Fundador do Museu de Arqueologia e Etnologia Americana da UFJF morre aos 101 anos
Austríaco radicado no Brasil, professor e pesquisador da UFJF Franz Joseph Hochleitner dá adeus oito dias depois de ver inscrito seu nome na história científica e artística de Juiz de Fora
Especialista na interpretação de códigos, ideogramas e hieróglifos de culturas antigas, o austríaco Franz Joseph Hochleitner investigou, ao longo de sua vida, o enigma da Porta do Sol, portal localizado no sítio arqueológico de Tiahuanaco, na Bolívia. Pesando cerca de dez toneladas, a estrutura esculpida num único bloco de andesite guarda mistérios sobre os quais o professor e pesquisador da UFJF se debruçou. Profissional responsável por aperfeiçoar a radiocomunicação da Força Aérea Alemã durante a Segunda Guerra Mundial, Franz dedicou-se a sistemas complexos. Aos 101 anos, despediu-se apenas quando transpôs ilógicas regras que teimavam em não reconhecer sua coleção pessoal, com exemplares raros da cultura pré-colombiana dentre outras peças de reconhecida relevância histórica, como um dos significativos museus universitários. Quatro dias após dar seu nome a uma das salas do agigantado Centro de Ciências da UFJF, Franz foi internado com insuficiência respiratória. Na noite de terça, 11, no Hospital São Vicente de Paulo (antigo HTO), exatos oito dias após ter reconhecido seu esforço científico, artístico e íntimo, o homem naturalizado brasileiro saiu de cena. Enterrado na quarta, 12, no Cemitério da Paróquia de São Pedro, bairro onde morou grande parte de sua vida, Franz deu adeus quando certificou-se de sua permanência.
“O professor Franz foi um grande mestre. Vários alunos foram atraídos por seu empenho e simpatia”, emociona-se uma de suas mais fiéis aprendizes, a pesquisadora Luciane Monteiro Oliveira, que conheceu o estudioso em sua graduação, na década de 1990, e desde então acompanhou seus passos, tendo vivido os últimos cinco anos a seu lado. “Ele tinha uma resiliência muito grande, conseguia lidar com as adversidades sem perder a educação, o carinho e o carisma”, reforça Luciane.
Parte da resignação foi posta à prova quando, em 1986, ao se aposentar das salas de aula do departamento de história, Franz doou sua coleção arqueológica com a condição de que a universidade criaria um espaço específico para as peças que incluem pontas de flechas e crânios pertencentes a tribos tradicionais americanas. Vivendo em São Pedro, o intelectual frequentou, diariamente, a sala onde ficava sua doação, no campus, até que, em 1999, sofreu um AVC e se viu debilitado e fragilizado para a luta, logo encampada por alunos e alunas, como Luciane.
Um cientista dedicado
“As pesquisas eram realizadas, mas não havia um reconhecimento institucional. Conseguimos nos impor por nosso trabalho e chegamos a ocupar uma sala no Museu de Arte Murilo Mendes. Tudo degringolou, quando a sala onde estava o material foi fechada entre 2010 e 2011. Por um período, ficamos no limbo, até que há alguns poucos anos reiniciamos as negociações para compreender a coleção como museu. O professor acompanhou o processo de montagem dessa sala que leva o nome dele no Centro de Ciências da UFJF e estava muito emocionado e entusiasmado”, comenta Luciane.
Com fortes dores de garganta, o centenário não participou da cerimônia de abertura do espaço no campus no último dia 3. Conectado, todos os dias jogando paciência no computador, viu fotos de todo o complexo e da sala dedicada à arqueologia. “Foi uma realização para ele. Ele teve uma satisfação muito grande nessas últimas semanas. Não externou, mas deixou claro para todos os que conviviam com ele que havia cumprido uma missão”, emociona-se a também pesquisadora, que assinou ao lado do mestre trabalhos como o artigo “Estudo etno-histórico da literatura dos viajantes e naturalistas estrangeiros em Minas Gerais no século XIX”.
“A morte do professor Franz Hochleitner nos causa enorme desolação, por representar uma perda inestimável para todos que conheceram sua dedicação à UFJF e em especial ao Museu de Arqueologia e Etnologia Americana (Maea), criado por ele na década de 1980. O professor Franz deixou um exemplo formidável de vocação científica e estímulo à pesquisa acadêmica”, reconhece a pró-reitora de Cultura da UFJF Valéria Faria, responsável pela montagem e manutenção da sala que leva o nome do professor no Centro de Ciências.
“Seu empenho e entusiasmo pela investigação legou à UFJF um de seus acervos de maior valor cultural. A Pró-Reitoria de Cultura sente-se honrada em cuidar de seu acervo, que passou a contar com uma sala em sua homenagem. É o nosso modesto tributo em reconhecimento a seu nobre trabalho.”
Raízes construídas
Investigador de ancestralidades, Franz Joseph Hochleitner fez das próprias raízes um silêncio a representar as dores que carregava consigo. Sua participação na guerra e a juventude na Áustria, conforme recorda Luciane, não faziam parte de suas falas frequentes. “Como ele recomeçou a vida no Brasil, partindo do zero, evitava comentar esses assuntos. Ele sempre disse que sua pátria era o Brasil, onde estava a família que construiu”, pontua ela, citando a vida social que o mestre levou até o fim. “Ele gostava de ir à Festa Alemã. Proporcionava atividades mais simples para ele nesses últimos anos, como ir ao shopping ou a um bar tomar chope. Ele gostava muito de gente.”
Tudo o que Franz não disse durante sua trajetória escreveu em “Memórias autobiográficas de Franz Joseph Hochleitner”, autobiografia lançada em 2005. Nela está escrito o nome do amigo Hermmann Mathias Görgen, filósofo alemão que em 1941 conseguiu trazer para o Brasil 48 vítimas do nazismo cruel de Hitler, dentre elas, Franz, que deixou os pais, duas irmãs e um irmão, hoje já falecidos, para trás. Na vinda, trouxe também a esposa (já falecida) e a filha de um ano, hoje com 70, residente na Alemanha, onde teve um filho, que lhe deu dois netos, portanto, bisnetos de Franz. “Adoro o Brasil e Juiz de Fora”, disse o professor em entrevista à Tribuna, em 1991. “Sou um brasileiro fanático, apesar de muitos defeitos que o nosso povo tem, mas que os outros povos também têm. O Brasil é inegavelmente a primeira Nação da América do Sul em tecnologia, cultura e progresso.”