Conheça as exposições abertas no Jardim Botânico da UFJF

Duas novas e bem equipadas galerias de arte na cidade preservam a intenção de servir como palco a esculturas a céu aberto


Por Mauro Morais

13/04/2019 às 15h46- Atualizada 13/04/2019 às 15h47

Nos porta-retratos, fotografias de uma mesma família e imagens de grupos indígenas e negros escravizados. Como uma escavação, o trabalho “Malícia”, assinado por Preto (outra persona assumida pelo artista visual Vermelho) resgata as raízes do Jardim Botânico da UFJF. A instalação, que integra a exposição “Entre enigmas e percursos”, em cartaz na casa-sede do novo parque, fixa sobre a terra do próprio local molduras coloridas, eminentemente kitsch, contendo registros de passados distante e recente. Em alguns dos retratos estão familiares de Preto. Em outros, possíveis antepassados, já que seu avô materno descende de escravos e a avó materna, de povos indígenas. “Nossas raízes foram perdidas. Nessas fotos podem ter ancestrais nossos e não sabemos”, comenta o artista, que numa das varandas da casa montou o projeto que se equilibra entre as linguagens ficcional e documental, entre a autobiografia e a escrita da narrativa coletiva, atuando como um recurso arqueológico.

De acordo com Gustavo Taboada Soldati, professor do departamento de botânica da UFJF e diretor do Jardim Botânico, num retorno no tempo é possível apontar a ocupação de região antes mesmo da chegada dos portugueses. E tal resgate está expresso nos nomes das salas e das galerias da casa-sede. “Pensamos em valorizar, de uma forma respeitosa, as culturas indígenas viventes de Minas Gerais. As pessoas acham que no estado não existem índios, mas existem, no mínimo, 14 nações indígenas. Para as galerias demos três palavras do povo Puri Coroado, nação que vivia na região de Juiz de Fora. Essas três palavras significam muito para o Jardim Botânico: ‘Tchóre’, ‘Mehtl’on’ e ‘Tlegapé’ significam, respectivamente, mata, luta e resistência. Nas nove salas a gente homenageia alguns dos povos indígenas viventes em Minas Gerais: tem as salas Catú-Awá-Araxás, Puris Coroados, Krenak-Borum, Maxakali, Mucurim, Kaxixó e Xakriabá. São grupos resistentes no estado”, aponta Soldati, chamando atenção para o projeto político-pedagógico do complexo, cujo princípio prevê o diálogo dos saberes acadêmicos com o conhecimento dos camponeses, dos povos quilombolas e indígenas e das comunidades tradicionais.

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Casa sede abriga duas galerias de arte (Foto: Marcelo Ribeiro)

Resistência verde

O negro escravizado também está nas raízes do local, que viu nas últimas décadas a área onde funcionava o cafezal das antigas fazendas ser completamente reflorestada, num esforço que se inicia nos primeiros anos do século XX. Parte da Fazenda da Tapera, a Fazenda Retiro Novo foi comprada pela família Krambeck ainda em 1901. Denominado Bons Ayres, um largo pasto tinha como dono o fazendeiro e tenente Albino Esteves dos Reis e também foi adquirido pelos Krambeck, donos do curtume de mesmo nome. O terreno, então, passou a se chamar Retiro Velho e recebeu mudas de espécies características da Mata Atlântica para o reflorestamento da área. Em 1938, Pedro Krambeck adquiriu mais uma parte da região, o Sítio Malícia, já transformado num loteamento popular. Com os planos de tornar o lugar sua residência, o empresário arrematou os lotes já vendidos e deu início a um complexo planejamento paisagístico do terreno, com a instalação de lagos artificiais e o plantio de árvores como as grandes araucárias que hoje enfeitam o local.

“Nenhuma dúvida, portanto, poderia existir que, quando essa firma, de meus tios-avós (os Krambeck) adquiriu o citado sítio, era este uma propriedade rural, em que se criava gado, sendo as suas terras cobertas por pastos e não pela vegetação característica da Mata Atlântica”, escreveu, em artigo para a edição do dia 26 de junho de 2007 da Tribuna, Anna Elisa Surerus, última proprietária, antes da UFJF, do Sítio Malícia, comprado pelo pai. “As singularidades desse Jardim Botânico são muitas: a própria proximidade com o centro urbano de Juiz Fora, já que estamos há menos de 3km do Parque Halfeld, que é um epicentro da cidade; também temos aqui um histórico de conquistas e lutas populares por essa área, que por duas vezes foram alvo da tentativa de conversão, primeiro, num bairro popular, depois, num condomínio de luxo. Essa mata resistiu ao processo de ocupação e ampliação da cidade”, pontua Soldati, apontando para o diálogo com esse histórico e com a natureza que as duas galerias expositivas deverão estabelecer.

Uma das galerias abriga arte contemporânea (Foto: Marcelo Ribeiro)

Arte, pesquisa, natureza

Ainda que o amplo espaço verde seja um latente convite para que o Jardim Botânico receba esculturas a céu aberto, aos moldes do famoso Inhotim, fazendo da arte um estímulo ao mergulho nas discussões sobre biodiversidade, o projeto artístico do novo parque se limita à casa sede. Segundo a pró-reitora de Cultura Valéria Faria, que irá coordenar as galerias, um jardim de esculturas está nos planos futuros. Por enquanto, uma das galerias preservará uma mostra permanente, com aquarelas de Raphael Dutra sobre pássaros e plantas da região, e a outra funcionará por edital, em produção, contemplando a arte contemporânea. “Acredito muito na junção da arte com a pesquisa acadêmica e com a natureza. Como pró-reitora, artista e professora, vejo esse novo espaço como uma conquista para a universidade e para toda a cidade. Hoje vemos galerias tão importantes fechando as portas, então inaugurar esse espaço é um privilégio”, destaca Valéria. “É mais uma oportunidade de trazer os talentos da cidade, não somente da universidade. É um espaço aberto para todo artista. Quando fazemos uma exposição, há um trabalho de doação, cada artista investe no próprio trabalho, então não exige um grande custo da UFJF manter esse espaço. Ela oferece a estrutura, a possibilidade de visitação do público, e o artista é quem faz o investimento maior com seu trabalho. Para a universidade, esse é um projeto muito interessante, com um baixo custo”, garante.

“Malícia”, assinado por Preto, resgata as raízes do Jardim Botânico da UFJF (Foto: Marcelo Ribeiro)

 

Registro do presente na natureza

Numa lasca de gesso, referência para casa e construção, e num pedaço de couro a artista Marize Moreno estampou duas fotografias do Curtume Krambeck. Seu trabalho, que integra “Entre enigmas e percursos” ao lado da instalação de Preto e outros dez artistas, usa linguagem atual para resgatar a memória do lugar que ocupa. Da mesma forma faz Valéria Faria, que cria em conto, fotografia e colagens uma narrativa ficcional a partir do dado de que coelhos foram criados no antigo sítio. “Quando vi a casa dos coelhos que tem ali, fiquei muito impressionada. Eram 36 casas de criações de coelhos. Em algumas ainda existem as portinhas. Então, comecei a pensar que se trata de um lugar tão, tão antigo. Quando o Brasil foi descoberto, estimam que cerca de cinco milhões de índios já habitavam o país, inclusive aqui. Fiquei pensando nisso, no que aconteceu nesse paraíso ao longo desses anos, como era a família que vivia aqui com a criação dos coelhos. Como já trabalho com memória, escrevi o conto ‘O conforto das lágrimas’ e criei uma narrativa de uma mulher, a Veruska Nava, que morava aqui com os coelhos alquimistas. Na história, passaram-se muitos anos e ela acorda no momento atual, muito assustada. Fiz uma ficção com a paisagem”, explica a artista e curadora da mostra, ao lado de Washington da Silva, que por sua vez, faz uma fotoperformance com alterações gráficas e faz poesia visual.

Num registro de parte da mata, Washington aparece deitado, contemplativo, em dois caminhos distintos. “Tenho nesse trabalho o caminhar como prática artística. Eu já tenho uma relação com a ecologia e com o meio ambiente. Nesse trabalho específico, encontrei as duas trilhas, que me fizeram pensar muito na questão da pausa. Tenho duas possibilidades pelas quais posso trafegar e na pausa aciono a inteligência, porque cada caminho pode traçar realidades e dimensões diferentes. Meu corpo está copiado nelas e o entendo como um satélite que pode viajar em diferentes dimensões”, comenta ele, chamando atenção para a harmonia alcançada pela mostra que reúne professores e alunos do Instituto de Artes e Design da UFJF, em linguagens, recursos e suportes ora distintos, ora semelhantes, ora antagônicos. Higor Soffe, com suas fotografias com interferência de sinais gráficos de uma máquina de escrever, surge mais técnico em contraposição ao trabalho orgânico e perene de Lucas Soares, com suas folhas estampadas.

Numa lasca de gesso e num pedaço de couro, a artista Marize Moreno estampou duas fotografias do Curtume Krambeck (Foto: Marcelo Ribeiro)

Como Preto, Raízza Prudêncio também resgata a potência da afrodescendência numa referência à força das matas. Matheus de Simone também recolhe nas reminiscências a relação do local com os militares e num fragmento de madeira acrescenta uma fotografia antiga de militares nus em cena descontraída. O objeto, com as marcas de uma mão vermelha, remete a um tosco porrete. O trabalho, portanto, denuncia e poetiza. Como Valéria, Letícia Bertagna também elabora uma narrativa que associa texto e imagem, apontando para o subjetivo no trampolim do lago do jardim e na janela da casa sede. Nina Cristofaro, assim como Karina Orquidia, registra trecho do parque, em olhar sensível e delicado. Ricardo Cristofaro, por sua vez, transborda o que há nos registros e elabora novas perspectivas do espaço. “Existe na exposição um desejo de pesquisar o invisível da paisagem”, avalia Valéria Faria.

Retratos dos artistas da natureza

O Tangarazinho pousa na Pixirica, uma planta parente da quaresmeira. Come o vegetal e voa. Depois de algum tempo, regurgita as sementes na beirada da mata. Numa região onde a floresta está degradada, passa a ajudar a plantar as árvores que vão recolonizar o local. “Ele acaba plantando florestas”, assinala Raphael Dutra, que registrou a ave e a planta numa das 30 aquarelas de “Aves da Mata do Krambeck”, exposição permanente que ocupa a casa sede, apresentando os grandes e belos personagens do Jardim Botânico da UFJF. “Ali é uma área muito importante, porque estamos dentro da cidade. Fiquei muito feliz porque uma espécie de ave que encontrei, a Maria Cabeçuda, teve seu primeiro registro em nossa região. O registro mais próximo que se tinha dessa ave era no estado do Rio de Janeiro. Consegui fazer isso aqui dentro do Bairro Santa Terezinha, tenho a vocalização dele gravada. É uma área muito rica, e facilmente passa de 200 espécies de aves. Tenho uma listagem que vou lançar na internet com as aves que registrei durante todo esse tempo, como o Gavião Pernilongo, uma ave que não é muito comum na região e com a qual tive contato aqui. Tem muitas aves de ambiente aquático e de brejo. Tudo está muito bem preservado. Até a nascente do lago está protegida, garantindo a permanência do lago e também de saracuras, garças, frango d’água e muitos outros bichos”, comenta o artista, que começou a desbravar o parque em 2014.

Mostra permanente com aquarelas de Raphael Dutra sobre pássaros e plantas da região (Foto: Marcelo Ribeiro)

Como os antigos ilustradores científicos, Raphael adentrava a área verde com material em mãos e olhar atento. Ora parava, fazia esboço das aves, em lápis mesmo, em preto e branco, para registrar o movimento mais natural do animal e seu comportamento com as plantas. “Em campo, faço as ilustrações, algumas aquarelas com estudo de cor de planta, mas para a coloração das penas das aves uso muito as peles dos museus”, diz, citando o Nacional, incendiado no Rio de Janeiro, e os animais taxidermizados do setor de biologia da UFJF como principais fontes de pesquisa. “Uso para conhecer as cores, detalhes de bico, coloração dos olhos. Hoje em dia, também, não podemos deixar de citar sites como o WikiAves, um site daqui de Juiz de Fora, especializado em fotografia de aves, que está em primeiro lugar no mundo em visualizações por pessoas que fazem ilustrações e tiram fotografias de aves. Com as máquinas digitais, ficou bem mais fácil termos contato com detalhes como a coloração das aves.”

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A escolha do que registrar, conta Dutra, é sofrida. “Ficava querendo retratar tudo. Mas procurei nesse trabalho fazer uma seleção de aves com um comportamento particular ou que tenham uma relação com uma planta específica. Ilustrei, por exemplo, a Portea petropolitana, que é uma bromélia, com um beija-flor de fronte violeta, que é o pássaro que poliniza essa espécie de bromélia naquela região. Não observei outro beija-flor utilizando aquela planta. A escolha foi por conta dessa associação. Acho que, como sempre, ficou faltando uma coisa ou outra, mas as escolhas foram boas. Esse trabalho não considero muito científico, mas mais artístico. Quero levar para as pessoas o encanto, e não a fidelidade científica que alguns trabalhos exigem. Quero despertar a parte lúdica, de oferecer um registro dos moradores reais daquele lugar. Não abandonei a parte científica, mas quis fazer prevalecer a arte”, afirma o ilustrador autodidata. “Tenho muita experiência com as aves da região. Trabalho com isso desde moleque. Nasci para cantar e para desenhar passarinhos”, conta ele, que atua como preparador vocal e ilustrador. “Minha vida é arte 24 horas por dia.”

(Foto: Marcelo Ribeiro)

“ENTRE ENIGMAS E PERCURSOS”

“AVES DA MATA DO KRAMBECK”
Visitação de terça a sexta e aos domingos, das 8h às 17h, no Jardim Botânico da UFJF (Rua Coronel Almeida Novais 246 – Santa Terezinha). Entrada gratuita.

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