Morte de Suraya Ramos deixa incerto futuro da Casa de Cultura Ilê Okan

‘Casa do Coração’ foi porto seguro para jovens da Zona Sudeste de Juiz de Fora


Por Júlio Black

14/08/2020 às 07h00

Além de organizar os eventos na Ilê Okan, Suraya Ramos também participava como artista (Foto: Natália Possas)

Há coisas nessa vida que não se precisa conhecer para saber que farão falta quando deixarem de existir. A Casa de Cultura Ilê Okan (“Casa do Coração”), por exemplo, entra nessa categoria: localizada no Bairro de Lourdes, reunia diversos artistas e jovens da comunidade para eventos organizados pela polivalente Soraia Valéria Ramos, mais conhecida pelos incontáveis amigos como Suraya Ramos, como ela preferia ser chamada.

Suraya, porém, morreu em 24 de julho, aos 56 anos, após luta contra o câncer, e o destino da Ilê Okan, infelizmente, é incerto. Filho único da artista, ativista e restauradora, o músico Igor Ramos Carvalho afirma que vai dar um tempo para refletir sobre o futuro do espaço, mas acredita que a Ilê Okan não permanecerá no local. Parte do acervo deve ser levado para o Rio de Janeiro, onde Igor mora atualmente, mas o acervo de livros de cultura afro deve ser doado para uma biblioteca pública, como era desejo de Suraya. Um legado para a cidade.

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Igor não se lembra exatamente desde quando o imóvel se transformou no espaço de cultura, mas tem lembranças de que a casa, já na sua infância, era o terreiro de candomblé Ilê Okan Odara Oya, comandado por sua avó, mãe de santo. Após a morte da matriarca, a casa teve o nome diminuído para Ilê Okan. “Sempre houve projetos artísticos e culturais, desde a época da minha avó. Formamos toda uma geração que sabia jogar a capoeira, tocar o berimbau e cantar as cantigas. Mas era mais ligado ao candomblé. Com a minha mãe, o foco passou a ser direcionado para a valorização da cultura afro-brasileira”, explica.

Oficinas

Uma das atividades frequentes na Ilê Okan eram as oficinas, entre elas as de estêncil (Foto: Arquivo pessoal)

Segundo Igor, mesmo com as dificuldades, a Ilê Okan mantinha uma série de oficinas, principalmente para crianças e adolescentes, como as de estêncil, confecção de tambores, dança e contação de histórias, entre outras. Havia também festas – muitas -, como as que eram feitas para Ogum desde a época da avó, os eventos ligados à Semana da Consciência Negra e outras. Em várias dessas ocasiões, o músico lembra que sua mãe, incansável, além de participar das atividades culturais, preparava comidas típicas como acarajé, vatapá e iguarias oriundas da África Ocidental, explicando a história de cada prato, servindo de aprendizado sobre toda uma tradição que vem de séculos.

  Com a provável mudança da Ilê Okan para o Rio de Janeiro, um grupo que deve sentir com mais força a ausência de Suraya é aquele formado pelas crianças e adolescentes do Bairro de Lourdes. Igor destaca as ações que eram voltadas majoritariamente para os jovens da localidade, que não teriam no bairro espaços adequados para o lazer e socialização infanto-juvenil. “A casa supria um pouco essa falta. Mesmo nos dias em que não havia festas, elas queriam vir aqui para brincar, ver as plantas, brincar com os figurinos, só ficar no espaço mesmo.”

Fazendo novos amigos, sempre

Fundadora do Close Formação Artística com Trajano Amaral, a atriz e professora Natália Possas chegou a morar na casa onde fica a Ilê Okan durante um período. Além de ter sido amiga de Suraya, esteve presente em vários eventos. “A casa servia como espaço de exposição para os artistas, tinha a biblioteca, levava teatro, música e outras atrações, além das oficinas. A Suraya envolvia muitas pessoas da comunidade, incentivava as meninas a estudar, os jovens a se envolver com arte, educação, a se profissionalizar”, relembra. “Ela gostava de dançar, cantar, dava aulas de dança afro. Era uma pessoa que agregava, sempre tinha muita gente participando e ajudando nos eventos que ela organizava.”

Essa facilidade de fazer amizades – e se doar para os amigos que tinha acabado de conhecer – é lembrada pelo roteirista, diretor e escritor Trajano Amaral. Ele conheceu Suraya quando filmava um curta-metragem no CCBM. “Ela ofereceu ajuda, dizendo que era diretora de arte. Falei que era sem dinheiro, e ela respondeu ‘mas eu adoro fazer isso’, e dali pra frente começou um contato que nunca parou.” Na visão de Trajano, Suraya Ramos era uma pessoa apaixonada pela arte e pelo artista. “A casa dela era a casa de todo mundo. Era a casa da arte, dos artistas, todos estávamos lá o tempo inteiro, era difícil não ter gente por lá. Ela queria muito transformar a casa num espaço cultural alternativo e movimentado. Nunca chegou ao que ela quis, mas sempre teve um movimento cultural muito forte”, reconhece. “A casa se tornou um espaço cultural que ela foi construindo com muita garra, com ajuda de amigos, mas sem financiamento, tudo por conta própria.”

Além das atividades e projetos que tocava, Suraya tinha histórias inacreditáveis para contar, segundo Trajano, como no dia em que não conseguiu entregar o figurino de um espetáculo porque se trancou do lado de fora de casa. Ao tentar pular o muro, os figurinos foram para um lado, e ela, para o outro. “Era louca de tudo, vivia aventuras e situações inusitadas, às vezes de filmes de comédia. Era aceleradíssima, não desligava, sempre muito jovial. Foi muito chocante para todos e para ela mesma quando ficou doente e não pôde andar”, lembra. “Vê-la sentada era uma coisa muito estranha.”

Suraya organizava vários eventos dedicados às mulheres, incluindo a Semana da Consciência Negra, que também oferecia oficinas (Foto: Arquivo pessoal)

Restauradora

Fora as atividades na Ilê Okan, Igor Ramos lembra que Suraya realizava muitas coisas no campo da arte, mas sua ocupação principal era a restauração, área em que tinha formação acadêmica. Ele lembra que ela era especialista no Barroco Mineiro, tendo trabalhado em igrejas de São João del-Rei e Tiradentes, entre outras. “Minha mãe era muito requisitada. Restaurou também muita coisa no Rio de Janeiro, com meu pai, e ainda restaurava objetos particulares, como santos”, destaca, lembrando que ela também atuou em outras áreas. “Nos anos 90, ela trabalhou na televisão, em especial com figurino, como na novela ‘Xica da Silva’, da (extinta) TV Manchete. Ainda trabalhou como decoradora e ultimamente trabalhava com upcycling, em que você pega materiais que iriam para o lixo e os transforma em obras de arte. Fazia trabalhos maravilhosos com isso.”

‘Uma segunda mãe’

Entre os tantos jovens do Bairro de Lourdes que tiveram a vida influenciada por Suraya está Luísa Elena, 18 anos. Ela conta que conheceu aquela que passaria a levar no coração como sua “madrinha” – e que a “adotou” como “afilhada” – quando tinha cinco ou seis anos de idade, no que foi o início de uma amizade e amor mútuos que, ela diz, durarão para sempre. “Ela foi exemplo de perseverança, vontade de viver, amor ao próximo, caridade. Proporcionava em sua casa oficinas de teatro, musicalização, educação sexual para adolescentes que, como eu, vinham de origens mais humildes e são negras; oficinas que, muito mais do que um momento de confraternização e divertimento, nos trazia informação, conhecimento, autoconhecimento e também amor próprio.”

Foi graças a Suraya que Luísa teve contato com o teatro, através de uma bolsa de estudos no Close Formação Artística. Com a “madrinha” já doente, a jovem foi visitá-la para contar as novidades profissionais e que havia passado para o bacharelado interdisciplinar de ciências humanas na UFJF. “Eu disse a ela, porém, que achava que não poderia fazer o curso porque o horário coincidia com meu expediente de trabalho, e ela, como sempre, me colocou para frente, ofereceu ajuda, disse que não poderia deixar essa oportunidade passar. Chamou meu pai para conversar com ele e que daríamos um jeito. Se ela soubesse o quanto isso me deu forças para seguir em frente”, conta a jovem que, se transferiu para o curso de Gestão de RH no Vianna Júnior. “Não pude contar a ela pessoalmente (sobre a mudança), mas sei que, onde quer que esteja, a Suraya continua olhando por mim, orgulhosa das minhas conquistas. Se Deus quiser, daqui a dois anos entregarei um diploma de conclusão do ensino superior à memória dela, que foi minha mãe, amiga, madrinha e companheira de todas as horas.”

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