A trajetória da primeira mulher a trabalhar na estação ferroviária de JF
Exposição no Museu Ferroviário mostra documentos e fotos de Conceição de Castro Silva
Nem toda quebra de paradigma é sinônimo de estrondosa e polêmica ruptura de modos, costumes e culturas. Silenciosamente, sem chamar atenção, ela só é reconhecida muito tempo depois. Este é o caso de Conceição de Castro Silva, primeira mulher a trabalhar na estação da Leopoldina Railway em Juiz de Fora ainda na década de 1940, pouco depois da entrada em vigor da CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas). Mais de cinco décadas após sua aposentadoria – e três anos e meio depois de sua morte -, ela é o destaque da exposição “Leopoldina de Conceição – Ferrovia, Maternidade e Direitos Trabalhistas”, em cartaz desde a última quinta-feira (não por acaso no Dia Internacional da Mulher) e que permanecerá aberta para visitação até maio no hall de entrada do Museu Ferroviário.
Segundo o diretor do Museu Ferroviário, Luiz Fernando Priamo, a exposição só foi possível por conta do filho de Conceição, José Ricardo Silva de Castro, que doou mais de cem documentos que pertenciam à sua mãe guardados por ele durante décadas. Parte deste acervo compõe a mostra, como a primeira – e única – Carteira de Trabalho de Conceição, o pedido de licença solicitado para se casar com José Barbosa de Castro (também funcionário da Leopoldina, cujo pedido de férias para o casamento faz parte da exposição), as alianças do casal, pedido de licença-maternidade, fotos da família, caderneta de ponto dos funcionários, plantas baixas de prédios, pedidos de passe, bilhetes de passagem, manual de instrução das estações e outras peças. O espaço também conta com uma reprodução do ambiente de trabalho da ex-ajudante de estação, incluindo uma máquina datilográfica do período.
Luiz Fernando conta que foi procurado recentemente por José Ricardo, que doou todo o material há cerca de um mês. Com tanto material histórico em mãos, ele e a historiadora da Divisão de Patrimônio Cultural (Dipac) da Funalfa, Carine Muguet, selecionaram os documentos que podem ser conferidos em “Leopoldina de Conceição”. “Sentimos uma urgência de realizar essa exposição por tudo que Conceição representou. Ela foi a primeira mulher a trabalhar na estação de Juiz de Fora, entre os anos 40 e 50, logo depois da implementação da CLT, e isso num ambiente em que só havia homens e num período em que o machismo predominava”, explica, ressaltando que foi uma oportunidade, ainda, de marcar as comemorações pelo Dia Internacional da Mulher e, mais à frente, do Dia do Ferroviário (30 de abril) e Dia do Trabalhador (1º de maio), todos ligados à trajetória de Conceição.
Vida extraordinária, mas discreta
A vida e a trajetória profissional de Conceição Silva de Castro mostram uma postura que fugia ao padrão da época, em que as mulheres que estavam no mercado de trabalho exerciam funções bem específicas, como nas indústrias têxteis de Juiz de Fora ou como datilógrafas e secretárias em escritórios, e muitas vezes paravam de trabalhar fora para se casar e cuidar dos filhos, além daquelas que desde cedo se dedicavam apenas ao lar.
Conceição nasceu em 2 de setembro de 1923 em Furtado de Campos, que era a derradeira estação do ramal que passava por Juiz de Fora (a Leopoldina Railway) e era entroncamento com o que vinha do Rio de Janeiro (Central do Brasil). Sua família vivia da pecuária, com o pai despachando pela linha férrea as encomendas de charques e frangos vivos. Ao invés de manter raízes apenas em sua terra natal, o movimento gerado pela linha férrea na localidade fez com que ele tentasse – e conseguisse – uma vaga na escola preparatória para funcionárias da Leopoldina que a empresa mantinha no Rio de Janeiro, para onde se mudou. Ao se formar, em 1945, ela passou a integrar os quadros da companhia.
Foi trabalhando pela Leopoldina Railway que ela conheceu o marido, José Barbosa de Castro, que era agente folguista e por isso costumava cumprir turnos em Furtado de Campos. Os dois se casaram em 22 de abril de 1953 e tiveram dois filhos, o que não impediu que ela trabalhasse na Leopoldina por duas décadas, até 1965. Ainda que a morte do marido, pouco tempo depois, por esclerose lateral amiotrófica tenha sido um duro golpe, por muitos anos ela se dedicou à assistência social visitando detentos na delegacia de Santa Terezinha, além do trabalho junto à população carente com a Legião de Maria, da Igreja Católica.
Pela Tribuna
Toda essa história, porém, ficaria desconhecida não fosse o filho de Conceição, José Ricardo Barbosa de Castro, 64 anos, e uma reportagem da Tribuna sobre a revitalização do Museu Ferroviário. “Eu não tinha coragem de vir à estação, mas quando li a reportagem da Tribuna, tomei coragem e me encontrei com o Luiz Fernando. Conversamos por quatro horas e falei que tinha esses documentos, ele logo os pediu para fazer a exposição. É uma boa homenagem para minha mãe”, acredita.
Filho, neto e sobrinho de ex-funcionários ferroviários, José Ricardo tem muitas lembranças da antiga estação da Leopoldina Railway. Ele diz que costuma brincar no local com outras crianças desde os 5 anos de idade, aproveitando o pouco movimento da época, ou então ficava na casa do agente ferroviário sendo cuidado pela esposa dele, enquanto seus pais trabalhavam um ao lado do outro. Os documentos – em excelente estado de conservação – são frutos de sua personalidade organizada e da vontade de manter a memória dos pais. “Eu perdi meu pai muito cedo, aos 13 anos. Então tudo que eles tinham em casa sobre o trabalho eu guardei e mantive em armários de aço por muitos anos, com certidões de casamento do meu pai e meu avô, entre outros.”
“Esse material é uma raridade”, destaca o diretor do museu. “Não tínhamos aqui documentos de funcionários que trabalharam na estação, são registros raros e que as pessoas sempre cobram da gente. É emocionante ter a oportunidade de fazer essa exposição. Quando ela se encerrar vamos arquivar o material e, futuramente, utilizá-lo com outros que também foram doados pelo José Ricardo.”
Quem também concorda com a importância do material doado é a historiadora Carine Silva Muguet. “O José Ricardo talvez não tenha a noção da riqueza documental que nos repassou. Ficamos extasiados com a variedade, que nos permite vários tipos de pesquisa. Ter esse material, ainda mais da década de 1940, é valioso para conhecer o trabalho feminino na cidade, muito ligado à indústria têxtil no período.”
Sem preconceito
José Ricardo diz que sua mãe, após a aposentadoria, não costumava conversar a respeito do período na Leopoldina Railway, e que provavelmente não tinha noção do ineditismo de sua atividade. Ainda que as lembranças da infância sejam distantes, ele lembra que sua mãe, fosse no trabalho burocrático do escritório ou atendendo ao público na venda de bilhetes, sempre foi tratada com cortesia e educação. “Ela era tratada com um cavalheirismo que hoje não se vê, não havia preconceito pelo fato de trabalhar numa área em que era a única mulher. E isso valia tanto para os funcionários quanto para passageiros”, diz José Ricardo, até hoje amigo de muitos filhos de ex-colegas de trabalho de Conceição.