Edimilson de Almeida Pereira: poeta revisa obra e luta por agora
Considerado um dos mais potentes poetas da literatura contemporânea brasileira, Edimilson de Almeida Pereira, professor de literatura da UFJF, tem sua obra reunida em antologia que revisa mais de 30 anos de carreira. Convidados pela Tribuna, intelectuais entrevistam o autor
O presente, incontornável, é um compromisso, uma urgência que se reflete em cada palavra, cada verso, cada texto de Edimilson de Almeida Pereira. Um escritor que trabalha com os ponteiros dos relógios. “A dimensão cronológica do tempo, para mim, nunca foi relevante”, pontua ele, redefinindo a noção do agora sobre o qual traça sua obra. “O que move minha escrita são as interlocuções. Não gosto de pensar na figura do poeta individualizada, como alguém que organiza o mundo. Pelo contrário, gosto de ser uma voz entre outras, um sujeito entre outros, que vão denunciando as possibilidades de pensar o mundo. Isso dá sempre uma vitalidade muito grande. Parece que está sempre reiniciando um processo diante de algo que pode se renovar. É muito estimulante”, diz ele, que se reinicia uma vez mais com “Poesia +”, antologia que perpassa toda a sua produção, desde 1980 até o ano atual. Publicado pela Editora 34, reconhecida por suas prestigiadas traduções dos clássicos e por um refinado catálogo de novos poetas, o livro chega às livrarias nesta semana e redimensiona uma escrita que não só ajuda a pensar a literatura das últimas décadas, como o próprio.
“Sempre tive a poesia como um entre outros processos de criação de conhecimento. Sempre pensei como uma maneira de produzir sentido para a existência humana e para as outras existências com as quais a gente faz contato. E ao pensar a poesia como conhecimento, há uma estrutura didática que dialoga muito bem com minha conduta em sala de aula”, afirma o professor de literatura da Faculdade de Letras da UFJF desde 1991, com pós-doutorado na Universidade de Zurique e livros de ensaios fundamentais para o debate acerca das populações afro-brasileiras. “Os vieses das culturas africanas e das culturas afro-diaspóricas, duas dimensões distintas, são fortes em minha poesia, mas não são os únicos. Meu interesse pelos temas humanos, pela natureza humana, é amplificado. Dá para encontrar na minha escrita toda um diálogo contínuo com tradições literárias das mais diversas, passando pela ameríndias, pela lírica ocidental, pela lírica nórdica da Europa e pelos textos da tradição oral. No fundo, no fundo, toda matéria humana é uma matéria poética.”
Com 384 páginas, a antologia estabelece oito blocos de poemas que perpassam os mais de 30 anos de produção, incluindo o último, com 34 textos inéditos. Um modo de organização semelhante ao que Drummond adotou em sua primeira antologia, estabelecendo núcleos temáticos e abrindo mão da cronologia. “Pensei em linhas de força, que, de algum modo, didaticamente, ajudam a passar pela floresta de signos da minha obra. São várias fontes de inspiração, várias tendências de escrita que se complementam e ora se contrapõem. Tenho tentado construir uma poética de vozes que são plurais e atuam a partir de processos de tensionamento. Por isso a obra é muito grande: é um tecido largo com vozes diferentes que vão ocupando seus espaços. Procurei achar temas que funcionassem como pilares desse conjunto: passeio sobre a questão da memória, que é um tema crucial; a ideia da família, que não é só de sangue, mas uma família ontológica, humana; inevitavelmente discuto um grande tema da poesia moderna, que é a questão da metalinguagem; depois perpasso a ideia de que o poeta é um sujeito interligado não só a pessoas, mas também a objetos, com o mundo como um grande museu em atividade”, enumera.
A seção inédita, por sua vez, rompe com todo o passado e integra o projeto de um livro previsto para sair em dois anos. “É como se eu estivesse recomeçando uma trajetória três décadas depois”, define o poeta diante de indagações de natureza metafísica, textos com caráter filosófico e mais discursivos. “O fascínio pela pesquisa me movimenta”, exclama ele, que na releitura de sua trajetória teve o auxílio do editor Cide Piquet, da 34. “Pude dialogar com alguém que é editor, poeta também, e de uma geração mais nova que a minha, para recompor o cenário de uma obra que já estava feita. Esse é um trabalho que gosto de fazer sempre com outras pessoas. Ao longo da minha vida sempre publiquei, por editoras pequenas ou por conta própria, mas sempre com uma parceria. No caso da Mazza (editora independente de Belo Horizonte, onde também publica seu trabalho), tem o Pablo, um dos editores da casa, e eu sempre trabalhei meus livros discutindo com ele, da estrutura física do livro até a ordem dos textos”, comenta o autor, cuja rotina inclui um pensamento muito grande até a decisão de levar o poema para o papel, o que faz sempre nas horas que restam. “Escrever para mim não é cansativo, não é exaustivo, não é dilacerante.”
‘Não sei escrever fora do processo de diversidade’
O processo de consciência de escrita, conta Edimilson, surgiu com o grupo do Abre Alas, movimento literário da Juiz de Fora dos anos 1980. Havia duas correntes muito fortes, uma coloquialista e outra formal. Na época, pareciam tendências opositivas. Edimilson, no entanto, observava uma complementariedade e seguiu tensionando a liberdade coloquial e o rigor formal. O processo de consciência do mundo é anterior, muito anterior. “Trabalhei desde os 10 anos. Com 12 anos, eu tinha dois empregos. Isso para mim foi uma experiência importante. Lamentavelmente é uma experiência de uma parte muito grande de brasileiros. Não vejo privilégio nisso, pelo contrário, é fruto de uma sociedade muito desigual, que obriga as crianças a ingressarem num processo duro de trabalho, deixando de lado o experimento de uma das fases mais importantes na formação do indivíduo: o tempo da infância. E o trabalho infantil é, necessariamente, um trabalho de exploração, no qual não aplicam as regras legais, as condições são muito precárias, há desrespeito e abuso”, diz ele, recordando-se da rotina de operários e operárias enquanto entregava marmitas para fábricas de tecido da região central.
Também lembra de ajudar o pai na lavanderia da família. O pai era criterioso no serviço e na limpeza dos equipamentos de trabalho. Ainda ensinava que era preciso estar bem e satisfeito com a vida. “Essa escola foi se dando na vida cotidiana”, lembra. “Ao andar pelas ruas entregando roupas, conheci metade da cidade, e isso compunha o bem-estar pessoal. Com a parte dos instrumentos bem organizada, o trabalho final tinha uma qualidade aceitável. Levo isso para a escrita. Escrevo por prazer e sei que esse prazer implica a visão crítica da realidade em que vivo. Sei, por exemplo, desde muito cedo, e agora se torna mais patente, que escrevo num país em estado de genocídio. Ao longo de 30 anos, escrevo sabendo que tem um genocídio em curso, de populações afro-brasileiras, populações rurais, tenho parentes vitimados por essas questões, inclusive. Sempre soube que nesse país paradisíaco, a faixa que me cabe de convivência é a de uma população sob a ameaça de genocídio. Infelizmente hoje isso é incontornável. O prazer da escrita não me tira essa consciência crítica.”
Há oito anos, despediu-se da mãe. Há algumas semanas, comemorou os 85 anos do pai. Edimilson – o professor, o ensaísta, o autor de livros infantis, o poeta, o romancista em gestação – é reflexo dos dois. “Meu pai tem uma visão horizontalizada. Ele é interessado por muitas coisas, é atento a vários movimentos, pessoas e formas, e está sempre disponível por gostar da diversidade. Minha mãe era o contrário, ela se concentrava em alguns valores e mergulhava fundo neles. Minha poética é um pouco isso, ela dispersa por vários temas, mas alguns deles se repetem permanentemente”, descreve o homem que também carrega consigo as marcas do bairro onde cresceu, o Meggiolaro, hoje Nossa Senhora Aparecida. “As relações de solidariedade eram construídas a partir de conflitos que existiam entre os moradores. Sempre foi um bairro com uma vida popular muito intensa. As festas de igreja, os terreiros de umbanda e candomblé, os templos evangélicos. As pessoas com várias profissões, domésticas, operários, militares, docentes. Era um microcosmo”, lembra.
O bairro próximo do Centro era internamente e intensamente muito vivo. “A gente vivenciava aquela diversidade toda como o ar que respira. De algum modo, a minha família sempre conviveu com tensões a partir das diferenças. Ora com processos de ruptura, porque não dá para negociar tudo, ora com interações que criaram sistemas muito particulares de convivência. Ao longo da minha vida, isso sempre foi um norte”, defende ele, que na academia viu aquele microcosmo refletir-se no macrocosmo. Era um retrato do país, do continente e do tempo. “Se eu não tivesse isso, talvez eu não escrevesse. Não sei escrever fora do processo de diversidade.” E a passagem pela Suíça também se reflete em seus textos? “Minha passagem pela Suíça já dura 20 anos”, ri, referindo-se à união com a também escritora e professora Prisca Agustoni, de origem suíça, com quem tem os filhos Iara e Antônio. “As diversidades de lá também me interessam”, afirma.
‘Sempre me filiei aos poetas que pensam a própria obra’
Considerado um dos grandes escritores da literatura contemporânea brasileira, capaz de conectar lugares e autorias, capaz de fazer dialogar questões urgentes e ontológicas, capaz de ter escrito nos anos 1980 o que ainda hoje permanece pleno em sentido e potência, o juiz-forano Edimilson de Almeida Pereira tem o mesmo fôlego para o futuro de sua produção passada. “Os poemas de Edimilson de Almeida Pereira se colocam também como um outro modo de relacionar mundos, desdobrando a violência da necropolítica tropical em um devir-negro que expande a sua condição histórica em uma cicatriz, um sintoma, uma dupla reinvenção do lugar do subalterno e da poesia que abre um espaço de possibilidade de transformação do nosso tempo, e mais, do modo como habitamos os nós do tempo”, analisa Roberto Zular, poeta, ensaísta e professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP).
“Procuro pertencer a uma linhagem de poetas que chamo de poetas críticos. Tenho todo aquele conhecimento do histórico da poesia da inspiração, da poesia mística, das esferas da poesia que vem para o poeta como uma encenação do além, mas eu sempre me filiei à linha dos poetas que pensam a própria obra, mesmo quando os temas são de inspiração. A forma de criação é muito objetiva e racionalizada”, garante o escritor, em conversa com a Tribuna numa tarde do início de dezembro. Edimilson também respondeu, por texto, às oito perguntas enviadas por intelectuais do país, que, convidados pela Tribuna, enviaram questões para o poeta que lança sua “Poesia +”. Participam Alberto Pucheu, Eduardo de Assis Duarte, Guilherme Gontijo Flores, Josélia Aguiar, Milena Britto, Otávio Campos, Rafael Zacca e Roger Mello.
Ao longo da entrevista, realizada por vozes distintas, o poeta fala sobre formação, criação, país, origem e legados, demonstrando dominar não só a caneta, mas tudo o que a envolve. “Ao longo dessas décadas procuro ter, em relação à minha obra, um distanciamento crítico que me permite ver as etapas de criação, as relações entre os livros. Tenho um mapa mental muito claro que me possibilita perceber quais são as sequências dos textos e as relações que eles estabelecem entre si. Dentro do possível isso me permite ter uma espécie de domínio do fazer poético e das relações que são feitas”, aponta Edimilson. “Por isso, voltar a esses textos agora não foi uma tarefa difícil, porque ela é cotidiana.”
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