Pesquisas juiz-foranas redimensionam obra de Hilda Hilst
Reeditada em volumosas antologias e homenageada este ano na Festa Literária de Paraty, escritora Hilda Hilst tem obra resgatada 14 anos após sua morte
Finalmente ela parecia estar sendo lida. Ao menos, teria sido seu mais latente desejo. Virado o século, chegado o XXI e escritos todos os livros de ficção, poesia e teatro, Hilda Hilst viu seus títulos surgirem numa grande editora, com significativas tiragens. Um dia, ao encontrar Hilda, o crítico, pesquisador e professor Alcir Pécora, responsável pelas reedições à época, a ouvia falar sobre a estranheza de ser lida já no fim da vida. Naquela manhã, Alcir observou que para ela, que tinha na morte um de seus principais temas, o fim não estava no desfecho daquela existência, como costumava defender em entrevistas e livros. Com mais de sete décadas de vida, ela, então, olhou dentro dos olhos do editor e perguntou-lhe: “Mas eu acredito mesmo na eternidade, Alcir?”. A resposta ficou pelo ar. Já a obra da autora de mais de 40 títulos, morta em 2004, ganhou, nos últimos anos, crescente atenção. Tanto do mercado quanto da academia.
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“A produção acadêmica sobre a autora aumentou incrivelmente e continua ameaçadoramente a aumentar. A questão parece ser agora não se ela vai continuar a crescer, mas aonde vai parar. Pois se já não é, Hilda parece caminhar a passos largos para se tornar o escritor nacional com maior número anual de teses e dissertações a seu respeito”, comenta Pécora no prefácio do e-book de Cristiano Diniz, “Fortuna crítica de Hilda Hilst” (Unicamp/IEL), que, lançado no último mês, joga luzes sobre uma produção progressivamente interessante à investigação brasileira. Enquanto de 1997 a 2007 a literatura de Hilda Hilst foi tema de 31 teses ou dissertações no Brasil, de 2008 a 2017 (ano em que a pesquisa se encerra), o número de publicações passa a 132, representando um crescimento de 325%. Das dez teses apresentadas ano passado acerca do trabalho da escritora paulista, uma delas é juiz-forana, “Experiências criativas de ressignificação em Hilda Hilst: uma perspectiva ecofeminista”, de Marcelo Pereira Machado, defendida no programa de pós-graduação da Faculdade de Letras da UFJF.
De fora da estatística realizada entre 1949 e meados de 2017, a tese de Patrícia Ribeiro “A crise na modernidade na poesia de Hilda Hilst e Sophia de Mello Breyner Andresen”, publicada em abril de 2017, reafirma o lugar da cidade no pensamento acerca da autora homenageado este ano pela Festa Literária de Paraty, a Flip, fato que contribui, ao lado da edição de volumosas e luxuosas antologias, para perceber que Hilda Hilst é a leitura da vez. “O lugar da Hilda Hilst na literatura contemporânea é bastante sui generis. Muitos escritores têm estratégias de políticas literárias, formas de lidar com a projeção pública de seu nome e de sua obra. Alguns fazem isso de forma direta, com a própria mídia, com assessoria de imprensa e com apoio da editora para criar circulação. Outros fazem isso como uma forma de reclusão absoluta, recusando entrevistas e aparecendo apenas pela obra, como o Dalton Trevisan e o Rubem Fonseca. A Hilda Hilst conseguiu um lugar bastante significativo muito em função da estratégia de se tornar reclusa sem se negar a aparecer”, comenta o e escritor e professor da Faculdade de Letras da UFJF Alexandre Faria.
Personagem de si mesma
Aos 36 anos, em 1966, Hilda Hilst abandonou a movimentada vida social de São Paulo e foi morar numa porção das terra da mãe em Campinas, à qual deu o nome de Casa do Sol, hoje transformada em Instituto Hilda Hilst. Ali nasceu seu teatro e sua prosa, além de parte substancial de sua poesia. Também foi parida, ali, uma persona literária. De acordo com o professor Alexandre Faria, Hilda “criava sua imagem reclamando de que não aparecia porque ninguém dava importância para ela, não divulgava nem editava as obras dela. Acabou constituindo uma persona literária inserida nesse jogo da política literária de maneira específica e sem precedentes na literatura”. O interesse por sua biografia, ainda muito potente, foi o tiro que saiu pela culatra. “Ela acabou sendo valorizada como essa figura exótica, e isso tem a ver com o conservadorismo de pensamento dos próprios leitores brasileiros”, pontua Faria.
Para o escritor e pesquisador Frederico Spada, que em 2011 defendeu sua dissertação de mestrado “O limiar da carne: amor e erotismo na poesia de Hilda Hilst”, a persona da escritora buscava, mais que um espaço editorial, um lugar de leitura. “O fato de ela ter um espaço e um reconhecimento da crítica e da academia não lhe assegurava um lugar comercial. Ela sempre editou por casas pequenas, com editores com os quais ela mantinha amizade. É famosa a história de um telegrama que ela mandou para o (editor Luiz) Schwarcz se oferecendo para ter a obra publicada pela Companhia das Letras, o que veio a acontecer só muito tempo depois. Uma maneira que ela encontrou para chamar atenção, já no fim da sua atividade como escritora, foi contar histórias erótico-pornográficas. A Hilda como uma pessoa pública que vai aos meios de comunicação clamar por ser lida merece ser vista com atenção, porque ali ela exercia um papel”, destaca.
Objeto de seu estudo, o erotismo na obra de Hilda enseja, segundo Frederico, uma atualidade capaz de justificar o recente resgate da obra da autora de “A obscena senhora D”, sobre uma viúva e seus dilemas com o tempo: “A Hilda tem uma questão importante na obra dela, que é o gesto de chamar para o eu-lírico feminino o protagonismo. A ‘pedagogia do erótico’ parte de um eu-lírico feminino, que atua e toma para si a ação. Isso, de alguma forma, vai se manter ecoando numa poesia escrita por mulheres hoje com todo esse florescimento e esse ganhar de espaço do feminismo. Não falo de uma poesia engajada por não tomar o viés político da coisa, mas digo que a Hilda, sem tocar nos termos políticos, mostra um papel protagonista da mulher.”
A poeta da modernidade
Segundo a professora e pesquisadora Patrícia Ribeiro, autora da tese “A crise na modernidade na poesia de Hilda Hilst e Sophia de Mello Breyner Andresen”, a poesia da brasileira, assim como da portuguesa, ajuda a compreender um período histórico e cultural responsável pelas grandes transformações que vivemos hoje. “Em alguns momentos aparece na obra delas a ideia de um tempo devorador da modernidade ou como um tempo que incentiva a buscar mudanças e traz o conforto, além de existir um tempo histórico. A Hilda tem uma série de poemas que se chama ‘Aos homens do nosso tempo’, no qual ela convoca os homens a se sentirem parte das lutas, tenham um posicionamento diante do mundo onde vivem, participando ativamente. Em relação ao sagrado no trabalho da Hilda, ora ele se aproxima do ser humano, ora foge do senso comum. Já quanto à função social do poeta, ela defende que o poeta veja ao redor, não no sentido de propor soluções, mas despertando reflexões e chamando atenção dos seres humanos para que tenham um olhar mais atento para o mundo.”
Obscena, mas não erótica
Num caderno rosa, Lori, de apenas 8 anos, registra as experiências sexuais às quais é levada a ter por pais exploradores. Impactante, a narrativa escrita em primeira pessoa faria tremer quaisquer leis como a juiz-forana “Infância sem pornografia” caso lida em escolas. Apenas se lida restritivamente pelo viés da pedofilia. Imerso em referências, intercalando gêneros, assimilando variações linguísticas e discutindo o meio editorial – já que o proxeneta pai da menina é um escritor frustrado, revelando, assim, se tratar de um alter ego da própria Hilda -, o livro “O caderno rosa de Lori Lamby” exige mergulhos profundos. “Deixar de fora a Hilda Hilst entre outros grandes autores no Ensino Médio, para fazer com que a gente cresça com a percepção moral do tabu sem nenhuma condição de estabelecer crítica em relação a isso, é deixar as pessoas estagnadas. E isso é sinal de que a literatura incomoda. E é perigosa por isso. Chamar a Hilda Hilst de velha louca, dizendo que a poesia dela é muito difícil, torna mais fácil fazer com que ninguém passe por ela, que ninguém questione qual é de fato o lugar da literatura e se ela suporta um léxico anti-moralista”, pontua a pesquisadora Tatiana Franca Rodrigues Zanirato, que começou a investigar a obra da autora ainda na graduação em letras pela UFJF. Aprofundou-se no mestrado, concluiu o doutorado e acaba de publicar o ensaio “Is the word alive? An inquiry into poetics and theater in As aves da noite (Nightbirds) by Hilda Hilst” (em tradução livre “A palavra está viva? Uma investigação sobre poética e teatro em As aves da noite (Nightbirds) por Hilda Hilst”), no livro suíço “Essays on Hilda Hilst: between Brazil and world literature” (“Ensaios sobre Hilda Hilst: entre o Brasil e a literatura mundial”).
Para Tatiana, professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás em Jataí, o rótulo “erótico” na obra de Hilda deve ser questionado e desarticulado. “Faço uma proposta de lugar que não seria do erotismo em si, mas da literatura obscena, não no sentido de falta de moral, mas como jogo de cena. Essa proposta de um léxico mal comportado teria a intenção de jogar com o leitor, fazendo com que ele ouse olhar por trás de uma cena armada”, defende ela, que também investigou a produção teatral da escritora. “Apresento como hipótese de leitura a ideia de que ele é parte de um amplo projeto literário que ela realizou em vida e está inserido como uma proposta de reflexão sobre o homem e seu tempo”, define ela, certa da pertinência dos escritos hilstianos, como são chamados, e, sobretudo, da consciência que exibem.
‘Qual seria um autor fácil?’
“A obra da Hilda como um todo é muito coerente. Quando ela começa a escrever essa poesia obscena, que ela chama de bandalheira, o que faz é reinserir a discussão sobre o homem e as questões de época e sobre a forma como ela mesma via o trabalho do fazer poético num outro léxico, numa outra forma de pensamento, que acabava colocando o leitor numa enrascada. O leitor que estava acostumado a ler confortavelmente uma literatura que tinha como o lugar previsto da lírica o testemunho amoroso e o esfacelamento do eu, muda sua percepção. Boa parte da lírica da Hilda Hilst é denominada pela crítica como metafísica, e costuma-se dizer que a poesia dela é dificílima. A coerência do trabalho dela está na proposta de pensar a linguagem da escrita poética. Qual é o lugar da linguagem? É possível falar palavrão na poesia lírica? Ela comporta isso? O que as editoras e o público pensa sobre isso? Existe muita metalinguagem no trabalho da Hilda Hilst. E isso é uma ponte para pensar o mundo. Não é um exercício de análise da poesia ensimesmada. A ideia dela é questionar como é possível escrever poesia, e para quem escrever, num mundo cheio de horrores”, explica Tatiana.
Reverenciada em eventos, pesquisas, reedições, revistas e jornais, Hilda Hilst – a mesma que assina diferentes frases nas redes sociais, algumas nem mesmo dela – contribui para debater o que torna acessível uma literatura. Hoje, diante de tantas investigações e aberturas, Hilda ainda é uma autora difícil? “Ela mesmo responde e me ocorre uma das epígrafes de ‘O caderno rosa de Lori Lamby’: ela dedica o livro à memória da língua. É impressionante como a gente tende a não sair do nosso lugar cômodo para se lançar aos desafios da leitura. A literatura não é um exercício fácil. A menos que seja uma literatura de puro prazer, como são os livros de auto-ajuda. A literatura não constrói ninguém, pode deslocar, levar a outro nível de interpretação do mundo e de si mesmo, e isso não é algo fácil. É curioso que as pessoas e a própria crítica tenha a expectativa de ler com facilidade”, responde Tatiana, para logo concluir. “É tentador concordar que Hilda Hilst seja uma autora difícil, até porque está posto a tanto tempo, mas qual seria um autor fácil? Porque o cânone legitima alguns autores como altamente publicáveis sendo que não são ‘fáceis’? Cito o caso de Rubem Fonseca, um autor dificílimo de ler e, no entanto, já foi adaptado para a televisão. O que é fácil de fazer é diluir a literatura, como fazem os cursinhos e o vestibular o tempo todo. Se não fazemos isso, tornando a leitura palatável, damos adeus à língua.”