Artistas juiz-foranos fazem releitura de ‘Guernica’

Comemorando os 80 anos da pintura de Pablo Picasso,obras em exposição apontam para as violências e os silenciamentos das guerras do presente


Por Mauro Morais

15/10/2017 às 07h00

Obra de Eduardo Borges

Ameaça de guerra nuclear. Exposição sobre diversidade e questões LGBT cancelada em Porto Alegre após protesto. Muro para separar nações. Espetáculo com Jesus representado por transexual cancelado judicialmente. Travesti cearense espancada até a morte. Projeto de lei criminalizando expressão artística nascida nos morros e favelas do Brasil. Vinte e três minutos é o bastante para que um novo jovem negro brasileiro seja morto. “Guernica” é ontem e é hoje.

Obra de Mario Tarcitano

Tivesse o tempo passado e levado junto as tantas sombras que inspiraram Pablo Picasso a produzir o icônico quadro, os 80 anos da tela de 3,5 metros de altura e 7,76 metros de largura, pertencente ao acervo do espanhol Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, passariam em branco. O relógio, contudo, gira sobre os mesmos números, recordam 34 artistas na exposição “Embate ao fascismo – 80 Anos de Guernica”, em cartaz no Espaço Reitoria, no Campus da UFJF.

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Obra de Clara Downey

“Ao contrário de outras pinturas de Picasso, que ressaltam a fatura pictórica, ‘Guernica’ propõe pensar em como a arte pode afetar o pensamento, em como a obra pode propor a quem observa uma nova rede de significações que demanda novos sentidos. Naquele momento, foi uma ação transformadora, e talvez seja esse desejo de afeto, de tocar os juízos com o alarme de questões, o traço contemporâneo mais marcante da obra”, pontua Valéria Faria, pró-reitora de Cultura da UFJF e curadora da mostra.

Inventário das artes visuais locais no presente, a exposição que reúne diferentes gerações em atividade – da estudante Clara Downey ao diretor do Instituto de Artes e Design Ricardo Cristofaro – investiga um trabalho que se fez na intensidade do panfleto. “A intenção do Picasso era fazer uma denúncia, era política. Se esvaziar essa intenção, a tela perde o sentido. O interessante é olhar para ela e, imediatamente, ser transferido para o momento histórico retratado”, pontua o artista e pesquisador Eduardo Borges, referindo-se à Guerra Civil Espanhola, tema do quadro.

Obra de Ramón Brandão

“Fica difícil separar a gramática da pintura dos acontecimentos históricos pelos quais a Europa passava nos anos 1930, num momento em que o Partido Nazista da Alemanha perseguia o que era considerado ‘arte degenerada’. Picasso estava entre os artistas que foram execrados pelos nazistas. Era preciso reagir. Era preciso se impor com arte. E Guernica cumpriu este papel”, reforça Valéria, certa de que o próprio recurso discursivo da tela a insere na contemporaneidade, em tempos inflamados da “arte como forma de embate”.

Obra de Knorr

O próprio Picasso, em diversas oportunidades, tratou de enfatizar a potência política de uma obra que sempre se desejou manifesto dos horrores cometidos pela Alemanha nazista. Perguntado por um general de Hitler se ele era o autor do painel criado para a parisiense Exposição Internacional de Artes e Técnicas, o espanhol não titubeou: “Não fui eu quem fez, foram vocês”. O mesmo discurso é repetido pelos trabalhos da exposição juiz-forana, que passam pela ecologia, pela desigualdade racial, pela homofobia, dentre outros assuntos, todos alinhavados pela densidade política contra o autoritarismo.

 

O poderio bélico

“‘Guernica’ é uma bela obra que eu gostaria que tivesse sido desnecessária. Grandes obras de arte são fruto do que há de pior na condição humana. A ‘Rosa de Hiroshima’ é filha da bomba de Hiroshima. Por outro lado, são obras mais do que necessárias, são imprescindíveis. Não só porque fixam a monstruosidade do humano no plano histórico, evitando o esquecimento das atrocidades que somos capazes mesmo de esquecer, mas também porque nos expõem, trazem à tona cotidianamente a consciência do que somos capazes”, defende o escritor e professor da Faculdade de Letras da UFJF, Alexandre Faria.

Obra de Heloisa Curzio

Voltando-se para os modelos de avião da força aérea alemã usados no bombardeio a Guernica, o poema inédito “Legião Condor rediviva”, de Faria, aponta para outras expressões do fascismo. “Ladram em paz”, alerta o poeta. “Quando vemos, o egoísmo, o ódio e a intolerância contra o outro já tomou conta do nosso cotidiano. Já nos tornamos fascistas quando deixamos de lado a capacidade humana de fazer um gesto fraterno e compreensivo e entramos bélicos nas discussões polarizadas como se de fato existisse um bem e um mal, um certo e um errado, uma posição imbecil e outra inteligente”, comenta Faria.

Valorizando o caráter alegórico do quadro de Picasso, o escritor Darlan Lula cobra em seu “O que é Guernica?” a infeliz contemporaneidade de uma guerra inacabada. “É o som da opressão, entre tapas nas costas e sorrisos enferrujados. É o mundo às avessas, buscando rascunhos de promessas sem sentido. É a leitura quixotesca de governantes burlescos. É o deus do 11 de setembro, as armas químicas de Hussein. É o político brasileiro de Bezerra, a manobra ardilosa e traiçoeira da elite”, enumera, em prosa poética, respondendo à pergunta-título.

Obra de Lucio Rodrigues

“Quem te viu, quem te vê”, pintura de Eduardo Borges, não apenas revisa a guerra e a tela, mas também vestígios pessoais de dor. Ao contrapor a contemplação da arte ao pedantismo da militarização, o artista joga luzes na própria ditadura militar brasileira, da qual sua casa sempre ouviu falar em depoimentos emocionados. “Meu avô era capitão-paraquedista e foi ordenado para chefiar um núcleo de tortura. Ele não quis torturar e foi torturado. Só não morreu porque a família ficou sabendo e foi buscá-lo”, conta, dizendo-se assustado com o que considera ser um retorno do pensamento de extrema direita.

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A ensurdecedora voz da arte

Há selfies, travesti agredida, amamentação proibida e também menção aos recentes ataques às religiões de matrizes africanas, à violência do machismo e às distorções da grande mídia na “Guernica” de Mário Tarcitano, chargista da Tribuna que integra “Embate ao fascismo – 80 Anos de Guernica” com seu “Brazuca”. “A arte deve estar na vanguarda e deve ter um posicionamento humanista. E, por isso, vai sempre sofrer a censura e nunca propor a censura”, observa o artista, cronista da atualidade preocupado com as “Guernicas” que ainda podem ser pintadas.

Obra de Nina Mello

Seja na enciclopédia de “História do Brasil” alvejada de tiros, de Thiago Berzoini, sejam os guindastes devastadores enfocados por Nina Mello, seja a “Guernica” indígena de Lúcio Rodrigues, a mostra no Espaço Reitoria reverencia a liberdade dos criadores. “A grande luta é tentar mostrar que o artista não deve ser marginalizado nem é um ser superior: é parte da própria vida, o que completa o mundo”, reforça o poeta e professor Charles Dias, autor de “Aviso”, texto no qual aponta para a barbárie atualizada – “São velhas, as ideias/ e é o mesmo, o controle” – demarcando a posição da galeria na UFJF como lugar contrário aos cerceamentos na arte e inflamando ainda mais um debate cuja profundidade esbarra no sangue que escorre dos noticiários.

 

EMBATE AO FASCISMO – 80 ANOS DE GUERNICA
Visitação de segunda a sexta-feira, das 8h às 20h, sábados, das 9h às 12h, no Espaço Reitoria (Campus da UFJF). Até 17 de novembro.

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