Artistas falam sobre as novas formas de ouvir música nas plataformas

Pedido da cantora Adele para que Spotify retirasse modo aleatório do botão ‘play’ reforça discussão sobre modos de ouvir música nas plataformas digitais


Por Júlio Black

12/12/2021 às 07h00

Sem as setinhas cruzadas: Graças a pedido de Adele, Spotify retirou do “play” a opção automática dos álbuns pelo modo aleatório (Foto: Reprodução)

A discussão sobre a “morte do álbum” como o conhecemos e a forma de consumir música ganhou um novo capítulo no fim de novembro, quando foi noticiado que o Spotify mudou o padrão de reprodução de álbuns a pedido da cantora Adele, por ocasião do lançamento de seu mais recente álbum, “30”. Até o pedido da artista inglesa, a plataforma de streaming vinha adotando, há algum tempo, prioritariamente a reprodução por modo aleatório (“shuffle”) quando o ouvinte dava o “play” para reproduzir o disco. Adele, porém, pediu para que as duas setinhas que indicavam a reprodução randômica deixassem de ser o padrão, com o objetivo de que o ouvinte tivesse a experiência a partir do conceito imaginado pela artista, em que a ordem original do álbum é essencial para uma compreensão de todo o contexto.

A sugestão foi acatada e a mudança chegou a todos os álbuns disponíveis no serviço de streaming. A cantora agradeceu por meio do Twitter: “Este foi o único pedido que fiz em nosso setor em constante mudança! Não criamos álbuns com tanto cuidado e na ordem de reprodução das faixas sem motivo. Nossa arte conta uma história, e nossas histórias devem ser ouvidas como pretendíamos. Obrigado por ouvir, Spotify.”

PUBLICIDADE

A mudança, porém, não significa uma “ditadura” na forma de ouvir música. A diferença, agora, é que o assinante do serviço precisa configurar por conta própria o “shuffle”, se assim preferir, e sempre é possível criar playlists apenas com as faixas preferidas, seja de um ou vários artistas. Ao final, o pedido de Adele serve mais como um pedido aos fãs para respeitarem, por assim dizer, a concepção da obra de arte.

“Quando são lançados singles antes do álbum eu acho que dá uma aguçada na história, no que vem por aí”, diz Laura Jannuzzi (Foto: Thiago Brito/Divulgação)

Fechados com Adele

Laura Jannuzzi lançou em novembro seu segundo álbum, “Sede da manhã”, e apoia a postura de Adele. “Está coberta de razão. Quando se tem uma história muito fechadinha, com uma narrativa para construir o disco, uma ordem de faixas pela qual se pretende passar uma mensagem, ela não é passada quando chega fragmentada ou é escutada de forma aleatória”, defende. “Acho o máximo o Spotify ter acatado esse pedido, porque vai reverberar muito positivamente para que as pessoas possam relembrar como era antigamente, de ouvir o disco do início ao fim e ter acesso a essa história, pois tem se perdido essa noção e visão do álbum completo, dessa história que a gente constrói quando está montando um disco.”

Igor Pires, mais conhecido como o DJ OCRIOULO, também considera válida a oportunidade de escolher como o artista quer que seu projeto seja escutado. “Muitas vezes, um álbum conta uma história, e a ordem que as músicas são disponibilizadas é o que faz esse trabalho”, diz ele, concordando com a visão da artista inglesa. Stéphanie Fernandes, baixista da banda Alles Club, faz uma ponderação: “Entendo esse cuidado e apego que ela (Adele) teve ao conceito do álbum, mas acredito que vai totalmente contra o que as pessoas esperam da liberdade de filtrar os conteúdos de acordo com interesses e o gosto pessoal.”

Para o baixista Dudu Lima, a decisão do Spotify foi acertada, pois considera que o criador da obra de arte tem uma visão muito própria e pertinente em relação ao que faz. “Ela, como artista, visualizou uma construção no álbum, no qual a ordem das músicas faz um sentido de extrema importância para a direção da criação que ela fez. O que vale, nesse caso, é a opinião do criador, que quer que as pessoas ouçam naquela ordem para entender o sentido do que ela criou”, observa. “É como um quadro que a pessoa pinta, e se você inverter a ordem da pintura, não vai ter o mesmo sentido.”

E será que os ouvintes vão ficar mais atentos à proposta artística, pelo menos quanto ao álbum lançado por Adele? “Acho que isso acaba incentivando a ouvir o trabalho completo. Por mais que as pessoas ainda possam pular as músicas, vejo essa iniciativa como um incentivo”, acredita Igor, enquanto Dudu Lima imagina que os fãs mais próximos e fiéis à obra da cantora talvez respeitem. “Mas, como a gente sabe, as playlists dão autonomia à pessoa para colocar na ordem que ela queira, e isso ela não vai poder evitar.” Stéphanie Fernandes acredita que a simples proposição de Adele levará à curiosidade de ouvir o álbum todo, como experiência. “Nem que seja para dizer que não fez sentido nenhum! (risos)”

Igor Pires, OCRIOULO, costuma criar playlists, mas prefere ouvir o álbum na íntegra (Foto: Isabella Campos/Divulgação)

E o tal do álbum?

Pois bem. A discussão sobre a “morte do álbum” não é nova, pode-se dizer que vem desde a época das fitas cassete; mas, com o streaming, o conceito do álbum entrou ainda mais na berlinda. Afinal, os serviços de música permitem ao cliente que ele faça suas próprias playlists das mais variadas formas: pode misturar Adele com Led Zeppelin, Anitta e ABBA, criar por temas (“relaxar”, “aquecimento para a balada”), reunir as preferidas do artista – ou do álbum, que termina “fatiado” e perde a aura do “conceito”, se foi pensado assim.

Dá para dizer, então, que agora o conceito de álbum morreu? “Eu não acho que seja a ‘morte’ do álbum. O público interessado que gosta de fato de música, tanto a nova geração quanto a antiga, continua consumindo o álbum completo, seja comprando o vinil ou ouvindo nas plataformas. Esse público escuta também os singles e as playlists, mas não deixa de consumir o álbum inteiro”, rebate Laura Jannuzzi, acompanhada por Igor Pires.

“Vemos, todos os anos, vários lançamentos de álbuns muito aguardados. Existe, sim, essa fatia do mercado que consome mais singles e trabalhos soltos, mas ainda há uma grande parcela que aprecia um bom álbum, com conceito e sonoridade próprias. Eu sou um deles.”

Autonomia do ouvinte x aspiração do artista

Ao observar todas as mudanças na forma de ouvir música, Stéphanie Fernandes acredita que o álbum físico como conhecemos passa a fazer parte de um conceito maior, criado e pensado pelo artista. “Passa a funcionar, hoje em dia, quase como um item de colecionador. Não acredito que a nova realidade de se consumir música com curadoria pessoal signifique a morte do álbum ‘cheio’, mas certamente isso impacta diretamente no investimento de artistas menores quanto a pensarem em prensagem e disponibilização dos álbuns físicos.”

“Essa é uma realidade com a qual todos os artistas têm que lidar, que é a autonomia do ouvinte”, afirma Dudu Lima. “As playlists vieram sacramentar essa autonomia, mas temos ‘corredores’ diferenciados: os adeptos das playlists, que tendem a crescer mais ainda, e as pessoas que gostam de ouvir os álbuns completos, a arte pelo pensamento do criador daquela determinada forma artística. Tanto os CDs quanto o vinil ficarão em mercados mais restritos, se bem que tem crescido a procura pelo vinil, principalmente por parte desses que não gostam de ‘fatiar’ as obras e ouvi-las em sua plenitude, vendo o link entre as músicas, os contrastes utilizados pelo criador. Cabe ao artista propor o formato original, e aí existem essas correntes modernas, de pessoas que acham que lançar os singles antes é mais interessante, cria mais material de divulgação. Eu, particularmente, prefiro lançar o álbum inteiro – ainda que apenas digital -, e dar essa opção para o ouvinte de ‘fatiar’, juntar com outras coisas.”

Stéphanie Fernandes, da Alles Club, não acredita na “morte” do álbum, mas reconhece que o streaming afeta a forma como o artista vai pensar a divulgação de seu trabalho (Foto: Natalia Elmor/Divulgação)

Os singles como arautos do álbum

O álbum pode até permanecer vivo, mas tem sido cada vez mais comum a estratégia de antecipar o trabalho com o lançamento de um ou alguns singles. Às vezes, todo o trabalho é lançado em “pedaços” antes de se juntar sob o mesmo nome. É uma forma de manter o artista constantemente em evidência nos serviços de streaming com alguma “música de trabalho”, como se dizia na época em que as rádios eram mais relevantes.

O conteúdo continua após o anúncio

Igor Pires é um exemplo dessa estratégia. Ele lançou este ano seu EP de estreia, “Santoforte”, que foi precedido pelo single “Eu não vou parar”. “Eu acho a estratégia válida, vejo como uma preparação do público para o projeto final, como se fosse um aquecimento, uma forma de criar um ‘buzz’ e trazer a atenção para o que vem depois. Eu adotei essa estratégia quando lancei ‘Santoforte’, soltando uma das músicas das quais eu gostava e que achei que traria uma atenção para o EP.”

A tendência também foi seguida por Laura Jannuzzi, que liberou três singles como prévias para “Sede da manhã”. “Eu gosto dessa estratégia de singles e videoclipes, porque vejo como um aquecimento antes do álbum chegar. Foram quase quatro meses de trabalho antes do lançamento do disco.” A Alles Club adota a mesma estratégia. “Pensamos, no máximo, em três singles, como parte de um álbum com o conceito maior”, comenta Stéphanie.

Dudu Lima entende o álbum como uma pintura em andamento (Foto: Fernando Priamo)

Respeito à ordem cronológica

Quem é mais tradicionalista no quesito – mesmo não tendo nada contra quem se vale da estratégia – é Dudu Lima, que lançou “Concerto para contrabaixo” em junho sem nenhuma prévia. Além do disco, gravado ao vivo em estúdio, ele disponibilizou o trabalho completo e na ordem original em seu canal no YouTube, com as filmagens das sessões; depois, as faixas foram lançadas em separado na plataforma de vídeo, para que o público escolhesse apenas as que quisesse ouvir.

“Mas reconheço que, como estratégia de marketing, é interessante, porque você aproveita cada parte do produto. No caso do ‘Concerto para contrabaixo’, ele tinha uma ordem cronológica importante, por isso preferi lançá-lo inteiro, e depois separar para facilitar a busca para o ouvinte. Mas não sou contrário a esse movimento, pois você aproveita o material. Em um álbum com oito faixas, por exemplo, você fala desse assunto com destaque oito vezes, ao invés de apenas uma.”

Dudu falou, ainda, das preocupações na hora da concepção do trabalho. “Nesse último álbum, eu pensei na composição, no movimento composicional, se as músicas são mais intensas, emocionais, os instrumentos que uso, que são contrabaixos diferentes. Procuro escolher a ordem para que o ouvinte tenha uma variedade de cores, e eu vá pintando esse quadro e ele fique completo quando chego na última composição e mostre para o ouvinte todas as cores que pensei”, explica.

Os comentários nas postagens e os conteúdos dos colunistas não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir comentários que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.