Vale tudo?


Por Júlia Pessôa

13/02/2015 às 07h00- Atualizada 18/02/2019 às 19h55

“Mas ahhh, é carnaval!” Chegou o período em que, historicamente, a frase justifica muitas das atitudes que não nos permitimos tomar no cotidiano: usar adereços exagerados, abusar um tanto da bebida, sair dançando pela rua como se não houvesse amanhã (para quem não trabalha). De uns anos para cá, o clima de liberdade da vida “como ela é”, habitualmente associado à festa de Momo, tem suscitado discussões sobre algumas tradições carnavalescas.

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Dados os avanços na conquista de direitos de diversos setores da sociedade na história recente do país, algumas marchinhas, fantasias e costumes têm sido considerados questionáveis sob alegação de disseminarem preconceito e discriminação. Entram nessa lista composições como “A cabeleira do Zezé” (Roberto Faissal / João Roberto Kelly), “O teu cabelo não nega” (Lamartine Babo); no âmbito comportamental, o “beijo roubado” nos blocos e bailes; no contexto juiz-forano, os costumes do bloco “Domésticas de Luxo”; e em todo o país, as fantasias de “nega maluca”.

Opiniões divergentes acreditam que estas manifestações condizem com o espírito jocoso do carnaval, que pressupõe a inversão de diversos papéis sociais, e que limitar estas práticas feriria não apenas a liberdade de expressão como também as tradições históricas ligadas à folia. Autor do livro “Carnaval, carnavais” (1986, Ática), o professor aposentado da USP José Carlos Sebe explica que há, entre os pesquisadores brasileiros, uma dicotomia na concepção do carnaval como ‘suspensão do cotidiano’. “Uma corrente, que tem o sociólogo Roberto da Matta como principal expoente, o vê como inversão dramática deste cotidiano: o pobre vira rico, o rico vira pobre, homem vira mulher etc. Segundo esta premissa, há uma permissividade generalizada da subversão dos papéis e normas do dia a dia.

Por outro lado, há uma linha mais moderna e dinâmica, defendida por pesquisadores da Unicamp, que propõe que esta inversão é uma criação cultural. Enquanto o carnaval acontece, a polícia e o Estado continuam existindo, o turismo, os serviços e o transporte estão trabalhando a pleno vapor, e as leis continuam vigentes”, exemplifica ele. O professor acrescenta que, apesar de terem bases díspares, ambas as vertentes admitem princípios universais associados ao carnaval. “São inerentes a ele a ironia, o deboche, a brincadeira, tanto que se diz ‘brincar carnaval’. Neste contexto, faz parte expor alguns aspectos da sociedade de maneira em que normalmente eles não seriam abordados e que acabam indo de encontro ao politicamente correto do dia a dia. Temos que tomar cuidado para não racionalizar o carnaval, tirando dele essa essência”, opina Sebe.

Contexto histórico específico

De acordo com a historiadora e presidente do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, Rosa Maria Araújo, estas características não são exclusivas ao festejo brasileiro, que tem raízes em tradições múltiplas: europeias, africanas e indígenas. Ela destaca que mesmo a Igreja Católica legitimou o carnaval como um período de excessos que antecede o resguardo da Quaresma, sendo ela responsável, inclusive, pelo posicionamento da folia desta forma no calendário ocidental. No caso do Brasil, ela aponta, entretanto, que é inegável que alguns costumes refletem preconceitos e atitudes discriminatórias que não condizem com a contemporaneidade.

“Grande parte das marchinhas, por exemplo, é racista, machista, homofóbica, xenófoba. Os valores que definem estas posturas como incorretas não eram bem definidos na época em que elas foram compostas como são hoje. É preciso levar estas manifestações em conta em relação ao contexto em que foram compostas. O que temos hoje, em relação aos movimentos e direitos sociais, é uma evolução dos tempos, não dá para querer analisar estas tradições com os valores de hoje”, afirma a pesquisadora, que avaliou mais de 1.500 marchinhas brasileiras ao prestar consultoria para o musical “Sassaricando”, que há nove anos roda o país em turnês.

Professor da UFJF, pesquisador do carnaval e juiz-forano de coração, o sambista Carlos Fernando Cunha também defende que a criação dos costumes carnavalescos está relacionada a um período histórico-social específico. Para ele, a transformação da sociedade, de seus valores, e a evolução na concepção dos direitos humanos e sociais justificam o fato de algumas manifestações carnavalescas, antes consideradas inofensivas, atualmente serem vistas como preconceituosas e/ou ofensivas a determinados grupos. “Isso pode ser explicado pela luta dos movimentos sociais ao longo dos últimos 60 anos, quando podemos destacar o movimento negro, o movimento das mulheres (feminista) e o movimento LGBT. Mais organizados, estes movimentos conseguiram pautar suas reivindicações no campo das políticas públicas e contra a discriminação e o preconceito”, ressalta.

‘A espécie humana não é lá muito solidária consigo própria’

Para Carlos Fernando, a desigualdade social, histórica no Brasil, contribuiu para a construção das tradições carnavalescas, que são seculares. “Nossa população sempre foi diversa e plural, mas nosso país era marcado pela opressão às minorias raciais, étnicas, de gênero, de orientação sexual etc. Quando falo em minorias, quero dizer que estes grupos sociais, apesar de numerosos do ponto de vista quantitativo, não desfrutavam da mesma fatia do bolo que outros setores, ou seja, a distribuição do poder na sociedade era (e ainda é) extremamente desigual.”

Ele exemplifica esta disparidade citando um estudo do carnaval de Juiz de Fora, baseado nas publicações do jornal “O Pharol”, entre 1876 e 1915. “Enquanto notícias e notas teciam elogios e exaltavam as práticas carnavalescas, em geral, restritas aos setores médios e à elite econômica – as práticas da ‘boa sociedade’-, outros acontecimentos eram também relatados pelo jornal, como a proibição dos “batuques dos negros” e as “algazarras nos botequins e biroscas”. Para uns era a festa, para outros o xilindró. A moral e a ordem pública em primeiro lugar. Moral e ordem, no caso, tinham raça, classe social, nome e sobrenome”, afirma o pesquisador.

Professor de filosofia, mestre em letras e colunista de “O Globo”, Dodô Azevedo abordou recentemente o machismo, o racismo, a homofobia e outros preconceitos das marchinhas carnavalescas em um de seus textos. “Uma herança da tradição medieval do carnaval veneziano, onde as músicas já troçavam de judeus e deficientes físicos. A espécie humana, em geral, não é lá muito solidária consigo própria”, diz ele. Dodô defende, ainda, que não deve haver “dois pesos e duas medidas” quando se trata de um costume que pode ser ofensivo ou discriminatório. Recentemente, máscaras reproduzindo o rosto do ex-diretor internacional da Petrobras Nestor Cerveró, destacando uma deficiência em um de seus olhos, foram retiradas do mercado e, na contramão de atitudes que denunciam o preconceito, o ato foi visto por muitos como censura à liberdade de expressão. Para Dodô, esta complacência com algumas brincadeiras em detrimento de outras também é inaceitável, mas pode ser explicada pelo atual contexto social e político do Brasil. “É desumano confeccionar máscaras de um acusado de corrupção por ele possuir uma deformidade e não fazer máscara do acusado de corrupção que não tem deformidade. Mas vai chegar o dia também em que veremos que político também é gente. No momento, o povo tem dificuldade por causa da crise de representatividade de nossa classe política”, argumenta o colunista.

A presidente do Museu da Imagem e do Som, Rosa Maria Araújo, defende, entretanto, que, justamente por ser carnaval, as abordagens destas caricaturas de pessoas e grupos sociais não devem ser avaliadas sob as normas que regem o “politicamente correto”. “Carnaval é fantasia, é botar a fantasia, esquecer a dureza do dia a dia. Este espírito de brincadeira tem que ser possível. Senão vamos chegar à ortodoxia que atingiu a (revista) ‘Charlie’ (Hebdo), no atentado contra os caricaturistas.”

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O professor José Carlos Sebe defende que a liberdade de expressão não deve, de fato, ser cerceada durante a folia e que deve ser aplicada a todos. “É esse o trunfo desta liberdade que o carnaval permite. Não se deve censurar as marchinhas contra grupos que se sentem vitimizados, mas sim permitir e garantir que eles tenham direito de se expressar, fazer marchinhas e caricaturas que respondam à opressão que sentem. Temos que deixar todo mundo falar, nada de censura.”

Meio-termo entre tradição e contemporaneidade

Para o colunista Dodô Azevedo, os avanços sociais e a evolução no combate ao preconceito e à discriminação de forma geral da atualidade não abrem espaço para que costumes como os do bloco juiz-forano Domésticas de Luxo – de pintar a pele com tinta preta para caracterizar empregadas domésticas – continuem sendo celebrados como são, ainda que em nome da “tradição”. “Tradição não é necessariamente sinônimo de civilização. Era tradição na Europa um vassalo, ao se casar, entregar sua esposa para dormir com o senhor feudal na noite de núpcias. Com o tempo, com o iluminismo, tradições assim foram deixadas para trás. Existem tradições que têm que ser deixadas para trás se uma sociedade quiser evoluir, se quiser, por exemplo, ter o direito de cobrar dignidade de políticos. Corrupta do jeito que é hoje (uma corrupção de caráter, de valores), nossa sociedade não tem a menor autoridade para cobrar nada de seus representantes”, opina o colunista.

Carlos Fernando Cunha, pesquisador do carnaval juiz-forano, aponta que, no caso das Domésticas, existem vários fatores a serem refletidos. “De um lado podemos pensar nos 58 anos do bloco, na reunião de amigos de diferentes extratos e setores sociais, na alegria dos desfiles, nas campanhas fraternas por eles realizadas. Será que existe ali alguém efetivamente racista? O fato de se pintar com a cor preta, durante o carnaval, assumindo um personagem feminino (o que gera outra polêmica), indica efetivamente uma prática racista? Levanto as questões, sem respondê-las, pois acredito que elas servem para nossa reflexão e também para a reflexão dos integrantes do bloco.” Ele destaca, entretanto, a necessidade da agremiação buscar estar de acordo com o contexto social contemporâneo. “O fato concreto é que hoje, em 2015, o bloco provocou a sensibilidade de pessoas, inclusive de setores organizados, que encaram tal prática como preconceituosa. Isso tem que ser considerado e avaliado pelos integrantes do Domésticas de Luxo.”

O professor José Carlos Sebe ressalta que, muitas vezes, discursos que são considerados vitimizadores de determinados grupos podem, ao contrário, promover seu empoderamento. “Muitas vezes, a piada e o autodeboche são atos de afirmação. Um homossexual, ao cantar “A cabeleira do Zezé” pode, em vez de reforçar estereótipos, estar demarcando um posicionamento, um território, uma conquista de direitos. Há que se aproveitar o carnaval como um momento de reciclagem da cultura, para o questionamento dos valores da sociedade”, opina.

Dodô Azevedo, por sua vez, defende que esta reinvenção de valores só é possível se alguns preceitos tidos como “coisa de carnaval” forem abandonados. “Não só é possível como é fundamental. Eu quero um carnaval em que seja um absurdo um homem pegar uma mulher à força só porque ela está vestida de modo sensual. Eu quero um carnaval em que travestis e heterossexuais pulem juntos abraçados. Na verdade, vivemos um meio-carnaval hoje em dia. Carnaval de verdade, só quando estas condições forem cotidianas.” Para Carlos Fernando Cunha, o bom senso deve reger o caminho para conciliar as práticas do carnaval tais como as conhecemos com as conquistas sociais da atualidade. “É possível, sim, brincar, festejar, sem agredir moralmente o outro por sua diferença em qualquer traço ou aspecto. E fazemos isso na maioria dos blocos, das escolas de samba e das práticas carnavalescas de hoje em dia. É preciso pensar nas fronteiras, levar em consideração o outro. No entanto, é preciso estar atento. A multiplicidade de nossa sociedade e o ‘politicamente correto’ podem nos engessar.”

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