Documento de embarque


Por Tribuna

13/09/2016 às 07h00- Atualizada 13/09/2016 às 10h03

Autorretrato de Leonardo Lina, que faz mostra relâmpago com quatro trabalhos em cartaz UFJF de terça a quinta-feira

Autorretrato de Leonardo Lina, que faz mostra relâmpago com quatro trabalhos em cartaz UFJF de terça a quinta-feira

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Dia desses Leonardo Lina estava no ponto de ônibus, mas não queria ir para a casa. “Esperei um ônibus que nunca vinha, deixava alguns passarem”, recorda-se para responder à questão sobre como foi escolher deixar seu país para concluir a graduação em artes visuais em Berlim. “Acho que não existe tempo para nada. Eventualmente achamos que aquela é a hora de algo e acaba sendo. Não acho tão complicado ter feito essa escolha”, diz o artista visual que aos 26 anos faz as malas para o embarque com data certa: dia 18 deste mês. Quando volta? “Voltaria em 2018, mas é provável que tenha férias e eu apareça por aqui”, conta, pronto para um voo que representa mais do que o deslocamento.

“It’s time to say goodbye”, exposição que inaugura nesta terça-feira e permanece aberta até quinta, na Galeria Guaçuí, do Instituto de Artes e Design da UFJF, é seu ato de adeus. Ritual de passagem. Nos quatro trabalhos, Lina observa o lugar no qual se fez e projeta o desconhecido que ainda o fará. “Quero discutir a possibilidade de ocupar espaços diferentes e como isso é percebido por pessoas diferentes”, pontua ele, que na instalação “I am not here but I am not there” reúne uma carta de uma amiga ao passaporte que usará para o traslado, além de outros documentos dando conta da travessia.

Como ser aceito em outro lugar?, pergunta-se o artista, ancorado no trabalho imagético e intelectual da portuguesa Grada Kilomba, radicada na mesma Berlim onde Lina deseja escrever o complemento de sua formação iniciada na UFJF. “É muito interessante a maneira como a Grada aborda o lugar onde a voz dela se encaixa. Tento trazer isso para meu trabalho”, comenta ele, carioca de Barra do Piraí transferido ainda muito pequeno para Juiz de Fora. De uma cidade com menos de 100 mil habitantes, saiu para outra, de pouco mais de 500 mil e, agora, se arma para uma gigante com seus mais de 3,5 milhões de moradores. Assustador? Não. “Vejo como uma superoportunidade de estar perto de um núcleo da arte contemporânea mundial, sabendo o que acontece em outros países. É exatamente isso o que busco. Vai me fazer crescer”, aposta.

‘O ser que a gente acaba sendo’

El não vai desbravar, mas entregar-se. A capital alemã não é terra desconhecida para Leonardo Lina. Há cerca de seis meses o artista regressou de Berlim, após concluir um intercâmbio universitário. Com uma carta de aceite nas mãos, desta vez, porém, retorna para concluir sua graduação na Universidade das Artes de Berlim (UdK), sob a orientação da professora e também artista Hito Steyerl, uma das 81 integrantes da 32ª Bienal de São Paulo, maior mostra de arte do país inaugurada na última quinta-feira.

Com pouco mais de dois anos pela frente para completar os estudos, Lina se prepara para pertencer. Não será passageiro. E isso encerra questões importantes acerca de identidade, viés de relevo na obra do artista, cujo autorretrato em três atos vai se desfocando, sem deixar de destacar o colorido das unhas pintadas de azul. “Ele passa pela identidade, mas também tem uma independência de um querer filosófico. Onde podemos estar presente? Isso me preocupa muito. Esse ser que a gente acaba sendo sem saber o que quer de verdade”, analisa, fazendo a mesma poesia que envolve as imagens.

Ainda que a fotografia tenha sido, por algum tempo, o principal suporte de um artista que trafegava pela potência das imagens, o papel surge com força discursiva maior. “Quero discutir o valor que se atribui aos papéis. Cada um tem um valor diferente se separado. Mas se juntarmos, eles influenciam uns nos outros. Quando viajei descobri que meu trabalho passa pela natureza das imagens, querendo saber de onde elas vêm, mas também perpassa as questões sociais e identitárias. Existe uma quebra entre o que é mundo e o que é imagem e isso me incomoda”, comenta ele, que faz da questão do gênero não apenas um tema, mas uma vivência diária. “É o que eu sou.”

Render-se ou não

Ao desembarcar após cerca de meio-dia de viagem, Leonardo Lina encontrará a cidade do Museu Hamburger Banhof, uma estação de trem revitalizada para abrigar a contemporânea da National Galerie. Também terá acesso ao Museu da Bauhaus, uma aula de design. Sem falar dos mais de 1,3km da East Side Gallery, com mais de cem grafites numa porção restante do Muro que dividiu a Alemanha e o mundo. Berço de um pensamento constantemente atualizado acerca das artes, Berlim possui mais de 180 museus de arte, história e ciências. Lina encontrará a régua exata para desenvolver um trabalho fresco. E também viverá o desafio de se fazer novo num ambiente artisticamente transgressor.

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“Tem muitos clichês na arte contemporânea, mas não é algo do agora. Preocupo-me por não cair neles, mas também por conseguir ver quando minha poética se alimenta deles. Os documentos são um clichê da arte contemporânea, mas diz do não criar imagens num mundo cheio delas. Lógico que não é preciso estar sempre se apropriando delas, mas também trata-se de um incentivo a fazer isso”, diz, referindo-se à instalação com seus objetos pessoais, outro traço de seu trabalho que bebe na fonte do que é feito hoje. “Meu trabalho tende a ser muito conceitual, tem um lado bastante autobiográfico, que faz com que memórias se transformem em imagem e tem uma tendência discursiva. Tendo à escrita no futuro”, diz. Por falar em futuro, o que espera além do voo? “Viver do mundo da arte”, responde, na mesma segurança de quem escolhe dizer “goodbye” pela emoção da arte.

‘IT’S TIME TO SAY GOODBYE’

De Leonardo Lina

Visitação de terça a quinta-feira, das 10h às 19h

Galeria Guaçuí

(Instituto de Artes e Design da UFJF – Campus universitário)

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