Somos urbanos, indiferentes, ainda que tribais

Peça “Se eu fosse Iracema”, neste domingo (10), marca a estreia do Ato, que vai até o dia 18 em Juiz de Fora


Por Carime Elmor

09/12/2017 às 07h00- Atualizada 23/12/2017 às 13h31

A atriz Adassa Martins transfigura-se em um monólogo, primeira montagem do coletivo “1COMUM” (RJ) (Foto: IMATRA)

“Se eu fosse Iracema” é peça inédita em Juiz de Fora, escolhida para abrir o evento artístico Ato, que acontece neste domingo (10) até o dia 18, com teatro, performances, exposições, oficinas e debates. Com foco na classe artística local, o projeto é organizado pela Funalfa de maneira a poder se tornar independente e colaborativo. A programação da mostra de espetáculos é dividida em grupos da cidade e montagens de fora. Além da peça do coletivo “1COMUM” (RJ), “Tom na Fazenda”, parceria de Rodrigo Portella e Armando Babaioff, também será encenada, assim como “O Narrador” e “Nada brilha sem o sentido da participação”, performances teatrais de Diogo Liberano. “Circo dos Quasevelhos”, “Coisas invisíveis”, “Palhaços” e o infantil “Se bicho eu pudesse pegar” são formados por equipes juiz-foranas e costuram o Ato, junto a teatro lido entre outras atividades.

“Convocamos artistas da cidade – atores, dançarinos e performers – para enviarem ‘provocações’, que seriam a criação de uma cena pensando em si próprios. Espalhamos as ideias, de modo a um ter que fazer a criação que o outro pensou. É um exercício que atravessa de forma diferente as pessoas e é uma performance, justamente para que não seja um produto acabado. Mas pode ser que surja alguma coisa dali”, conta Zezinho Mancini, diretor de Cultura na Funalfa.

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Índio é gringo no seu próprio Brasil

“Se eu fosse Iracema” teve origem em uma carta divulgada em 2012. Um índio guarani-kaiwowá suplicava: dizime-nos, mas não nos tirem de nossas terras. O povo originário de todos nós sente-se estrangeiro em seu próprio território. A partir daí, Fernando Marques criou a dramaturgia. O silêncio do primeiro monólogo da atriz Adassa Martins é interpelado pela língua guarani. “Eu acho maravilhoso que seja algo que ninguém entende, isso mostra o quanto a população indígena também não entende o povo branco a todo momento e não se sente brasileira, já que ninguém entende a língua, respeita a cultura, o território e o modo como vive”, reflete Adassa. Pelo menos por alguns minutos, o espectador branco incomodado sente-se fora de seu próprio território. “O processo de afetação começa por um atravessamento de sentidos”, diz o diretor Fernando Nicolau.

A pesquisa de linguagem está sempre em processo. “Entramos em sala, de preferência, sem muitas balizas. Com alguns apontamentos, mas podendo também explodir. Me interesso em estar nesse estado movediço, descobrindo todos nós por inteiro, partindo da expressão do corpo para chegar à fala, já que tenho uma história com a dança”, explica o diretor.

“A peça é ela”

(Foto: IMATRA)

Desde o princípio, o monólogo foi pensado como estratégia para que o espetáculo circulasse. Durante os três anos de pesquisa teórica e empírica, Fernando Nicolau decidiu prontamente convidar Adassa, do Teatro Inominável, por sua completa entrega durante um projeto teatral que trabalharam juntos. “O espetáculo é ela”.

Pela primeira vez, a possibilidade do monólogo. Adassa se esquiva de caminhos óbvios, traça o seu, sugando interesses, sempre com muita prática. Uma formação de experiência, mais do que academia. Formada em Direção Teatral, perpassou pelas Artes Visuais na UFRJ, enquanto também testava disciplinas, como Indumentária, mais ainda, em seus cursos livres, teatro de pesquisa e de companhia, foi se (des)fazendo e se formando como artista. Em cada trabalho, um novo estudo, um recomeço e construção.

“Teatro é jogo e relação o tempo inteiro, o monólogo me abriu a certeza do jogo com o público. As energias estão todas concentradas em meu corpo, precisei trabalhar muito a concentração. Em termos de encenação, é muito comigo, mais do que nunca o teatro é uma troca energética, nem sempre é explícita, mas é possível sentir se as pessoas estão atentas, emocionadas, distraídas. A peça flutua em diferentes estados, com cenas mais leves, outras que me carregam mais emocionalmente; monólogo é uma disponibilidade muito grande”, reflete Adassa. Depois da performance, tudo muda para ela, não há como se eximir, “a gente é artista para se colocar, abrir possibilidade”.

A atriz se vale de sua consciência corporal e de uma preparação vocal, feita pela cantora Ilessi, para atravessar as muitas peles: o pajé, o capitalismo, uma menina de aldeia ou de comunidade urbana. Se interessa pelos desenhos vocais que se tornam determinantes em cada discurso, além de garantirem movimento à encenação, junto à iluminação, tão exata quanto complementar, de Licurgo Caseira.

A alegoria indígena do imaginário popular

“A intenção não é a de mimetizar os povos indígenas”, explica o diretor. Adassa é uma mulher branca, com traços finos, cabelo curto e sempre viveu em ambiente urbano. A representação no teatro contemporâneo se resguarda em sentidos mais próximos à realidade, “o teatro pinça essa possibilidade de construção”, deixando para o espectador a possibilidade de criar imagens mentais, acessando as informações e referências estéticas de cada um. A cenografia, luz e indumentária enxutas demonstram essa escolha, regada à poesia. Um tronco, mas não somente isso, dilacerado, mas estancado cuidadosamente com um vidro asséptico, a natureza do corpo e o látex.

Nos sete meses de processo em sala, discutiram a importância de o teatro ser construído a partir de um ponto de vista que parte da própria experiência de quem o constrói. “Eu, mulher branca, da cidade, em minha própria experiência, nunca conseguiria falar de um ponto de vista que não fosse o meu. Eu acho muito importante que eu seja branca, porque na grande maioria das vezes eu falo, por meio do espetáculo, “com meus iguais”. Me encontro para falar com pessoas que vivem na cidade. Se fosse uma indígena daria mais distanciamento, as pessoas não teriam a empatia, pensariam ‘o problema é dela’, como se fosse outra, e não nós mesmos. Temos a imagem de índios estereotipados, a ideia foi trazer o papo para hoje”, explica Adassa.

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A arte é a forma de expressar um posicionamento, isso acontece em “Se eu fosse Iracema”, mas sem encerrar uma única visão, é muito mais para abrir a reflexão, levantar a questão, provocar e fazer repensarmos nossas atitudes: de como, nós, enquanto cidadãos brasileiros, lidamos com a diferença, sobretudo, com a indiferença a partir da falta de identificação e empatia.

 

Se eu fosse Iracema
Neste domingo (10), às 19h, no CCBM (Av. Getúlio Vargas 200)

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