O que sabemos da relação de JF com a imigração italiana?
Em sua biografia recém-lançada, atriz Fernanda Montenegro joga luzes sobre imigrantes italianos, que foram distribuídos para fazendas do estado em Juiz de Fora
“Minha avó tinha 16 anos quando a família deixou aquela terra. Viajaram primeiro para o porto de Gênova, onde embarcaram. Minha bisavó se chamava Rosa, mas, dadas a desimportância social e a desumanidade dessa imigração oficial, na administração de Juiz de Fora foi registrada como Joana. Estava grávida. O navio era uma embarcação absolutamente precária. Parava em alto-mar para reparos a cada dois ou três dias. Jogava tanto que em várias ocasiões eles achavam que iam afundar – o medo não era exagerado. Na viagem de volta o navio foi a pique”, narra, pela primeira vez, a atriz Fernanda Montenegro em sua recém-lançada biografia “Prólogo, ato, epílogo” (Companhia das Letras). Terceiro livro de não-ficção mais vendido no Brasil segundo lista da revista “Veja”, na qual se encontra há seis semanas, e segundo da mesma categoria no portal Publish News, o título reúne as memórias da artista que este ano completou 90 anos e marcou o teatro, o cinema e a televisão brasileiros.
Partindo das lembranças que herdou, Fernanda conta, com sua inconfundível voz cheia de pausas, a saga da família materna, de pastores sardos, cujo caminho inclui Juiz de Fora. “A travessia do Atlântico levou 35 dias. Os homens de um lado, as mulheres de outro. Nenhuma limpeza. Uma miséria louca. Chegaram cobertos de feridas, de piolhos, de sarna. Semimortos de cansaço e de doenças, os oitocentos imigrantes foram embarcados para Minas Gerais em trens de transporte e carga de gado, como aqueles que levaram prisioneiros para os campos de concentração, na Alemanha de Hitler. Jogados pelo chão, com suas trouxas, em vagões sem janelas, sufocados, foram parar num centro oficial de distribuição de imigração em Juiz de Fora”, relata a mulher, descendente dos Pinna, cujo registro encontra-se no Arquivo Público Mineiro.
Na primeira linha da página 79 do livro de número 925, encontra-se o registro da chegada de Francesco Pinna, homem de 52 anos, que chegou acompanhado da esposa Rosa, de 42 anos, e dos quatro filhos: Giuseppe, 19; Maria, 16; Giovanni, 10; e Anjelo, 7. Na página que traz no cabeçalho a inscrição “Hospedaria de Immigrantes de Juiz de Fora”, também consta o navio a vapor que os trouxe, o Alacritá, e para onde foram enviados. Os bisavôs de Fernanda e sua avó Maria foram transportados para a fazenda de café do Barão de São Geraldo, onde se mantiveram na condição de miseráveis e de onde fugiram durante uma madrugada, andando noites e dias pela Estrada de Ferro Central do Brasil. Numa parada, a bisavô deu à luz gêmeos, mas apenas um resistiu, o tio Luiz de Fernanda, o primeiro brasileiro da família que se estabeleceu num distrito de Mariana.
A precariedade das hospedarias
Como na história de Fernanda, Juiz de Fora é ponto de partida de tantas e tantas narrativas por servir como primeira parada para milhares de imigrantes. “A cidade atraiu um contingente de imigrantes italianos, voltados para o trabalho urbano, devido às suas características no final do século XIX, com posição de destaque em Minas Gerais, onde sobressaía como o principal centro econômico do Estado, com produção cafeeira e têxtil”, explica a historiadora Valéria Leão Ferenzini, que durante a graduação, o mestrado e o doutorado estudou a imigração italiana em Juiz de Fora. De acordo com a pesquisadora, Juiz de Fora oferecia um sistema de transporte eficiente, com acesso pela Estrada União Indústria e pela Estrada de Ferro Central do Brasil. Também gozava de um grande intercâmbio comercial com importantes cidades como a capital Rio de Janeiro, o que garantia um grande fluxo de pessoas. Ainda, o município possuía a grande Hospedaria Horta Barbosa, por onde passou a família de Fernanda Montenegro.
Localizado no Bairro Santa Terezinha, o casarão recebia e alojava imigrantes por até dez dias. Em dezembro de 1894, conta Valéria, “uma epidemia de cólera se alastrou pela cidade e pela Hospedaria de Immigrantes Horta Barbosa. O cemitério municipal de Juiz de Fora tem como registro deste episódio um túmulo coletivo que abriga os restos mortais de 94 imigrantes italianos, mortos na epidemia de cólera de 1894 a 1895. Registros dos padres redentoristas, que prestavam atendimento espiritual à hospedaria, apontam para um número maior de vítimas. Também relatam sobre a situação de pânico e sofrimento: falta de enfermeiros, apenas um médico para atender, falta de espaço para isolamento dos doentes, falta de medicamentos, falta de alimentos adequados para os doentes e lotação muito acima da capacidade de alojamento do prédio”.
Do sonho ao desamparo
Se por um lado a Itália parecia expulsar seu povo, o Brasil parecia atrair toda a gente no cenário do grande fluxo migratório do século XIX. “A Itália, no século XIX, foi marcada pelo fenômeno da imigração, devido às peculiaridades de seu processo de transição para o capitalismo: concentração da terra nas mãos de poucos, altas taxas e impostos sobre a terra, endividamento e empobrecimento do pequeno proprietário por não poder concorrer com a grande propriedade e más condições naturais em certas regiões da península. Tudo isto gerou um excedente de mão de obra que a industrialização tardia da Itália não conseguia absorver”, explica a professora e pesquisadora Valéria Leão Ferenzini, autora de “A “questão São Roque: Devoção e conflito – Imigrantes italianos e Igreja Catolíca em Juiz de Fora (1902-1920)”. Durante esse mesmo período, pontua a historiadora, o Brasil implantou uma série de medidas governamentais para atrair imigrantes, satisfazendo tanto o desejo dos liberais do Império, com suas intenções de povoar a Região Sul do país, branquear a sociedade, e amenizar o binômio senhor/escravo, quanto os interesses dos fazendeiros voltados para a manutenção do latifúndio e da agricultura de exportação.
“A riqueza prometida nunca aconteceu, e, diante da desgraça que foi a vida por aqui, como voltar? A quem recorrer? Os imigrantes foram abandonados à própria sorte – ainda mais os Pinna, que eram insubmissos”, reflete Fernanda Montenegro, num narrativa tão dura quanto emocionante e, lamentavelmente, tão universal. “O processo de inserção dos imigrantes nas novas terras foi marcado por inúmeras dificuldades materiais, subjetivas e objetivas: alimentação, saúde, higiene, educação, falta de acesso à cidadania, desenraizamento, confronto com o outro e com a nova terra, autoimagem desvalorizada. Para amenizar ou superar diversos problemas, no Brasil e em Juiz de Fora, criaram-se várias comunidades de apoio, as associações de socorro mútuo, beneficência e preservação da identidade cultural”, destaca Valéria, apontando para instituições que garantiram a memória de prólogos espalhados país afora.
Como pesquisar sobre os antepassados italianos
- Todo o acervo do Arquivo Público Mineiro, onde se encontram os registros de imigrantes em Minas Gerais entre 1888 e 1901, está digitalizado e disponível para acesso no portal www.siaapm.cultura.mg.gov.br. É possível fazer a pesquisa on-line ou pessoalmente, no prédio do órgão, localizado na Avenida João Pinheiro 372, Bairro Funcionários, em Belo Horizonte.
- Acesse o site e clique em “acervo” e, depois, no link “imigrantes”. Ao rolar a página, estará disponível a opção “Pesquisa avançada”. Basta digitar o sobrenome de seu antepassado e terá acesso a uma listagem de famílias com aquele sobrenome e que vieram para o estado no período.
- Após localizar seu antecedente, solicite por e-mail ou pessoalmente o requerimento, que será preenchido com seus dados pessoais e o número do livro onde tal registro se encontra.
- A certidão do documento de registro é gratuita e fica pronta no prazo máximo de 15 dias úteis. O solicitante paga, apenas, a taxa referente ao serviço de postagem. A certidão é um dos pré-requisitos para obtenção da cidadania italiana.
Fonte: Arquivo Público Mineiro