Prédio do DCE se prepara para abrir como complexo cultural ainda este ano

Casarão que sediou nas últimas décadas o DCE, na esquina da Rua Floriano Peixoto com Avenida Getúlio Vargas, preserva memórias dos estudantes, da universidade e da escola de engenharia


Por Mauro Morais

16/03/2019 às 18h07

Prédio, restaurado em 2015, desperta curiosidade de pedestres, que já podem entrar para visitar o Museu Dinâmico de Ciência e Tecnologia e, em breve, também um centro de memória (Foto: Fernando Priamo)

Os olhos se espichavam janela adentro no desejo de sorver um pouco do presente de um prédio cravado no passado de muita gente que andou pelas ruas de Juiz e Fora. “As pessoas que passavam iam e voltavam para ver o que estava acontecendo. Os próprios alunos falaram sobre como o prédio faz parte do imaginário deles”, pontua Mônica Olender, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFJF e responsável, junto do também professor do mesmo curso Marcos Olender, pela oficina que reuniu jovens estudantes de arquitetura no imóvel da antiga sede do Diretório Central dos Estudantes (DCE), na esquina da Rua Floriano Peixoto com a Avenida Getúlio Vargas na última semana.

Para a atividade de recepção aos calouros, cadeiras foram colocadas em círculo numa sala ainda vazia. “Conversamos sobre a relação do arquiteto com as pessoas e com os lugares das cidades”, conta Mônica, que em seguida propôs uma reflexão sobre os percursos que cada um faz. No dia seguinte, todos foram para as ruas de Juiz de Fora recolher fragmentos para representar esse espaço em que vivem. A tarefa posterior, por sua vez, foi a troca das informações recolhidas, numa constatação das subjetividades que envolvem as lembranças e o pertencimento. Estudantes, então, debateram a memória num espaço que se prepara para ser a memória dos estudantes.

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Configurado como um complexo cultural, o endereço com três prédios independentes serve de sede ao Museu Dinâmico de Ciência e Tecnologia, ao Centro de Conservação da Memória (Cecom) da UFJF e ao arquivo de ambas as instituições. Finalizada ainda em 2015, a restauração do prédio tombado pelo município em 1996 já enfrenta uma persistente infiltração no interior, que justifica as marcas de cimento pelas paredes do prédio ocupado pelo Cecom, e para onde os transeuntes da Floriano espichavam seus olhos. Retirados, os rodapés serão substituídos por uma tela vazada, conferindo alguma ventilação para a edificação. “A restauração tornou o prédio habitável”, pontua Olender, coordenador do Centro. “Questões como pintura são parte da manutenção, que deve ser periódica”, aponta, referindo-se à fachada, que já padece com uma visível, porém pequena, deterioração – reflexo também do agigantado fluxo do ponto.

Bandeiras de ontem e de hoje

Retrato de Pantaleone Arcuri

A expectativa de Marcos Olender, coordenador do Cecom, é de que o espaço seja inaugurado ainda no primeiro semestre deste ano, com o térreo preenchido por uma exposição fixa sobre a memória estudantil na universidade. “Tudo o que diz respeito à universidade e ao meio acadêmico e à memória disso, quer seja a memória discente, docente ou técnica, estamos dispostos a apoiar. É fundamental que a memória estudantil esteja presente vivamente nesse espaço”, comenta Olender, chamando atenção para a riqueza do material em processo de catalogação e digitalização.

Integram a coleção, documentos de 1973 a 2009, como atas de reuniões, panfletos, manifestos, cartazes, ofícios e fotografias. “Estou catalogando uma pasta de 1988 e tenho a impressão de que a luta é a mesma desde o início do DCE: pela universidade pública de qualidade, ensino gratuito. Hoje vamos para as ruas gritar pelas mesmas coisas”, observa a historiadora Carolina Martins Saporetti, mostrando cartazes como o da luta pela meia-entrada. “Eles não ficam só restritos ao movimento estudantil, eles têm uma força muito grande na comunidade. Catalogando observo como era forte o movimento. Aumentava a passagem, e eles iam para as ruas e ficavam durante uma semana. Eles envolviam a comunidade. Temos cartas de vereadores ajudando, o que é muito interessante”, destaca Arsênia Carvalho, outra funcionária da instituição, atualmente catalogando o ano de 1993.

Fotografias de autoria de Arthur Arcuri

“O movimento das escolas de ensino médio e fundamental era mais forte e mais próximo da universidade do que hoje”, complementa Carolina.
Honrando com o histórico de um prédio fundamental para a história da cidade, que em 1984 foi inaugurado como Diretoria de Higiene, fechou-se em 1920 e voltou a abrir uma década mais tarde, como apêndice da Escola de Engenharia e, mais tarde, passou a sede do DCE com suas lendárias festas, o projeto para o novo museu enfrentará o desafio de integrar-se, novamente, à vida na cidade. Para isso, defende Mônica Olender, idealizadora do Cecom, é preciso considerar o público que se avizinha.

“Na maioria das vezes, vemos fotos dos lugares, e não há gente. É uma tarefa difícil considerar o uso. Os espaços precisam ser convidativos. A pessoa acha que as portas estão abertas, mas não para ela. Em vários dos desenhos de arquitetura, as pessoas são usadas apenas para a escala humana, há uma ou outra figura humana, o resto é vazio, às vezes até sem entorno. Assim perdemos a parte humana, e isso se reflete em vários níveis das cidades”, avalia a professora, referência nas pesquisas acerca do patrimônio. “Nossa ideia é que as portas fiquem abertas e que as pessoas ocupem esse espaço”, garante Marcos Olender.

Política de acervos para UFJF

Além da história estudantil, o prédio também abrigará o acervo da Companhia Industrial e Construtora Pantaleone Arcuri, empresa que funcionou de 1895 aos anos 1940 na cidade, assinando imponentes e importantes projetos, como a construção do Cine-Theatro Central. Registros sobre o funcionamento da construtora dividem espaço com documentos do engenheiro reconhecido por seu estilo modernista Arthur Arcuri e suas sensíveis fotografias realizadas na primeira metade do século XX. “Uma das funções do Cecom é, efetivamente, a guarda de acervos.

Mas é mais do que isso. Uma das missões é criar uma política de gestão de acervos na universidade. Hoje temos um projeto, que desenvolvemos desde o ano passado, com o levantamento de todos os acervos e coleções da universidade, bem como as estruturas que os guardam. Queremos entender como estão funcionando e como podem aprimorar seu funcionamento”, explica Marcos Olender.

Segundo o coordenador do Centro, o mapeamento permitirá a identificação, de acordo com critérios científicos, das coleções, como museus, memoriais ou outros formatos. “Nosso papel é conhecer esse universo e ajudar na viabilização dessa gestão, padronizando e assessorando. Criamos um conselho, formado por vários representantes dessas instituições e também pelo Iphan (Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional)”, adianta Olender, atento a um quadro de dispersão de arquivos e acervos que se espalham por diferentes setores da universidade, em diferentes condições de armazenamento e visitação. Criado em 1967, pelo professor do curso de Biologia da UFJF Maury Pinto de Oliveira, o Museu de Malacologia é um exemplar que, conforme Olender, merece maior atenção. “Pelo acervo e pelo perfil, podemos dizer que se não é um museu é um museu em potencial. Ele pode ser um grande museu da universidade”, destaca.

Discutindo a memória, o órgão submetido à Pró-reitoria de Cultura da UFJF também terá caráter formador. Previsto ainda para este ano, o curso de conservação de documentos terá como público os gestores dos acervos da instituição de ensino, amantes do ofício e sustentáculos das iniciativas, mas reféns dos improvisos e das carências. O público externo também entrará no alvo do curso, ampliando, assim, o alcance do projeto e seu diálogo com a comunidade. A área com acervos (que no primeiro andar guardarão os arquivos do DCE e da Pantaleone Arcuri, e no segundo, documentos da Escola de Engenharia) será aberta a consultas e ainda contará com uma sala para higienização e restauração das coleções.

O fabuloso destino dos equipamentos antigos

Equipamentos contam histórias curiosas relacionadas à Escola de Engenharia (Foto: Fernando Priamo)

Num tempo em que os avanços tecnológicos ainda não haviam fundido facilidade e urgência, alguns equipamentos exigiam doses de paciência e calma. A precisão, no entanto, sempre existiu e está preservada nas salas do Museu Dinâmico da Ciência e Tecnologia, que ocupa a porção frontal do antigo prédio do DCE. Segundo o coordenador do lugar, Paulo de Melo Noronha, que já recebe visitantes (agendados ou não), a Escola de Engenharia montou no lugar, ainda na década de 1930, suas oficinas. Mas elas foram crescendo “e se transformaram na Fábrica de Aparelhos da Escola de Engenharia, que chegou a produzir 546 instrumentos técnico-científicos, comercializados para o Brasil inteiro, para diferentes universidades da época. Existia uma demanda muito grande, porque tudo era importado até então. A escola viu uma possibilidade de ganhar muito dinheiro com essa fabricação”.

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Curiosas, as peças preservadas no lugar ajudam a contar a história da própria faculdade, como também da ciência no Brasil e no mundo. Destaque no acervo, a balança tríplice escala foi concebida pelo professor Josué Lage Filho, responsável pela fábrica, na década de 1930, e até hoje é utilizada na física por sua fina precisão. “A instituição foi a terceira no mundo a ter em sua política institucional a produção de equipamentos científicos. A primeira foi a Universidade de Cambridge, a segunda, o Instituto Politécnico Português, e a terceira, a Escola de Engenharia de Juiz de Fora”, aponta Noronha, mostrando, ainda, a balança pesa-fio e um torcímetro para testar a resistência de um mínimo fio, todos produtos desenvolvidos para a efervescente indústria têxtil da cidade.

Assustador, o primeiro computador da universidade, o modelo 1130, ladeia um disquete de 8kB (sim! nem uma foto cabia!) de memória. Num outro canto, estão equipamentos da aula prática de topografia, expostos tal qual uma foto da primeira metade do século XX. Em outro canto, ainda, estão câmeras fotográficas e filmadoras antigas, bem como um epidoscópio para reprodução de livros durante as aulas (quando não havia data-show!). São diferentes e irreverentes objetos e também histórias, que Noronha conta com o entusiasmo de uma primeira vez. Combatente na Primeira Guerra Mundial, Rudolf Mir cometeu um erro no combate, ao iluminar a tropa errada, e partiu de sua Alemanha natal sob ameaças. Após desembarcar em outro país latino-americano, decidiu-se por recomeçar a vida em Juiz de Fora, onde foi contratado pela Escola de Engenharia e tornou-se um produtivo criador, autor de um amperímetro que carrega suas iniciais e está exposto na sala ao lado da que ele morreu, conta Noronha.

Completando o acervo, estão livros e documentações referentes aos equipamentos, aos corpos docente e discente e ao funcionamento da escola, bem como fotografias de equipamentos e aulas. No meio dos papéis acondicionados de modo bastante precário, está uma raridade: uma carta de próprio punho, cujo destinatário é desconhecido, mas o remetente é nada menos que o ex-presidente Juscelino Kubitschek. “Ao aproximar-se o término do meu mandato, venho manifestar de modo especial meu reconhecimento pelo seu patriótico apoio à luta que trazei para conduzir a pleno êxito a causa do desenvolvimento nacional. Sinto-me muito satisfeito em poder proclamar que, na Presidência da República, não faltei a um só dos compromissos que assumi como candidato. Mercê de Deus, em muitos setores realizei além do que prometi, fazendo o Brasil avançar, pelo menos, 50 anos de progresso em cinco anos de govêrno”, escreve o político em 1961, ao término de seu mandato.

Também vitimado pelas infiltrações que insistem em criar bolhas de umidade nas paredes, o prédio onde sobrevive uma parte instigante da memória da elétrica, eletrônica, física, matemática e cálculo, mecânica, meteorologia, óptica, química e topografia nacionais e internacionais padece com uma segurança frágil e os plásticos que vedam as frestas da porta, evitando que adentrem a poeira e a água da chuva. Noronha nega haver demanda espontânea. “Acho que não existe essa cultura de visitação aos espaços não-formais de ensino”, lamenta, demonstrando a potência e a urgência do pensamento da memória, proposta da casa ao lado.

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