Do luxo ao (quase) esquecimento
Vamos combinar que o destino age de forma irônica, mais vezes do que imaginamos e – como é de se esperar – quando menos se espera. O livro “Os cinemas de rua de Juiz de Fora: Memórias do Cine São Luiz” será lançado nesta quarta-feira (14), às 19h30, na Planet, justamente no mesmo dia em que o Cinearte Palace, o último cinema de rua da cidade, fecha suas portas após as exibições de “Mulher-Maravilha” e “Perdidos em Paris”, do Festival Varilux de Cinema Francês.
E a publicação, financiada por meio da Lei Murilo Mendes, já carregava em suas páginas o caráter premonitório do encerramento das atividades da dupla de salas localizada na esquina das ruas Halfeld e Batista de Oliveira, mais exatamente entre as páginas 27 e 28, quando diz que o Palace pode “encerrar suas atividades cinematográficas a qualquer momento.”
A professora de comunicação da UFJF Christina Musse foi a orientadora – assim como a historiadora Rosali Maria Nunes Henriques – do então estudante Gilberto Faúla Avelar Neto, que decidiu pesquisar a respeito do Cine São Luiz para seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Para ela, é uma coincidência impressionante o fechamento do Palace acontecer justamente no dia do lançamento do livro, que resgata a história da sala de cinema que esteve por maior tempo em funcionamento na cidade: exatos 52 anos, entre 1955 e 2007. “O São Luiz teve uma trajetória muito parecida com a de outras salas de Juiz de Fora, que começaram com muito luxo, mas, com o passar dos anos, tiveram que exibir filmes pornográficos para sobreviverem”, relembra a professora.
Cinemas diferentes, relações diferentes
O TCC e o posterior livro são um dos desdobramentos do projeto “Cidade e memória – A construção do imaginário urbano a partir das memórias audiovisuais”, que Christina Musse desenvolve na UFJF e já resultou em outros artigos, dissertações e até mesmo uma websérie, que pode ser assistida no link www.pesquisafacomufjf.wordpress.com. “Foi daí que surgiu a reflexão sobre a questão dos cinemas de rua em Juiz de Fora, que faz parte da relação entre o audiovisual e a memória de Juiz de Fora”, explica Christina. “Ele envolvia todo um ritual de ir ao cinema.
Percebemos nas pessoas uma memória apaixonada sobre esses rituais que criavam hábitos de frequentar um mundo diferente do dia a dia que se vivia, de se mergulhar em um universo diferente e compartilhá-lo depois, completamente diverso da experiência de se assistir a um filme em casa.”
Ainda de acordo com a professora, a relação do espectador com os cinemas de shopping centers é muito diferente da que havia com as salas de rua. “Não existe aquela relação com o espaço público que havia ao ir e sair do cinema, que era inebriante. E daí a questão do Palace se torna intrigante, pois não é apenas a questão do espaço, mas como ocupamos este espaço. Juiz de Fora passa por um momento de transição em que não sei se as pessoas percebem a perda de não se ter mais este cinema, o seu café, ali no Centro, de que a cultura é algo indissociável ao ser humano. São espaços que dão outro sentido à cidade, seja um cinema, um museu, um café, uma livraria.”
Trajetória demais de 50 anos
Foi a partir desses estudos sobre as relações da população com o audiovisual, em especial as salas de cinema de rua, que Gilberto Faúla Avelar Neto, de acordo com Christina, foi atraído pela trajetória do São Luiz. “Ele pesquisava as programações dos cinemas nos arquivos e ficou muito tocado pelo caso do Cine São Luiz”, diz. Para a pesquisa, Gilberto recorreu ao setor de memória da Biblioteca Municipal Murilo Mendes para encontrar reportagens e fotografias, além de procurar as antigas plantas do prédio construído em 1937 e que foi adaptado para se tornar um espaço de cinema com mais de 800 cadeiras. Foram utilizados, ainda, material de particulares e entrevistas com antigos frequentadores e ex-funcionários do cinema.
Com pouco mais de 90 páginas, “Os cinemas de rua de Juiz de Fora: Memórias do Cine São Luiz” detalha a expectativa pela chegada do cinema na Praça Doutor João Penido (a Praça da Estação), e sua inauguração, em 13 de julho de 1955, com a presença da elite juiz-forana e a exibição do sucesso “Rebelião no presídio”. Passa também a relembrar o período áureo da sala, em que exibia primeiro os lançamentos para incentivar o comparecimento de quem apenas frequentava as salas da parte alta da Rua Halfeld, e parte para o início da decadência, na década de 70, com a exibição de pornochanchadas, teatro erótico (com atores nus e sexo explícito), até chegar aos anos mais difíceis, a partir da década seguinte, com o Cine São Luiz se dedicando apenas a filmes pornográficos – situação que permaneceu até seu fechamento, em 2007.
Histórias que poucos aceitam contar
É desse período alguns dos mais difíceis depoimentos coletados por Gilberto para o trabalho, visto que muitas pessoas tinham – e ainda têm – vergonha de falar que frequentavam o São Luiz nessa época em particular, quando a sala servia de ponto de encontro para homossexuais e prostituição. “Foi mais difícil em relação aos depoimentos para outros cinemas, pois são poucos os que aceitam dizer que assistiam aos filmes de pornochanchada ou pornográficos. Muita gente que já morreu, ou que trabalhou lá, não gosta de comentar por causa da (má) fama, pois nas últimas décadas o São Luiz ficou marcado pelos filmes pornográficos. Era preciso ter autorização para utilizar os nomes dos entrevistados, e muitos só aceitaram falar se não tivessem seus nomes divulgados”, diz Christina.
“O Gilberto correu muito para conseguir os depoimentos. Tenho certeza de que muitas pessoas, agora que o livro saiu, vão dizer que tinham história para contar. Sempre foi mais fácil encontrar quem quisesse falar do Excelsior, do Palace. As pessoas têm muita vontade de compartilhar as memórias afetivas, adoram falar de cinema, só que em relação ao São Luiz é mais complicado. O Gilberto fez um trabalho maravilhoso ao convencer os entrevistados.”
Por fim, Christina Musse acredita que o livro será importante por mostrar não apenas a trajetória do Cine São Luiz, marcada pelo glamour e pela decadência, mas também por revelar as diferentes relações afetivas que o público teve com a mais longeva sala de exibição de Juiz de Fora, hoje ocupada por um estabelecimento comercial. “Nós temos, em relação a Juiz de Fora, uma relação com o concreto que é marcada pelo simbólico. Nossas relações são marcadas pelas histórias que ouvimos. Essas narrativas criam um espaço urbano que ultrapassa o aspecto concreto, passamos a ter uma cartografia da cidade que é de cada um.”