulheres, especialmente, têm atividades culturais bastante intensas, muito mais diferenciadas do que os jovens. Elas vão a diferentes peças de teatro, concertos, viajam, têm grupos de amigas que estimulam a vida social. Elas são curiosas”, destaca a antropóloga Mirian Goldenberg, autora de “A bela velhice”, livro que reúne o resultado de uma pesquisa realizada com mais de 1.700 idosos brasileiros.
‘Quero, apenas, curtir’
Aos 75 anos, costureira aposentada há 21, Edna de Moraes Pinheiro “não gosta de ficar em casa”. Por isso, preenche sua agenda diária com aulas de ioga, ginástica e idas ao Centro de Convivência do Idoso e ao Sesc. Com frequência, viaja com as amigas. “Só faço o que me dá vontade”, diz. Waldemar Tavares da Costa, 79, também. Aposentado como representante comercial aos 51, ele se diz, entre uma partida de sinuca e outra, satisfeito. “Não há mais nada que queira fazer. Quero, apenas, curtir a vida que ainda tenho”, conta o homem de cabelos grisalhos. O salão da Espírito Santo 434, mantido pela Prefeitura, eles dividem com outros tantos colegas de idade, entre eles Nair de Paiva Pereira, 92, que há 27 anos frequenta o centro cujo nome homenageia a mãe do presidente Itamar Franco.
Dona de uma vitalidade surpreendente, Nair dança com uma amiga no baile promovido pelo espaço e se esquece, por alguns instantes, dos quatro filhos que já viu partir. Viúva desde os 47 anos, a pensionista sai de ônibus de sua casa no Bairu “para se distrair”. “Sou de muita gente até 18h. Depois desse horário, fecho a porta”, brinca. De acordo com Deborah Farah Delgado, psicóloga do Centro de Convivência do Idoso, que tem uma presença diária de 300 pessoas, são os próprios usuários quem geram as demandas de atividades, e o interesse é sempre maior do que a possibilidade de oferta. “O que oferecemos já apresenta uma lotação esgotada. Hoje eles precisam fazer uma opção, não podem escolher mais de uma atividade, para conseguirmos atender um número maior”, aponta.
Entre jogos de baralho, sinuca, dama, dança, ginástica e bailes, o lugar oferece, também, oficina de artes visuais. “Anoto em meu caderno o que eles querem. Meu planejamento de trabalho parte deles, que trazem uma bagagem muito grande”, comenta a professora de artes Luciene da Silva, que ainda conta, com os olhos brilhando, sobre o projeto “Mestre por um dia”, no qual os usuários do espaço ensinam seus colegas uma receita ou exercício do qual se orgulham. Além do espaço físico, ainda diminuto diante da grande população de idosos da cidade – o centro atende menos de 10% dos idosos locais, considerando os seis mil inscritos no local -, faltam ofertas para uma demanda reprimida. “Queria ver mais atividades. Faltam aulas de dança contemporânea, coral”, pontua Edna, dizendo-se contente com o que encontra.
‘Todo mundo é velho’
Atualmente, o CEU da Zona Norte oferece, especificamente para esse público, aulas de artesanato, danças urbanas, caminhadas orientadas e ginástica. Para os idosos atendidos pela Amac, a sessão das 14h aos sábados é gratuita. Da mesma maneira, o Sesc oferta reuniões, esportes adaptados, palestras, cursos, passeios e encontros dançantes.
Conforme aponta Mirian Goldenberg, a terceira idade se adapta facilmente ao que é posto, o que não indica que seus desejos estejam saciados. Muito pelo contrário, segundo ela, ainda falta observar o velho como público em potencial, já que desfrutam de agendas mais flexíveis e vidas financeiras mais estáveis. E o exercício de percepção não deve partir dessa plateia com seus fios brancos, mas de quem está no palco ou atrás dele. “Na verdade, a única coisa que todo mundo é é velho. Hoje ou amanhã. Ricos, pobres, negros, brancos, judeus, católicos, todos são velhos no presente ou no futuro. E essa ideia muda tudo, porque, assim, começamos a cuidar da vida, das relações, do dinheiro, de outra forma, sabendo que não somos infinitos. Os jovens de antigamente eram muito inconsequentes, porque se vivia muito menos no século passado. Hoje já existe uma consciência de que é possível viver bem a velhice e, para isso, é preciso fazer um mínimo esforço, que é cuidar de si mesmo e da sociedade.”