Arranjador de passado


Por Mauro Morais

12/03/2017 às 07h00

O ofício do restaurador de arte é um tanto curioso: reparar sem, com isso, apagar os sinais do tempo. É preciso preparar um objeto para o futuro sem abstrair seu passado. Tudo feito com precisão cirúrgica, delicadamente, equilibrando pesquisa histórica e sensatez. “Uma questão de valor sentimental”, anuncia Francisco Irineu Del’Duca em seu cartão de visita no qual apresenta seu Atellier São Judas Tadeu, a materialização do que o restaurador escreveu para si mesmo: uma coleção de pretéritos, seus e alheios. “Fiquei com tudo da família. Meus tios foram falecendo e fui guardando todas as recordações. Hoje mesmo queria pegar o convite de casamento da minha mãe e colocar numa moldura. Tenho que preservar tudo”, diz o homem de 58 anos, referindo-se à família que se espalha pelas paredes da casa, em fotografias e documentos, além das centenas de imagens de santos, dos menos conhecidos aos mais populares, como a Santa Terezinha, da qual é devoto. “Tenho uma paixão fora do normal. Em todo trabalho que inicio e por tudo o que passo, falo com ela”, sorri ele, apontando os folhetos e as esculturas da protetora. E aquela imagem ali no canto, de Bezerra de Menezes? “Sou kardecista”, responde.

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Francisco: “Minha vida não é só a restauração, mas a busca do tempo perdido” (Foto: Fernando Priamo)

 

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Santa arte

Nas paredes, grandes trincas. No chão, tacos ausentes. No teto, uma placa a separar a telha repleta de furos e os cômodos de móveis antigos. O ambiente no qual Francisco trabalha, ao lado do amigo Eduardo Miranda (presidente da Casa de Anita), carrega as marcas do tempo que ele tanto admira. O valor das coisas, segundo ele, reside no que o relógio diz. “Não cobro caro porque antes do dinheiro vejo a obra de arte. Fico triste ao ver as coisas estragando, quebradas, como essa vila aqui, que ainda é da minha família”, comenta o restaurador, que mora ao lado do ateliê, na vila chamada Conjunto Irineu José Affonso, no número 560 da Rua São Mateus. Nascido na Maternidade Terezinha de Jesus, numa casa ao lado, na época, Francisco hoje divide a casa com a mãe, de 80 anos, e suas muitas lembranças, guardadas ou penduradas nas paredes. “Essa casa onde fiz o ateliê foi uma das primeiras do bairro. Meu avô comprou a casa da frente de um primo e fez uma padaria. Essa casinha aqui, o ateliê, era dos padeiros, e só havia ela, o resto era mato”, conta. “Ela, inclusive, fez parte do filme ‘Zuzu Angel’. Quando a Zuzu vai encontrar o (personagem do ator) Nelson Dantas, que fazia o pai do Lamarca. Numa cena, ela sobe a Rua Antônio Dias e logo entra numa vila, que é aqui. Tudo se passa em frente a essa porta”, aponta, mostrando, em seguida, as muitas alterações já sofridas, como em todo o endereço, uma ruína de tempos robustos, quando era comum fixar esculturas barrocas como acabamentos de varandas. “Tinham peças lindas na casa da frente.”

 

Santo lar

Filho do meio, Francisco era uma promessa para ofícios como padre, desejo das tias, ou militar, como queria o pai. Desde cedo, porém, gostava de tocar em histórias. Escolheu cursar belas artes no Rio de Janeiro. “Uns achavam que não era coisa de homem, outros reclamavam que não era remunerado. E ninguém dá valor à arte, mesmo. Se fosse para eu viver disso, não conseguiria”, lamenta ele, que tem entre seus clientes o Colégio Nossa Senhora do Carmo e algumas células maçons. “Já tive o prazer de restaurar peças importantes, como o altar de uma igreja em Lima Duarte. Minha paixão é a arte sacra”, comenta o autor de um intrigante afresco, na referida igreja, representando o céu e o inferno. “Mantive todas as características da escultura, só limpei e retoquei”, acrescenta o ex-dono de um antiquário que ficava perto de seu ateliê e teve as atividades encerradas após Francisco sofrer um enfarte, há cerca de seis anos. Nenhuma história resiste às trincas.

 

Santa família

“Minha avó não sabia que meu avô era pobre. Ele tinha ido fazer a barba dos homens da casa dela, e ela estava tocando cravo. Quando se viram, apaixonaram-se. Ele era muito bonito, sempre elegante e de bengala. E ela, muito inteligente e rica”, conta Francisco, orgulhoso das figuras que, para ele, lhe renderam o gosto pelas artes. “Sou neto de imigrantes italianos. Meu tio, Guy Del’Duca, era crooner do Raffa’s e faleceu em 1964, num desastre de carro. Minha avó era poetisa. Também venho a ser sobrinho de Geralda Armond, que dirigiu o Museu Mariano Procópio por muitos anos. Sou de uma família que não é de artistas, mas de gente metida a ser artista. Por isso fui ser restaurador”, diz o colecionador de objetos como a placa com as inscrições “Capitão Del Duca” e “Major Del Duca”, do pai militar. Lembranças que dão conta de uma família e também de um lugar, de uma Juiz de Fora dos imigrantes, dos militares, da tradição. De uma São Mateus de escassas casas. Hoje, tudo isso é escombro na coleção de Francisco. Sagrados vestígios. “Minha vida não é só a restauração, mas a busca do tempo perdido.”

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