UFJF promove exposição virtual enquanto não abre para o público

“Fissuras do tempo” é apresentada no YouTube enquanto aguarda autorização para abertura da galeria Espaço Reitoria


Por Júlio Black

12/11/2020 às 07h00

A pandemia de Covid-19 tem influenciado o processo criativo de muitos artistas, seja direta ou indiretamente, ao precisarem lidar com uma nova realidade. Por isso, a pró-reitora de cultura da UFJF (Procult) fez um chamado público para que os artistas fizessem, ainda em meio ao caos, uma reflexão artístico-visual sobre o período da pandemia, e o resultado pode ser conferido na mostra “Fissuras do tempo”, que foi montada na galeria Espaço Reitoria mas por enquanto pode ser conferida apenas pelo vídeo publicado pela Procult em seu canal no YouTube.

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No total, 34 artistas atenderam ao chamado da instituição, e todos apresentam trabalhos exclusivos para a exposição criados durante o período de isolamento social, entre eles óleos sobre tela, fotografias, colagens, desenhos, técnica mista e escultura. O objetivo era que os artistas traduzissem, por meio de suas obras, como cada um deles está encarando esse período de isolamento e distanciamento, além de expressar seus sentimentos e dramas resultantes dos meses de pandemia. Como resultado, as obras transitam por questões como a crítica social; a superexposição ao noticiário; a passagem do tempo e nossa nova relação com ele; o medo, solidão e tristeza resultantes do confinamento; e otimismo também, afinal não há mal que para sempre dure.

Nina Mello se baseou no tempo e seu cotidiano para criar a obra que faz parte da exposição (Foto: Divulgação)

Tempos de incertezas, solidão e… tempo

Durante a semana, a Tribuna procurou três dos artistas participantes da exposição (Nina Mello, Pedro Carcereri e Fernanda Cruzick) para conversar sobre as obras criadas para “Fissuras do tempo” e como a pandemia do novo coronavírus tem influenciado seus trabalhos como um todo. Com a Covid-19, os dias passaram a ser marcados pelo noticiário com informações sobre mortes, pessoas doentes e isolamento, entre outras, e as questões que mais afligiram Nina Mello durante os últimos meses foram a incerteza, a solidão e o tempo, como podem ser vistos na obra “Entre tempos”.

“A incerteza, porque estamos vivendo uma pandemia de tal magnitude e conduzida da pior maneira possível, de forma desumana, desrespeitosa, que deixa todos nós à deriva. A solidão é em função do isolamento, de não encontrar com os amigos; graças a Deus não tivemos casos na minha família, mas isso não tornou as coisas mais fáceis. A gente vendo as mortes, milhões de pessoas angustiadas… A angústia foi muito forte, e a solidão proporcionou um aprofundamento de algumas reflexões, o próprio contato com seu cotidiano, seus objetos, sua vida, a cama que arrumo quando vou dormir ou levantar, o sono, as angústias noturnas, os afazeres de casa”, explica.

“Eu tive que estar totalmente voltada para isso porque a pessoa que me ajuda é extremamente vulnerável e ficou em casa, segura. E o tempo estava suspenso, a gente não sabia de absolutamente nada e estava em risco o tempo todo”, prossegue. “Será que eu dormiria na minha casa? Quantas pessoas não voltaram para suas casas, não dormiram mais? E o tempo sendo costurado, o tempo sendo emendado, pensado, a gente tentando ‘agarrar’ esse tempo.”

Seu trabalho, que reúne diversas fotografias feitas durante 22 dias do mês de maio, busca representar o que ela chama de reflexão sobre o tempo, as incertezas e a solidão, aproximando-se de muitas questões. “E com a minha intimidade; o mais íntimo, no caso, era o meu lugar de dormir e acordar, que a princípio é um lugar de segurança, mas quantas pessoas tiveram que dormir fora de suas casas para poder trabalhar, enfrentar a pandemia e ajudar outras pessoas? Foi um emaranhado de coisas que me percorreram.” Além desses três tópicos, Nina Mello ainda reflete sobre os “vazios, que estavam muito presentes. Uma coisa é você olhar o vazio, e outra é quando o vazio te olha. O que estou vendo naquele que me vê?”, filosofa. “Talvez por isso essa cama vazia, esse dia após dia, um vazio que acho vivemos, que eu particularmente vivi intensamente. Eu acho que uma coisa positiva, para mim, foi esse contato fino com meu cotidiano, e tentando realmente costurar isso tudo.”

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O pensamento neoliberal em uma realidade que limita as escolhas foi trabalhado por Pedro Carcereri em “Assuntos neoliberais sem serifa” (Foto: Divulgação)

Realidade sem serifa

“O isolamento traz novos comportamentos… o esgotamento de possibilidades plásticas com o material disponível, a adequação da linguagem a essa realidade e o excesso de informações conduziram ao resultado do trabalho”, pontua Fernanda Cruzick, que participa da mostra com a obra de técnica mista intitulada “Pandemia”.

Os três trabalhos de “Assuntos neoliberais sem serifa”, de Pedro Carcereri, fazem parte de uma série iniciada antes da pandemia e tem caráter “panfletário, de rua”, na visão do artista. “É para você olhar para o cartaz e só enxergar a mensagem. Não tem floreio artístico, escolha de cor, é letra sem serifa impressa numa cartolina branca, para passar mensagem do quão chocante pode ser o pensamento humano neoliberal de trocar vidas por dinheiro, de ter sempre essa noção de troca”, afirma.

“O que mais me impressionou nessa pandemia para criar essa série foi a facilidade com que as pessoas poderiam se ver numa situação de ter que trocar um bem, piorar sua situação de vida, por causa de uma doença que os governos não conseguem controlar.”

A criação durante a pandemia

A pandemia, além de ser o ponto de partida para a exposição, certamente tem afetado, influenciado a criação e/ou a forma de criar dos artistas. Para Fernanda Cruzick, as dificuldades e limitações, se direcionadas, podem traduzir momentos ímpares de criação. “A arte se reinventa sempre… acha novos canais”, acredita. “O artista plástico tem uma característica particular, por trabalhar geralmente em isolamento. Estamos atravessando um momento ímpar na história da humanidade, e todos os aspectos e angústias fatalmente serão refletidos na produção de arte.”

O excesso de informação e o esgotamento de possibilidades plásticas influenciaram “Pandemia”, de Fernanda Cruzick (Foto: Divulgação)

No caso de Nina Mello, ela diz que não teve muitos problemas, a princípio, para produzir seus trabalhos. Com o isolamento, procurou o que havia perto dela para trabalhar. “Como trabalho muito com fotografia de arquivo, com fotos que já fiz e o que elas ressignificam para mim, tive muito tempo para pesquisar nos meus arquivos”, diz.

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Porém, por ver a arte como agrupamento, troca, encontro e calor humano, ela afirma ter sido muito afetada pela paralisação das atividades culturais. “Senti muita falta disso, das pessoas, mas acho que a tecnologia favoreceu por outro lado, pois tivemos o Instituto Moreira Salles com uma programação maravilhosa, o MIS (Museu da Imagem e do Som) de São Paulo, os próprios festivais de fotografia propondo reflexões, fazendo simpósios. Acompanhei muita coisa, mas também me permiti o ‘tempo’ de estar comigo. Acho que a tecnologia ajudou em várias questões quanto ao isolamento, com o encontro com os amigos por vídeo, vimos o quanto podemos usar essa ferramenta a nosso favor. A própria proposta da convocatória da Procult foi muito importante, possibilitando às pessoas a produzir, pensar. Talvez seja um privilégio isso, pois muitos não tiveram essa oportunidade. A arte, que nesse governo é tão preterida e desvalorizada, foi o que salvou em muitos momentos.”

Pedro Carcereri também diz que os últimos meses foram difíceis, ainda mais porque a única opção para festivais e exposições foi adotar o formato on-line. “Tem sido esquisito, parece que as coisas não estão acontecendo, que o tempo está suspenso. Apesar das coisas estarem acontecendo e fervilhando no on-line, muito da minha cabeça ainda funciona no sentido do encontro, de ter que encontrar com a pessoa, conversar sobre a situação. Tem sido muito difícil para mim conjecturar esse tempo.”

O artista lamenta, ainda, não poder ter um distanciamento histórico para poder entender o período. “E também compreender como que nossas relações ficaram mais tênues, sensibilizadas. Eu me sinto muito mais sensibilizado, acho que a gente fica sem encontrar nossos iguais, as pessoas com quem a gente trabalha, e ficamos muito mais sensíveis, nervosos, ansiosos. Tenho notado muito essa ausência do encontro, tem sido o pior dentro do trabalho artístico. A arte é uma reeducação, temos que nos reeducar juntos, conversar e entender o mundo juntos.”

ARTISTAS PARTICIPANTES
Ada Medeiros, Aline Dornelas, Ângelo Abreu, Bárbara Almeida, Cendretti, Clara Americano, Cipriano, Daniel Cenachi, E. Silva, Fabrício Silveira, Fernanda Cruzick, Flávia Rosa, Frederico Merij, Gilberto Medeiros, Irene Barros, Isabela Castro, Ismael Honório, Izabel Mano, João Jacob, Luciana, Luiz Amorim, Marcos Amato, Maria Aguiar, Natane Castro, Nina Mello, Paula Duarte, Paulo Soares, Pedro Carcereri, Ramón Brandão, Sandra Sato, Sergio Sabo, Tais Marcato, Tata Rocha e Thiago Wierman

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