Lugares de Origem: livro de Ailton Krenak e Yussef Campos é um mergulho ancestral

Obra questiona o conceito de patrimônio cultural, relembra a atuação de Krenak na constituinte de 1987 e 1988 e aborda perspectivas sobre a vida do planeta


Por Nayara Zanetti, estagiária sob supervisão de Wendell Guiducci

08/12/2021 às 09h07- Atualizada 08/12/2021 às 09h10

Quando Ailton Krenak perguntou sobre a escolha do nome “Lugares de origem”, Yussef Campos respondeu que a inspiração havia partido de uma fala dele. Quando perguntei o que seriam lugares de origem para Ailton, o termo foi para além de um ponto de partida. “Foi uma expressão que encontrei para um tema que é muito importante para os povos originários, que é a ideia de território. Território com o sentido cultural profundo, onde não é só uma paisagem, tem implicações.” O diálogo entre o historiador juiz-forano, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), Yussef Campos, e o líder indígena, ambientalista, escritor e professor honoris causa da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Ailton Krenak, resultou no livro “Lugares de origem”, lançado no fim de novembro, que questiona o conceito de patrimônio cultural e reflete sobre a vida do planeta.

Do Leste de Minas Gerais, onde fica a aldeia Krenak, a 600 metros do corpo do Rio Doce, devastado pela lama do rompimento da barragem da mineradora Samarco, que, há seis anos, impede o acesso ao rio, o líder indígena reflete sobre a expressão lugares de origem como uma forma de reconhecer a topografia e as características de um lugar como parte da sua identidade. “Para nós, os Krenak, esse rio não é só um corpo d’água, ele tem personalidade. Nós o chamamos de Watu. É um rio que para nós faz parte da nossa constelação de parentesco, ele é um avô.”

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Yussef e Krenak se conheceram em 2013, quando o historiador desenvolvia sua tese de doutorado na Faculdade de História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). A pesquisa buscava analisar o patrimônio cultural como objeto da Assembleia Nacional Constituinte de 1987 e 1988. Ao observar os atores sociais e políticos envolvidos, Yussef chegou no nome de Ailton Krenak, que era um dos representantes da União das Nações Indígenas. 

Ailton Krenak e Yussef Campos autores do livro “Lugares de Origem”.

A entrevista realizada para a tese deu origem, mais tarde, ao livro “Palanque patíbulo: patrimônio cultural na Assembleia Nacional Constituinte”. “Ailton não se limitou a debater o que é patrimônio, porque é algo específico, ele estava debatendo direitos indígenas, desde o direito à terra ao direito de viver sua própria cultura, que são duas coisas que não se dissociam. É indissociável o direito à terra e à cultura, e a Constituinte tentou fazer isso”, explica Yussef.

Tudo que não coube na tese encontrou espaço em “Lugares de origem”. A obra é uma espécie de bastidores da convivência entre os dois, que começa de forma profissional e acaba se tornando uma relação mais próxima. Composto por três capítulos, o livro apresenta a entrevista feita para a tese, uma palestra que Ailton realizou na UFG sobre direitos indígenas e um ensaio de Yussef contando como a relação pessoal deles afetou a sua perspectiva teórica acadêmica.

“Eu me lembro de dizer assim: ‘Ailton, eu tô no meio da minha tese, não faz isso comigo’. Então, esse livro não é um livro acadêmico, é um livro sobre um pensador, que é o Ailton Krenak, e um pesquisador como eu que está tentando entender primeiro a parte das perspectivas e conceitos não indígenas para ter que rever isso tudo, são sempre processos que eu parto de uma provocação não indígena para depois ouvi-lo”, afirma o historiador.

Rin’ta: ao mesmo tempo luto e luta

Uma cena presente no livro que marcou os debates da Constituição de 87 e 88 e transcendeu o tempo foi o gesto de Krenak, em seu discurso na tribuna, ao pintar o rosto com tinta preta de jenipapo em forma de protesto contra o retrocesso na luta pelos direitos indígenas. O ato, um costume tradicional chamado de “Rin’ta”, que na língua krenak significa ao mesmo tempo luto e luta, foi fundamental para a elaboração do Artigo 231 da Constituição Federal de 1988, que garantiu aos povos originários o direito sobre seus territórios. “É um reconhecimento a priori que diz que esses povos já estavam aqui. De certa maneira, a gente volta à sua primeira pergunta: lugares de origem”, comenta Ailton. 

O gesto tomou grandes proporções e ultrapassou fronteiras. Em 2019, Ailton recebeu um convite de Seul, na Coreia do Sul, para usar o vídeo desse momento em uma grande exposição de arte, que reproduziu a imagem animada, com cerca de dez minutos de duração, em um painel, onde os visitantes podiam escutar as frases do discursos em seis diferentes línguas. “A pessoa podia colocar um fone de ouvido, chegar diante do painel com minha imagem, acionar a fala e o Ailton aparecia falando do jeito que eu falei no Congresso brasileiro. Isso me surpreende no sentido de vitalidade daquele gesto, como ele durou no tempo”, conta.

‘O futuro é ancestral’

Em seus outros livros e no novo lançamento, Ailton recorre ao pensamento de que “o futuro é ancestral”, questionando a narrativa de uma linha do tempo linear, pois acredita que o tempo é cíclico e, dessa maneira, novas perspectivas para as relações entre passado, futuro e presente surgem, como explica Yussef. “Para ele, não existe um planeta B. Se o futuro é ancestral, se o tempo é cíclico, se a terra se regenera até um certo ponto e se nós passamos desse ponto, esse futuro ancestral de que essa terra é capaz de se regenerar pode vir a não existir mais.”

O historiador acredita que o livro possa ser uma ferramenta para auxiliar na desconstrução de um pensamento não indígena, no qual há uma separação entre natureza e ser humano, como se nós não fôssemos natureza. Segundo ele, essa relação de alteridade, como se a natureza fosse distante, fosse o outro, provoca uma onda de destruição cada vez mais implacável e maior. Com isso, Yussef argumenta: “o que podemos aprender com o passado que é esse futuro ancestral?”.

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O principal, para Ailton Krenak, é entender que “a terra é nossa mãe, ela não é uma matéria plástica para a gente esticar, puxar, emendar, colar, ela é um organismo vivo” e questionar e romper com a ideia de que “a terra era uma plataforma extrativista, que levou a gente a esse desastre ambiental que estamos vivendo agora”.

“Em relação ao futuro, eu ponho em questão essa promessa futurista, porque na verdade ela pressupõe que a gente vai acabar de comer a terra, enquanto vamos inventando, cada vez mais, aparato tecnológico e justificativa econômica, o que é tudo mentira.” Por isso, ele insiste em viver o momento aqui e agora, refletir sobre o que é verdadeiro a cada instante e andar com calma. “Talvez a gente se reconcilie com esses lugares de origem, talvez reconciliar com esses lugares de origem seja o melhor caminho para vivermos bem, é isso que eu penso.”

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