Um mergulho na ‘Universidágua’
Quinta passada eu me encontrei com André Monteiro, professor, poeta, no Bar Cascatinha para falarmos sobre seu novo livro – o terceiro este ano -, escrito a quatro mãos com Luiz Fernando Medeiros, também professor, poeta. “Universidágua: pedagogia de sonhar líquido” (Editora Bartlebee), será lançado quinta-feira (15), às 19h, no Arteria. Sentamos para algumas cervejas à mesa imortalizada em memória do finado chargista Bello, cujo talento fluiu no leito das páginas desta Tribuna por mais de duas décadas, e proseamos. Conheço André desde 2012, quando cursei uma disciplina isolada ministrada por ele no programa de pós-graduação da Faculdade de Letras da UFJF. Depois tornei-me seu orientando no curso de mestrado e assim continuo no doutorado. Portanto, caro leitor, não espere desta narrativa qualquer distanciamento objetivo.
Naquela sala de aula, André falava de Nietzsche, Deleuze, Sócrates, Oswald. Chovia filosofia. Nesta mesa de bar, reitera suas convicções fluidas. Chove água. Essa “pedagogia de sonhar líquido” é seu modus operandi no projeto de escavar o chão duro da academia em busca de minas e poços e aquíferos, derrubando as paredes departamentais para vazar aquedutos onde flua o imponderável. E “Universidágua” é seu manifesto em defesa de uma outra universidade, diferente da que ora vigora. Pode-se até entender o livro como utópico, mas não uma utopia para o futuro, e sim uma utopia para viver pelas brechas dominantes da academia. “É um manifesto, ainda que não seja um manifesto explicativo”, ressalva André. “É um ensaio que é também poesia. Se propuséssemos tudo o que propomos e fizéssemos um livro dentro de uma linearidade esperada pela academia, com introdução, desenvolvimento e conclusão, estaríamos fazendo a mesma coisa que já vem sendo feita há décadas.”
Em “Universidágua”, forma e conteúdo estão imbricados um no outro. São textos breves, por vezes brevíssimos (“vestibulando: / aqui falo agora água. aprendendo a nadar.”), intuições ambientadas na estrutura física da universidade (“cantina espinosa: / o corpo ali encontrará respiração e porosidade. encontro dos / órgãos, dos tubos, dos chacras. ventilando tudo. a des-departamentalização do outro.”), nos seus órgãos (“chacal na secretaria de comunicação: / ‘ter um nome a zerar.'”), nos seus procedimentos acadêmicos (“metodologia: / pororocas. cachoeiras. igarapés. mangues. marolinhas. / tsunamis. para além da barra pesada, outros beats.”). Nas palavras de André, “são intervenções que não concluem, que sugerem coisas. E o leitor talvez possa também se fazer membro desta universidade. São relâmpagos, aforismos, sugestões que o convidam a pensar com estas ideias.” Não há dogma na “Universidágua”. Água correndo.
Liquidificador de durezas
“Universidágua” é um desdobramento do livro anterior de André e Luiz Fernando, “Liubliblablá: mastigações de um camelo”, lançado no ano passado. O camelo, o erudito da universidade, animal de carga que apenas acumula e reproduz conhecimento, sem criar nada de novo, é liquidificado em busca de uma levitação para além do peso dos saberes formalmente constituídos e que impedem a vida em suas imprevisibilidades. Na água, eles remam nesta provocação à academia. “O mundo acadêmico não é montado para receber a vida como alguma coisa inesperada, como acontecimento da ordem do impossível. A pesquisa na universidade é feita para dar certo, para ser viável. E seu grande equívoco é justamente não levar em conta a possibilidade do erro, pois só se cria com o erro, com a ‘contribuição milionária de todos os erros’, para lembrar o Oswald (de Andrade, no “Manifesto Pau-Brasil”)”, critica André.
Enquanto pedimos mais uma e molhamos a palavra, o professor não nega que ele próprio está também “no esquema” seco da universidade. Bolsista de produtividade, submete-se à aridez. “Mas estou tentando furar as paredes duras para fazer com que essa água vaze.” E sabe também que não está sozinho. Outros buscam contornar as pedras surfando corredeiras. “Não somos apenas eu e o Luiz Fernando, há várias outras pessoas, cada um à sua maneira, buscando essa fluidez, como o Alberto Pucheu (citado em epígrafe), o Roberto Corrêa dos Santos (citado no texto), o próprio Alexandre Faria (professor e poeta que assina a orelha do livro). E estudantes também.”
Bruce Lee e Deleuze
Liquefeito na estética do ensaio e da poesia, do fragmento e da paródia, “Universidágua” recorre a Pucheu e Roberto Corrêa, Espinosa e Deleuze, mas também a Bruce Lee e Clementina de Jesus, Henry Miller e Jards Macalé, equilibrando-se entre o erudito e o popular, furando ondas indiscerníveis entre o de-dentro e o de-fora. O linguajar engessado do “halterofilismo acadêmico”, com seus objetivos e justificativas e conclusões e referências bibliográficas, é subvertido pela sintaxe do poema.
– A língua de boi aqui é muito boa, já provou? – comenta o poeta.
– Eu já. A maçã de peito com batatas também – replico. E ele continua.
“O leitor faz o que quer com o texto, mas o meu propósito é que a experiência estética funcione como manifesto e que o manifesto só funcione como experiência estética”, projeta André, ciente de que o livro está inscrito numa realidade acadêmica, mas esperançoso de que não se reduza a isso. “Não é um livro para moralizar nada. É, sim, pedagógico, mas num sentido amplo. Porque você pode ser pesquisador fora da universidade também. O guitarrista está fazendo pesquisa com sua guitarra. O surfista faz pesquisa com sua prancha. O dono de bar faz pesquisa. O cozinheiro. É uma pedagogia do sonho. Mas não um sonho impossível, irreal. Um sonho que se sonha acordado. Uma irresponsabilidade saudável.” E ri.
Antes que a chuva volte lá fora, pedimos a conta.
Que também não precisamos de toda água do mundo.
Lançamento de livro de André Monteiro nesta quinta-feira (15), às 19h, no Arteria (Rua Chanceler Oswaldo Aranha 535 – São Mateus)