O circo é infinito
Tradição e contemporaneidade de uma mesma paixão pela arte circense
O poder do riso da palhaçaria, elasticidade, coragem, concentração e energia do corpo de quem é circense, tudo fascina. Lembro-me das peripécias dos tradicionais circos de quando era criança, daqueles que viajam de cidade em cidade, mesmo aquelas bem pequenininhas, tornando-se o grande acontecimento do momento. Nesse pesar incansável de perdermos a magia das coisas simples e uma síndrome de Peter Pan que carregamos, quase de forma unânime, ali, debaixo da lona colorida, mesmo as mais sujinhas e simples, está o convite ao “respeitável público” em permitir-se ser criança. Rir de bobagens, gargalhar de falas nonsense e completamente despreocupadas. Ficar com o olhar vidrado em técnicas de trapézio e equilibrismo.
Tem uma época em que a gente sai do estágio de “medo de palhaço” para achar tudo muito sem graça. Porém, foi me dado o desafio de repensar o circo. Lembrei das apresentações recentes que fui de grupos da cidade, com os quais fiquei maravilhada, como o Grão de Circo, na pracinha do São Mateus, fora os números avulsos que vemos em manifestações artísticas pela rua. O circo foi se moldando às vontades corporais – físicas e expressivas -, mas sem sobrepor ao que sempre existiu, sobre famílias que passavam de geração em geração esta tradição, viajando na garra e tomando à frente de tudo, desde a montagem da lona (e a luta por um terreno viável), divulgação do espetáculo, venda de pipoca, doces, até a apresentação das técnicas.
A primeira escola de circo brasileira foi a Academia Piolin de Artes Circenses, fundada em 1978, em São Paulo. Hoje parece haver novas intenções em se aprender as artes circenses, por isso as escolas permanecem existindo, surgindo e se reinventando, conectando com outras formas de arte: o teatro, a poesia, a música. Conversamos com duas escolas de circo da cidade, que surgiram em momentos diferentes, a Escola de Circo Carequinha e a Amplitud. A primeira começou em 2006, uma história de amor de palhaços que sobrevivem do circo, com o objetivo de vida em passar a tradição e o conhecimento para frente. Já a Amplitud, que começou em julho de 2015, é a história recente de duas amigas, uma circense, educadora física formada em circo em Belo Horizonte, e outra fisioterapeuta, trazendo um novo olhar para quem procura o circo como atividade física.
O policial que virou palhaço
Dolor Pereira, 72 anos, na época um jovem na casa dos vinte na capital de Minas Gerais. Parado na calçada, puxou conversa com Sandra Simões, ainda sem o “Pereira”, hoje com seus 70 anos. Nunca mais se viram, até que três ou quatro meses depois, no ano de 1971, enquanto apitava na Rua dos Tamoios, esquina com Rua dos Guaranis, uma moça da janela do táxi acenou e o chamou: “policial!”. Ela era palhaça. “Todo dia que eu saía do serviço eu ficava esperando ela no ponto de ônibus para ver se aparecia”, conta Dolor. E de fato se conheceram em uma destas tardes, quando, de surpresa, ela desceu da porta de trás do ônibus. Foi quando descobriu que Sandra era descendente de circo. Conheceu sua família, que fazia da palhaçaria uma sobrevivência. Foi assim que o atual palhaço Jamelão começou a aprender trapézio, atirar facas, técnicas de equilíbrio, até casarem-se e viverem os dois, Jamelão e Melancia (palhaça de Sandra), viajando o Brasil, inteiramente dedicados ao circo. Dolor explica que para ser dono de circo é preciso criar a partir de si mesmo um personagem-palhaço. O nome Jamelão veio das árvores da fruta que tinham ao longo da Avenida Rio Branco.
A vinda do casal para Juiz de Fora se deu em 1996, quando eles venderam um circo em Salvador (BA) e largaram tudo para estar ao lado da mãe de Dolor. “Como eu vivo de circo, sempre pude me mudar a hora que eu queria”, reforça ele. Chegando aqui, comprou arquibancada, mastro, estaca e ergueu de volta um circo itinerante. Dez anos depois, com a ideia de criar uma escola de circo, Dolor foi de bairro em bairro na cidade, a fim de escolher onde iria se instalar. “Quando parei no Bairro Caiçaras, lá não tinha asfalto, escolas, não tinha iluminação pública, praça, mas já tinha uma comunidade morando. Quando eu montei a escola de circo, eu descobri que existia a Lei Murilo Mendes, entrei e fui contemplado. Comprei lona nova e todo material necessário e, nessa brincadeira, criei uma escola de circo. Minha esposa questionou dizendo que não íamos ganhar dinheiro, mas eu falei: ‘não esquenta com isso não, meu negócio é não parar com o circo'”.
Todas as atividades da Escola de Circo Carequinha sempre foram gratuitas. Além das técnicas circenses, uma parceria com colaboradores permitiu que fossem oferecidas oficinas de macramê, bordado, fuxico e música, com violão. A escola também chegou a organizar, junto à Prefeitura, um cineclube gratuito para a comunidade, além dos espetáculos de circo, com entrada franca, para as crianças mostrarem tudo o que aprenderam aos amigos e familiares. “A periferia já é sofrida, se você cobra R$ 1, às vezes a pessoa já não tem condição de pagar. Meu interesse era servir a comunidade. O pessoal da universidade descobriu o projeto e passou a ir lá ter aula de circo.”
O circo como troca de saber
Deborah Lisboa, 30, é completamente apaixonada por circo. Desde o início da Faculdade de Educação Física do Granbery já enxergava o potencial desta arte, principalmente como um ensino completo na educação infantil. Mesmo com raras referências, conseguiu ter acesso aos estudos do professor Marco Antonio Coelho Bortoleto, da Unicamp, e saiu da graduação já com um estudo sobre o circo e uma platéia curiosa pelo assunto pouco explorado no curso. Seu aprimoramento e contato com uma rede de pessoas que têm o circo como um modo de viver se deu em Belo Horizonte, quando entrou para a Spasso Escola de Circo. Começou a participar de convenções nacionais, se encantou e organizou encontros de bambolê.
O retorno a Juiz de Fora, ela conta com naturalidade, foi porque se apaixonou. Largou sua escola em Belo Horizonte, passou o ponto e os alunos para uma amiga, voltou, se casou e hoje é mãe de um bebê com menos de um mês, que a acompanhava no dia da nossa entrevista. Em julho de 2015, fundou a Amplitud junto a fisioterapeuta Camilla Assad, 31, com a intenção de ser um espaço para cuidar do corpo, utilizando a parte física do circo, que pode ser bastante severa ou não, e mesclando com as vontades artísticas.
Deborah, desde a adolescência, corria do colégio direto para a Casa do Pequeno Artista, projeto da Amac, onde sua mãe trabalhava, para aprender um pouco de circo. Nessas idas, aprendeu a andar de perna de pau com Júlio Fênix, e com 15 anos já começava a participar de movimentos de teatro de rua. Sobre circo, Marcos Marinho, produtor cultural e palhaço, também foi importante para sua vivência e aprendizagem, que ao longo dos anos foi se fundindo à sua experiência enquanto mulher, militante e até mãe. No último espetáculo “268 dias” do grupo de pesquisa e criação da Amplitud, a apresentação foi teatral e sensorial, tratando de temáticas feministas que perpassam pelo o corpo da mulher, pela obstetrícia, com elementos da América Latina, em uma fusão de teatro, música, ginástica, dança “e o que você quiser enfiar no meio do circo”, define Deborah sobre os caminhos múltiplos que essa arte vem se tornando.
Dentro deste grupo de pesquisa, voltado para adultos que já praticam as aulas há algum tempo, a intenção é estar em contato com o aparelho de outras maneiras, experimentando seu corpo sem ficar aplicando muita técnica, que acaba aparecendo naturalmente em uma mistura de linguagens e de modos de fazer diferentes, às vezes peculiar a cada um. Essa é uma grande diferença para o circo tradicional, onde uma maneira de executar determinada técnica é passada de geração em geração. Com os bambolês, por exemplo, Deborah criou uma performance política, em que ela vai rabiscando palavras que transmitem sentimentos ruins, escritas em seu corpo por outras pessoas, com um bambolê lambuzado de tinta. “Os alunos de circo da Amplitud são pessoas que estão abertas a entender o mundo de outra forma, a atividade demanda esse olhar humano, solidário e companheiro o tempo todo. Não tem espaço para dizer ‘eu sei um truque e não vou te ensinar’. Eu vou te ensinar o truque sim, e a gente vai fazer junto. Eu quero mais é que você evolua mais do que eu. Não existe essa competição, é muito saudável, e tudo isso vem do espírito familiar do circo tradicional.”
A Palhaça Magrela criada por ela é puro improviso, tagarela e gosta de estar nas ruas, em meio à gente e o inesperado que pode despertar sua movimentação artística. “O palhaço é o que você é nas entranhas, é o que você é e quer esconder”, explica Deborah dizendo sobre uma profunda admiração que tem do ator chileno Rodolfo Meneses, o Palhaço Tuga, com quem teve oportunidade de troca e conhecimento em Belo Horizonte.
“O circo tradicional te traz o conhecimento das famílias, e no circo que a gente chama de contemporâneo, a gente aprende com os amigos e conectando com outras pessoas. A gente é conectado o tempo todo e se ajuda muito. Então acaba que esse espírito familiar que sempre existiu, a galera de agora tenta preservar de alguma forma, pela irmandade e trocas de saber.”
Resistência
Dolor Pereira, que quando criança vendia bala nos circos só para conseguir assistir aos espetáculos, passou a viver para servi-lo. Após dez anos com a Escola de Circo Carequinha funcionando em um terreno do Bairro Caiçaras, ele está em busca de um novo local para reerguer a tenda e seus projetos. O prazo acordado com a Prefeitura para permanecer na área terminou, e as atividades estão suspensas até que encontre um lugar amplo e gratuito para seguir com o sonho de ensinar e propagar o circo.
Quanto aos circos itinerantes, é preciso muita força de vontade para que essa tradicional atividade continue viajando e se instalando de cidade em cidade. “Eu cultuo muito o circo tradicional. Se a gente faz circo, se a gente se apaixonou, se hoje eu consigo ensinar alguma técnica é graças a essas pessoas que estão lá. E essa galera que está conseguindo trazer circo para a cidade é uma galera de muita resistência, porque hoje em dia não tem mais espaços para eles, não tem mais terrenos na cidade, e os terrenos de shopping são caríssimos, é muito difícil sobreviverem”, reflete Deborah.