Contando histórias para existir: conheça Vanda Maria Ferreira, uma contadora de muitas histórias

Nova coluna da Tribuna traz histórias de juiz-foranos que, mesmo longe de holofotes, contribuem para a arte e a cultura da cidade


Por Elisabetta Mazocoli, sob supervisão de Carolina Leonel

08/01/2023 às 07h00

Vanda Maria Ferreira é contadora de histórias especialista em cultura afro-brasileira (Foto: Arquivo Pessoal)

Mexer as mãos, mudar o jeito do corpo, deixar o rosto transmitir com intensidade cada pedacinho do que é dito: é assim que uma contadora de histórias inicia seu ofício. É preciso entender tanto aquela narrativa, se envolver de forma tão forte que ela passa a ser transmitida também com o corpo, com a voz e com a própria presença. No caso de Vanda Maria Ferreira, a profissão veio como um dom, muito antes dela saber o nome para a coisa, e agora ela vai gerando outros frutos. Além de contar as histórias que foi aprendendo ao longo dos anos e de focar em personagens da literatura negra, mais recentemente Vanda passou também a contar histórias que ela mesma criou, como quem quer deixar vivo, inclusive, esse registro mais próprio. “Nossa identidade está sempre em transformação, sempre em evolução. Colocar no papel e contar isso ajuda (na construção da memória)”, diz.

Ao dar aulas para crianças bem pequenas, de dois anos, que Vanda descobriu toda a magia de contar uma história com o próprio corpo. “Os meninos dessa idade são elétricos, interagem com tudo ao mesmo tempo. Então eu tinha que ler as histórias, garimpar as que dariam mais certo, resumir e transformar em brincadeira para eles acompanharem”, relembra. Para ela, é nítido que se tornou uma contadora de histórias nesse momento, a partir dessa vivência – ainda que não tivesse técnica ou estudo para isso, conforme conta. Foi a partir desse trabalho, portanto, que ela viu a necessidade de buscar formação superior. Até então, devido à necessidade de trabalhar e de cuidar dos filhos, Vanda só tinha concluído o ensino médio.

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Vanda conta que durante seu período de estudos, sua professora, a escritora Margareth Marinho, percebeu em sala de aula a força de sua contação e a expressividade que ela carregava. À época, Margareth dava aula de literatura infanto-juvenil, e logo de cara teria sentenciado à aluna: ‘Você é uma contadora de histórias’. A juiz-forana, nascida no Bairro São Benedito, conta que não teve acesso a teatros ou tampouco sabia que poderia ter uma carreira voltada para a arte, e por isso, ela não sabia o nome daquilo que fazia. Passou a saber nesse dia, apesar de já fazer aquele tipo de atividade há anos. A primeira história que quis contar na aula de Margareth foi a de João Jiló que, mais tarde, também inspirou o primeiro e o segundo livro que publicou “O julgamento de João Jiló” e “A revogação do julgamento de João Jiló”.

Depois da publicação de três livros, treze participações em antologias, participação em três grupos de contadores de histórias e escritores de Juiz de Fora, e ainda liderando diversas oficinas de formação de contadores, ela não esquece o que a experiência lhe ensinou: pensar em histórias que ultrapassem as tradicionais. É por isso que, hoje, o que mais gosta de fazer é apresentar narrativas antirracistas e que elaboram a literatura negra para alunos de escola pública, além de desvendar histórias africanas e também deixar emergirem as próprias invenções colocando em foco personagens periféricos. “É um perigo ter apenas narrativa única.” A contadora de histórias é especialista em cultura afro-brasileira, e atualmente trabalha com contação em escolas da cidade.

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Pesquisar, criar, contar e viver

Para incorporar essas histórias na pele, no entanto, é preciso muito mais do que uma simples leitura. Muitas vezes, ela diz, é preciso ler cerca de 50 histórias para escolher qual contar, além de pesquisar sobre a melhor narrativa para entrar dentro do universo da contação. “Contadores de histórias são garimpeiros”, declara. Esse trabalho, em muitos casos, acaba também abrindo portas para um novo mundo – e por isso tamanha responsabilidade.

Nas escolas em que vai fazer a contação, geralmente ela proporciona o primeiro contato das crianças e adolescentes com histórias africanas. E, a partir desse contato, eles acabam indo atrás de livros e até mesmo de conhecer mais sobre a própria história. Até por isso, ela se coloca presente por inteiro durante as contações, inclusive contando as histórias de sua própria vida. “Quando chego em uma escola pública, os alunos vêem uma professora, especialista, escritora, contadora, e aí eles enxergam também que existe outro mundo, que há outras oportunidades para eles”, afirma.

Modos de voar

Para Vanda, o processo de sua escrita é semelhante ao seu processo de contar história, agora, no entretanto, deixando o registro no papel – ou em telas. Muitos dos seus livros foram escritos no celular, e depois enviados para seu próprio e-mail para não se perderem na correria do dia a dia. Mas a escrita não deixa de ser, muitas vezes, dolorosa. Ela escreveu uma história, por exemplo, para sua mãe, colocando em foco uma característica adquirida no ofício de lavadeira. “Ela tinha a parte superior da mão da cor das palmas da mão, de tanto ficar dentro d’água, e do braço para cima, todo o resto ficava pegando muito sol, então dava muita diferença. Ela lavava muitas trouxas de roupa, e ainda as dos seis filhos. Sempre cantava para a gente uma música da Cutia, e isso me motivou a contar a história dela”, diz.

Para contar, no entanto, lembra que chorou uma semana rememorando todos os detalhes e sentindo a fundo tudo aquilo. “Escrever é se expor”, diz. Sua primeira obra foi publicada em 2015, por meio da Lei Murilo Mendes, e desde então não parou mais de escrever. “É um bichinho que te pica: Depois que você coloca no papel, parece que passa a ter asas, não dá para parar mais. Foi deslumbrante, essa descoberta”, relembra.

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