História talhada em pedra
Cantaria, em bom português, é a técnica de cortar, lavrar, talhar, aparelhar, esquadrejar ou esculpir pedras para diversas finalidades, como construção de muros, edificações, escadarias, calçadas, marcos, túneis, pontes e arcos, entre outros, realizada de forma manual. E é esta atividade, que chegou ao Brasil ainda no século XVI, no início da colonização portuguesa, o tema do livro “Trabalhos em pedra e ofício de cantaria”, de Ricardo Cristofaro, que será lançado nesta sexta-feira, às 20h, no Mamm. Publicado por meio da Lei Murilo Mendes, ele é resultado de cinco anos de pesquisas de Cristofaro, que estudava a técnica há pelo menos 15 anos para sua aulas no Instituto de Artes e Design (IAD/UFJF), onde trabalha como professor de artes visuais.
Artista plástico de formação, Ricardo atua na instituição com disciplinas ligadas à linguagem das esculturas, o que acabou levando-o à cantaria. “Nesse percurso acadêmico realizei vários cursos para aperfeiçoar a metodologia de trabalho e certas práticas, técnicas e tecnologias artísticas na escultura, e passei a conhecer mais o trabalho de escultura em pedras no Brasil”, explica. “Em Minas, já conhecíamos em especial o barroco, com trabalhos em pedra sabão, mas também temos obras em granito, quartzito, gnaisse que foram usadas pelos canteiros em diversas edificações. A cantaria fica no meio termo entre a parte artística e de arquitetura e engenharia. Por ser algo híbrido foi estudado por engenheiros que escreveram os melhores livros no país sobre o tema”, diz Cristofaro, destacando que este foi um dos motivos de ter realizado uma pesquisa com viés que privilegiava a questão artística da cantaria.
“Você vê o uso da cantaria em diversos fins, e há cerca de cinco anos comecei a fazer um trabalho de prospecção sobre o que existe dessa forma de trabalho na região da Zona da Mata, em especial Juiz de Fora e cidades próximas. Comecei a estudar como essas obras foram feitas, quem as realizou, as técnicas utilizadas, inicialmente por meio de fotos”, acrescenta. “Ao desenvolver o projeto, quase que dupliquei o número de achados. Mas existe muito mais coisa, busquei mostrar o que está mais acessível e diferentes trabalhos. O objetivo é destacar como essa forma de trabalhar a pedra foi desenvolvida de diversas maneiras na região, em diferentes épocas e ciclos econômicos, o que chegou a trazer artistas de técnicas e estilos diferentes. São poucas cidades no país e na região com tanta diversidade de trabalhos como Juiz de Fora.”
Tradição de séculos
Em Juiz de Fora, a peça de cantaria mais antiga conhecida é o marco de sesmaria localizado em Paula Lima, próximo ao Caminho Novo da Estrada Real, construído no século XVIII. “Até por volta de 1850, o trabalho de cantaria em Juiz de Fora era muito amador, rústico, certamente feito por portugueses que por aqui passavam ou escravos treinados para o ofício, usando rochas da região como gnaisse e quartzito. A partir de então, houve grandes investimentos, como a Estrada União Indústria e a Estrada de Ferro Dom Pedro II, que chegam junto com o declínio do ciclo do ouro em outras cidades”, explica. “As obras passam a ser melhor elaboradas, um trabalho de precisão que se encontra até hoje em pontes, túneis ferroviários, ainda utilizados e construídos numa época em que não havia por aqui a tecnologia do concreto armado.”
Além das obras de infraestrutura, Ricardo Cristofaro lembra que a chegada de canteiros portugueses, alemães, italianos e espanhóis, mais habilidosos, contribuiu para edificações como a igreja de São José das Três Ilhas. Esses especialistas ainda foram responsáveis por ensinar o ofício a aprendizes brasileiros, que se fixaram na região. “Mas ainda é pouco registrado na história oficial. Há dificuldade de encontrar os canteiros, pois geralmente são mencionados apenas o canteiro-mestre, os secundários quase nunca são citados. Daí a falsa impressão de que apenas escravos tenham trabalhado na área, mas um grande contingente de imigrantes veio para a cidade.”
Na década de 1920, percebe-se a presença de trabalhos menos elaborados, com o uso de tijolos, blocos de concreto armado, deixando para trás o uso da pedra lavrada. Um dos motivos é a construção mais rápida com a utilização desses novos materiais. “O único canteiro que encontrei em toda a região foi o João Batista Biqueira, que morava em Sobragi e recebia encomendas de todo o país, mas morreu no ano passado”, lamenta. “Era uma figura importante por todo o conhecimento que tinha.”
Importância que permanece
O trabalho de pesquisa rendeu descobertas que Ricardo Cristofaro considera interessantes, como os cemitérios rurais da região de Mar de Espanha (“muito bem preservados”) e as pontes ferroviárias ainda em uso. “Há edificações religiosas muito bonitas, como o santuário de Nossa Senhora das Mercês, também em Mar de Espanha, bastante sofisticado; a Igreja Matriz de Nosso Senhor dos Passos, em Rio Preto, é também muito interessante. A igreja de São José das Três Ilhas por sorte não foi rebocada (ato de colocar argamassa sobre as pedras), como aconteceu com outras. Assim pode-se ver o trabalho, a técnica utilizada e as dificuldades de execução.”
Como se trata de um trabalho que poderia ser aplicado com diversos fins, a cantaria muitas vezes passa despercebida, a história pode estar sob seus pés ou ao redor. “Um trabalho que desapareceu é o da escadaria da Câmara Municipal de Juiz de Fora, que foi coberta de cimento e pintada. O primeiro lance de escadas da Catedral não foi recoberto, mas também foi pintado, com isso você tira toda a beleza do trabalho com pedra.”
Esse tipo de ação, lamenta, pode ser visto pela cidade. “Muitas obras foram perdidas por desconhecimento. Felizmente o Iphan tem feito um trabalho importante com a formação de especialistas em restauração e preservação de cantaria. Mesmo um monumento de pedra precisa de manutenção, pois ele pode ser afetado por produtos químicos, ações de microorganismos, infiltração de água, entre outros.”
TRABALHOS DE PEDRA E OFÍCIO DA CANTARIA EM JUIZ DE FORA E REGIÃO
Lançamento de livro nesta quinta-feira, às 20h
Mamm
(Rua Benjamin
Constant 790)