É possível ir além do que se vê? Confira mostra no Mamm
Exposição dos artistas Eduardo Borges e Gilton Monteiro Jr. discute potência das imagens no mundo contemporâneo
Um retrato de família possui algum significado. O mesmo retrato retocado pela pintura que desfaz pequenos defeitos e valoriza outras características possui outros significados. Ainda esse retrato, visto deslocado de seus personagens e de seu tempo, possui outros significados. Acrescidos de uma pedra, pintada sobre ele, esse retrato pode, também, possuir outro significado. Se exposto no cubo branco de uma galeria de arte, possui outros, e outros, e outros significados, sujeito ao encontro com a narrativa de cada espectador. Em “Antimagem”, exposição em cartaz no Museu de Arte Murilo Mendes, o artista visual Eduardo Borges apresenta sua série intitulada “Pedra”, na qual adiciona o elemento natural às imagens que recolheu em sebos e feiras. “Das imagens fotográficas, acho interessante sua espacialidade própria e o atributo de caráter dado às fotografias: elas dão o testemunho decalcando a imagem do real.
Inversamente, a estrutura da pintura é interpretativa, apoiada na mimese, que, por sua vez, alimenta sua força metafísica. E, apesar de sempre estar sobre espinhos e alfinetes, a pintura tem o privilégio de possuir sua própria espacialidade, diga-se de passagem, uma vastidão difícil de conquistar. Entre Kant, Deleuze, Danto e outros pensadores, a pintura foi e continua sendo um bom parâmetro para argumentar e contra-argumentar na arte. A pintura teve o direito de morrer e ressuscitar – melhor -, de se esgotar e crescer de novo. Em boas mãos, tinta espessa logo é carne, carnalidade – é o corpo. Tinta pouca é película, é delicadeza, é o infinito incorpóreo. Mas, no meio do meu caminho tinha uma pedra e a Susan Sontag apontando que foto é um vestígio material de seu tema, de um modo que nenhuma pintura pode ser”, reflete Borges sobre a obra, que exposta lado a lado das grandes telas abstratas de Gilton Monteiro Jr. ganham, ainda, outro significado.
Para Monteiro Jr., pesquisador e artista, existem contradições que instigam novas leituras de ambas as obras, que se espraiam e se contaminam na investigação sobre o que representam as imagens na contemporaneidade, na qual a um clique bilhões de imagens podem ser acessadas. “A obra do Eduardo tem uma escala mais intimista, que inclusive força uma proximidade do observador para apreciar aquilo que está sendo apresentado, ao passo que meu trabalho tem uma escala diferente, que exige uma colocação distinta do espectador. Esse deslocamento do corpo do observador, não que seja algo que me interesse, é algo convocado pelos quadros. Também existem outros contrastes: o Eduardo parte de uma imagem, uma fotografia, às vezes como uma espécie de suporte, ao passo que eu não tenho nenhum a priori para iniciar uma figura. Eu tampouco chego a uma figura ao final do processo. Essa diferença formal que se demonstra, num primeiro momento, na morfologia dos trabalhos, é algo que também ocasionou certas proximidades. O ‘leitmotiv’ dessa exposição vem dessa tensão que ambos os trabalhos geram na forma de constituição formal. Além disso, o Eduardo gera uma espécie de anti-estrutura nos seus trabalhos, uma dicotomia entre um elemento e outro, a figura de uma pedra e uma fotografia na qual ela está conjugada. Os meus trabalhos obedecem certa lógica estrutural, ainda que conte com contrastes. Enquanto ele parte de uma estrutura já pronta, a fotografia, minha estrutura nunca está devidamente pronta. Nesses desencontros propositais ou encontros inusitados os trabalhos vêm expor sua energia formal”, defende Monteiro Jr.
‘O que você não vê, você vê também’
Como um arqueólogo às avessas, Eduardo Borges retira das imagens sua identidade original, já que não é possível saber de quem se trata cada imagem. A cada retrato é permitido, ao observador, criar sua própria narrativa. Seriam um casal, aqueles? Seria uma filha única, aquela? Seria um retrato dele para a namorada? Ao inserir a pedra sobre os retratos, o artista adiciona a si mesmo, com sua leitura, naquela imagem. À obra dá o título de “Pedra” e uma numeração sequencial. Borges vai, portanto, abstraindo a figura inicial. Gilton Monteiro Jr., por sua vez, vai construindo uma nova cadeia de significados. “O processo se dá de modo muito aberto, não-linear. Tento preservar o vir a ser do quadro, mas parto de uma conjugação formal. São dois duplos que formam um quadrado e dois quadrados que formam um retângulo. Essa duplicidade das áreas de cor é que vão dando ritmo ao vir a ser do quadro. Conjugo partes que, a princípio, não teriam sido pensadas para serem reunidas, mas no processo vão engendrando uma estrutura. É esse processo constante de estruturação da tela que me interessa, essa organização provisória entre as partes”, conta ele, que às suas obras dá nomes curiosos, como “Provisório provisório”, “Quase”, “Ainda assim como não também?”.
“Dispostos lado a lado na galeria, nossos trabalhos inversamente elaborados, também acumulam condições invertidas: Talvez a pintura abstrata sem imagem reconhecível do Gilton, incorpore a possibilidade de leituras um tanto imagéticas. E em seu gesto, na translucidez da sua tinta antinaturalista, quem sabe, Gilton me permita ponderar que sua superfície transmita também seu deslocamento e percurso às pinturas dos antigos mestres. Por outro lado, minha pintura com imagens incorpora até coisas que não estão lá. Penso que essas pessoas pintadas, do modo como se constituíram, pedra e rostos, solicitem determinada qualidade silenciosa, algum grau de desejo de apagamento. O que você não vê, você vê também, é a coisa tal como é, nada tem a ver com perspicácia do discurso”, pontua Borges, dizendo ter escolhido a pedra justamente pela aspereza, pela rudeza e por um desejo de romper com o lirismo e o sentimentalismo possível nas imagens. “À luz da sua origem, a pedra vestígio da reintegração da terra, na terra, é uma interessante viajante das camadas do tempo. Mas reabilitando fotos antigas junto da pedra, o conjunto ganha um sentido existencial distinto. Ganhei a pedra do meu marido, em 2000. Ele catou a pedra dos escombros da casa do seu avô, em Deir-El-Qamar, região católica maronita do Líbano.
Por outro consumo das imagens
Como um conceito que se impõe na leitura dos trabalhos, o título da exposição, “Antimagem”, problematiza para despertar movimento. Imagem é texto, pensamento e reflexão que transcende o exercício de ver. Abstrair é urgência, parecem dizer os quadros. “Essa resistência à imagem é algo que se pode perceber nos meus trabalhos. A arte abstrata gera uma espécie de desvio em relação às imagens e impõe, por isso, uma situação muito específica de percepção. Não digo que persigo isso no meu processo de pesquisa em pintura. Às vezes parto de uma paisagem, mas o processo da pintura transfigura completamente esse motivo inicial. E como eu acredito, procuro deixar aberto esse ‘vir a ser’ do trabalho”, aponta Gilton Monteiro Jr., cujas telas são, sobretudo, projetos que se não se findam. “Tudo depende do que, no processo, eu procuro desenvolver no quadro, articulando como um problema do quadro, que não é dado inteiramente, a priori. O problema surge com a pintura. Existe uma intuição, que pode ser um a relação cromática ou a presença de uma cor, ou, às vezes, parto de uma cor que já esteja me emocionando e no processo ela vai se alterando completamente a partir de certas relações e composições”, diz ele, certo de um percurso indeterminado na pintura. “O desafio é justamente sair da posição de consumidores passivos para uma posição de produtores ativos. O regime de comercialização e circulação das imagens é bastante agressivo e se põe de modo bastante ostensivo e acintoso em nossas vidas. A arte pode reagir a isso de diversas maneiras, inclusive se apropriando disso, intensificando esse processo e elevar a um nível tal que chega ao contrário disso. Desde a arte pop as imagens vem nos forçando a assumir uma posição nada ingênua em relação às imagens, com mais crítica e desencanto. A pintura interfere na percepção do público.”
Antimagem
Visitação de terça a sexta, das 9h às 18h, e aos sábados e domingos, das 12h às 18h, no Museu de Arte Murilo Mendes (Rua Benjamin Constant 790 – Centro). Até 31 de maio.