Quadras fechadas representam decadência do carnaval em JF
Sem atividades há quatro anos, Juventude Imperial reflete realidade das outras agremiações da cidade, amargando desarticulação e enfraquecimento da folia local
Uma festa de aniversário, dessas com toda a família, amigos e vizinhos. À mesa, uma feijoada. É o terraço de uma casa no Furtado de Menezes. E o grupo Bacharéis do Samba toca velhos e novos sambas. Bastam os primeiros acordes e todos se levantam. Jovens e nem tão jovens, moradores de diferentes cantos de Juiz de Fora formam um coro tão animado quanto emocionado: “A Juventude tem um tarol, que anuncia a morte do Rei Sol. Agora é noite, é noite enfim. Nas mãos do povo, a lua cheia é tamborim”. O samba de 1979, “Carnaval do povo no mundo dos astros”, escrito por Flavinho da Juventude, Chiquinho e Kelmer, não venceu o campeonato daquele ano. Ganhou a posteridade. Ninguém me contou. Eu vi. A Verde e Branco que tem uma coroa como símbolo ecoa mesmo com o silêncio de sua quadra e de seus carnavais.
Diante da quadra, na Rua Furtado de Menezes, o mato é alto. Do outro lado da porta, no amplo espaço pintado nas cores verde e branco, tudo está limpo. Sob os troféus e quadros, porém, pousa uma fina camada de poeira. “Hoje o trabalho está, praticamente, paralisado”, lamenta o presidente e fundador da escola David Chaves. Há quatro anos a quadra foi fechada pelo Ministério Público, que exige, para a reabertura, que escola possua o Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB). Nesse tempo, que coincide com o tempo que a agremiação está sem desfilar, luzes e portão de emergência foram instaladas, câmeras de vigilâncias se espalham pelas paredes e outras providências foram tomadas. Chaves garante existirem apenas pequenos ajustes e os trâmites burocráticos legais. Enquanto isso enferrujam as quatro estruturas metálicas para carros alegóricos expostas ao sol e à chuva numa redoma de telha de amianto a roubar parte substancial da quadra. “Não temos como cobrir. Mas a cada carnaval reformamos eles”, assegura.
No local composto por palco, arquibancada, quatro banheiros, uma grande cozinha, sala, vestiários e sala para instrumento uma multidão era vista nos anos 1970 e 1980. Mal dava para se mexer. Diretora de eventos e esposa de David, Luciene Chaves, a Lu, recorda-se que no lugar havia bailes dançantes, feijoadas, shows, além de aulas de ritmistas para crianças, de costura para adultos e muitas outras atividades. “Bastava abrir os portões e as crianças vinham. Nesse período, de vez em quando, fazíamos almoços, mas era tanta burocracia que paramos. Viemos aqui, limpamos e arrumamos, nada mais. Nesses quatro anos perdemos muitas crianças para o tráfico”, assegura ela. “As pessoas que trabalham com a gente nos cobram para desfilarmos. Quando não temos carnaval, deixamos de empregar entre 40 e 50 funcionários. Um desfile não fazemos sozinhos. Tem costureiras, quem faz os carros alegóricos, quem cuida das ferragens, muita gente envolvida.”
O sertão como lembrança
Em 2015 a Juventude desbravou o sertão para cantar a realeza de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião. As sanfonas em plástico dourado permanecem enfeitando o carro da escola, disposto num canto da quadra a lembrar do último desfile. Em 2017 a agremiação recusou-se a participar dos desfiles no Parque de Exposições. O que já foi o centro das atenção não merece ser relegado a um canto da cidade, acredita David Chaves. “Meu descontentamento com a Liga (Independente das Escolas de Samba de Juiz de Fora – Liesjuf) é que ela permitiu que uma cidade como essa, que já foi o segundo carnaval do país, tenha escolas de samba sem sustentação. A Liga não cobrou das agremiações para ter uma quadra e uma diretriz de carnaval. Toda escola nasce de um bloco e vai se criando”, critica ele, certo da urgência em retomar os antigos carnavais. A decadência das escolas de de samba espalha-se pela cidade, com quadras interditadas ou sem condições estruturais de funcionar. Desarticuladas as agremiações, perdem o setor e, principalmente, as comunidades. “A equipe é praticamente toda do bairro. E sem carnaval a cultura no bairro para”, afirma o presidente da Juventude.
A mobilização, escondida nos sambas nas pontas das línguas e nas imagens gravadas nas memórias, reacenderá quando as portas da quadra voltarem a se abrir, garante Lu Chaves. “Estamos há quatro anos parados, mas se amanhã o Ministério Público liberar a quadra, volto a ter uma bateria de 120 integrantes, tendo que selecionar, porque não podemos ter mais do que isso, já que só temos 130 instrumentos. Temos ritmistas sobrando na comunidade. Aqui, nesse bairro, tem um material humano que não está sendo aproveitado. Tem criança aqui que já nasce pulando. O que falta em muitas escolas é o calor humano, que a gente, aqui, tem para dar e vender”, brinca, para logo mudar o tom: “O Furtado de Menezes é um lugar abandonado, uma terra sem lei. E a única lei que conhecem é a da Juventude Imperial. Por aqui já passou bandido, doutor e muita gente boa”.
‘A gente também cria uma mágoa’
Nascida em Bangu, Lu trabalhou como vendedora até se mudar para Juiz de Fora, em 1989, um ano depois de conhecer David. Para o casamento, cada um trouxe seus dois filhos, que lhes deram 12 netos, e a paixão pelo samba. “A razão da vida do David é isso aqui”, aponta ela. “E a quadra fechada está amofinando ele. Quando paramos de desfilar, já havia anos que a Prefeitura dava R$ 70 mil. Mas o que se faz com esse dinheiro? Não dá para fazer desfile! Tem que se virar. A gente faz shows, feijoadas e outras coisas para complementar. E sempre falta dinheiro. E acaba saindo do bolso. Ele já empenhou carro, desfolhou um patrimônio. As pessoas não têm noção do quanto já perdemos. E aí fica a história de que presidente de escola de samba é ladrão. Não posso colocar minha mão no fogo por ninguém, mas alguns amigos nossos vi chegando aqui para pedir socorro. Nós mesmos já saímos daqui para pedir dinheiro. Quando vamos fazendo, vamos empolgando. O Banco do Brasil e a Caixa Econômica, costumo dizer, que quando a gente passa em frente, eles fecham a porta. Já fiz empréstimo de R$ 2 mil, porque já tinha outros cinco ou seis. E tenho até hoje. Por causa disso, a gente também cria uma mágoa. Mas a escola faz falta. E o que mais me dói é pensar nas crianças. Sofro com a falta do carnaval, mas mais pelas crianças, que não têm lugar para andar de bicicleta ou jogar bola.”
Mestre e Tremendão
O ano em que a Juventude levou para a avenida “a Juventude tem um tarol, que anuncia a morte do Rei Sol”, sua grande inspiração, a Mocidade Independente de Padre Miguel vencia seu primeiro campeonato no Rio de Janeiro. David Chaves morava no Rio quando viu dar seus primeiros passos a Verde e Branco da Zona Oeste carioca. E também começou a sambar. “Meu pai trabalhava na Companhia Mineira e havia sofrido um acidente muito violento com a alta tensão. Eu era garoto e muito arteiro. Minha tia veio e falou que me levaria para o Rio. Aos 11 fui embora. Em Padre Miguel comecei a conviver nos ensaios da Mocidade Independente. Comecei a trabalhar e resolvi fazer um bloco no Rio. Minha avó, que era muito preocupada, porque eu era muito brigão e não costumava arregar para ninguém, falou: ‘Você não vai fazer bloco aqui, não!’. Eu já tinha conseguido os instrumentos. Pensei, então, em fazer o bloco em Juiz de Fora, brincava e depois voltava”, lembra o homem de 77 anos, 55 deles dedicados à Juventude Imperial, que faz aniversário no próximo dia 8 de fevereiro.
“Naquela época, os instrumentos aqui tinham que esquentar o couro, não tinham tarraxa. Meu pai me levou no Turunas, no Feliz Lembrança e eu achei tudo muito antigo, sem a modernidade do Rio. Aqui no bairro tinha um bloco chamado Bloco do Olavo, com meia dúzia de instrumentos de mão. Montamos o bloco e assim começou nossa escola. No primeiro ano era Bloco do Olavo. No segundo ano, ao invés de Mocidade Independente, botei Juventude Imperial. A cor é a mesma. Naquele ano foi uma multidão de gente atrás. Subimos a Rua Halfeld. O som era diferente, os instrumentos eram diferentes. No ano seguinte a Prefeitura nos convidou para desfilar no aniversário da cidade. Como bloco desfilamos com a Feliz Lembrança, com a Turunas do Riachuelo e com a Castelo de Ouro (já extinta). O José Carlos de Lery Guimarães (jornalista e sambista) sugeriu que viéssemos já como escola de samba no próximo ano. Ganhamos o primeiro desfile”, narra ele, referindo-se à primeira das quatro vitórias consecutivas, de 1970 a 1973.
Em 2005, quando reeditou “Carnaval do povo no mundo dos astros” e mais uma vez levou para a avenida o refrão “a Juventude tem um tarol, que anuncia a morte do Rei Sol”, a escola conquistou seu pentacampeonato. Ao longo dos anos, revezou a presidência da escola – “Passaram vários presidentes. Deixo que assumam, mas desde que o trabalho continue” -, mas não se afastou da bateria. Aprendiz do Mestre André, de quem é compadre. Precursor da “paradinha”, o mestre de bateria ensinou o ofício a David, que por longos anos arrancou a nota 10 em seus desfiles. O juiz-forano, no entanto, dividia-se. Por um tempo trabalhou numa loja de autopeças e depois se profissionalizou no futebol. “Joguei por 15 anos no Tupynambás”, conta ele, o Tremendão, que mais tarde atuou na Amac e se aposentou há 17 anos.
Como será o amanhã?
Para 2019 não dá mais tempo. Para 2020 é a esperança. Segundo David Chaves, começando os trabalhos logo depois do carnaval é possível retomar os desfiles no próximo ano. Fernando Luiz Baldioti, diretor de comunicação da Liga, concorda. “Em 2019 esperamos viabilizar recursos para que o desfile de 2020 possa ser realizado. Não adianta culpar ninguém. Cada um tem sua parcela e o quer fazer. Com as quadras fechadas fica difícil, até, realizarem almoços para viabilizar recursos e atender o projeto de AVCB. Precisamos encontrar uma solução”, diz. Anunciado pela Funalfa numa coletiva de imprensa em 2018, o edital que visava distribuir R$ 150 mil ao longo do ano para a requalificação das quadras acabou não saindo do papel. “Nas conversas com a própria Liga as coisas tomaram outro rumo. Em um primeiro encontro com o Zezinho (Mancini, superintendente) eles se mostraram interessados em buscar os próprios recursos”, comenta a diretora de cultura da Funalfa, Giovana Bellini. “É importante garantir a independência das escolas de samba”, acrescenta.
No cenário atual, segundo Baldioti, o foco deve ser reabrir as quadras. Enquanto espaços como o da Juventude Imperial aguardam o AVCB, na Feliz Lembrança, conforme conta o diretor de comunicação da Liga, um tempestade destruiu as telhas, e na Rivais da Primavera, um incêndio destruiu todo o estoque de fantasias. “Uma quadra em comunidade pode receber vários projetos sociais, com escolas, oficinas, para trazer a vizinhança para dentro da agremiação. Temos várias comunidades que não têm espaço, e com uma quadra de escola elas podem interagir. O interessante seria que os órgãos municipais e as diretorias se unissem para viabilizar projetos que resgatem a comunidade para junto do carnaval”, ressalta, citando, ainda, a importância de trabalhos de base. “Antes existia disputa por alas, o torcedor de cada escola. Com o tempo os jovens encontraram novos caminhos e interesses. Cada escola precisa resgatar aquela mobilização, que era uma delícia.”
A sugestão do presidente da Juventude Imperial para requalificar as escolas é ter a Prefeitura financiando um grande show. “A Liga não tem como fazer isso. É só a Funalfa bancar a entrada. Vamos vendendo ingressos, devolvemos o que foi investido e o restante do lucro dividimos entre as escolas”, explica. Para Giovana Bellini, todavia, a fundação não possui mais esse vigor como no passado. “Em relação a tudo na Funalfa as perspectivas são via Lei Rouanet e patrocínios de empresas. Não só para os desfiles de escolas de samba, mas para tudo o que a gente fizer. Como fundação podemos captar recursos. Para nós essa tem sido uma saída bem valiosa”, pontua ela. Ao longo de sua história, a Juventude perseguiu um modelo autossustentável, garante David, mas isso não inclui os gastos exorbitantes de um desfile carnavalesco. “Preparei a escola para ser eterna. Foi doado o terreno, mas o patrimônio é da escola”, diz, apontando para as oito lojas (atualmente duas desocupadas) e um salão de festas, cujos aluguéis, baixos pela localização, dão conta da manutenção da escola. O desfile, entende o presidente, é como um teatro móvel no qual a Prefeitura investe a fim de oferecer a seus cidadãos.
Rei e Rainha
Ainda que não tenha encontrado uma solução para que os desfiles aconteçam sem a verba pública, a Liga ao menos conseguiu o montante necessário para o concurso do Rei e da Rainha do carnaval de 2019. O evento acontece no dia 16 de fevereiro, no MHall, na Avenida Brasil. As inscrições podem ser feitas a partir do dia 14 de janeiro e seguem até o próximo dia 31, no Departamento de Cultura da Funalfa, das 9h às 11h e das 14h30 às 17h. A candidata precisa ter de 18 a 35 anos, e para ser Rei Momo basta ser maior de 18 anos. O Rei e a Rainha eleitos recebem R$ 1 mil, a primeira princesa, R$ 800, e a segunda princesa, R$ 500, valores doados por parceiros e patrocinadores. “Apesar de não ter o desfile, o Rei e a Rainha atenderão blocos, bailes e festas”, defende Baldioti, otimista mesmo com a ausência de repasse municipal para o Corredor da Folia deste ano. A agonia que acometeu as escolas de samba, para ele, não deve chegar aos blocos. “O carnaval de rua cresceu muito, não só em Juiz de Fora, como em outras cidades próximas”, aposta o diretor de comunicação da Liga.
O momento, no entanto, é crítico, como afirma a diretora de cultura da Funalfa, Giovana Bellini: “Outros serviços básicos como a cultura também estão prejudicados. Vimos agora o fim do Ministério da Cultura. Estamos de luto. Vemos o carnaval de Juiz de Fora com muito potencial. Vemos escolas mirins superbenfeitas e eu, pessoalmente, acompanho muito de perto os blocos. Vemos uma cultura riquíssima e pessoas muito engajadas, mas estamos de mãos atadas. É muito ruim e triste, mas é um sentimento de luto. Nos anos anteriores, nesse momento, estávamos todos loucos e cheios de tarefa, mas esse ano estamos, mesmo correndo atrás, com menos atividades. É muito triste para todo mundo da Funalfa.”
‘Quero relembrar pessoas nossas’
Em casa David e Lu Chaves não passarão o carnaval. Este ano ele deve assistir aos desfiles em Vitória, no Espírito Santo. E como no ano passado, também assistirá às escolas cariocas. Se não dá para fazer samba, ao menos assiste. Mas, e se pudesse resgatar um desfile? “‘Zumbi – Rei negro dos Palmares’ foi mais especial, em 1973. Fala da nossa luta, da dificuldade do negro, coisas que ajudam a comunidade da escola”, responde ele, mais disposto, no entanto, às novas criações. “Queria fazer um enredo sobre a nossa cultura”, diz David. “Se eu tivesse que voltar com um enredo, retornaria com a Marrom ou com Luiz Gonzaga”, afirma a esposa. E ele continua: “Acho que a escola tem que se voltar mais para dentro de casa, para Juiz de Fora, para alguém que tenha feito alguma coisa para a cidade, como o Clodesmidt Riani, pessoas que lutaram e o povo esquece. Tem outras pessoas também, como José Carlos de Lery Guimarães, um grande jornalista. O próprio Roberto Medeiros, jornalista também. Quero relembrar pessoas nossas.”