Conheça as histórias de juiz-foranos que redescobriram como viver

Eloiza, Hoslany e Poliana contam à Tribuna suas histórias de recomeço, que tiveram forte impulso da arte, da fotografia e do esporte


Por Cecília Itaborahy, sob supervisão de Carolina Leonel

08/01/2023 às 07h00

“Quero servir de inspiração a outras pessoas que possam estar vivendo o mesmo que vivi e ainda vivo.” São três histórias completamente diferentes. Pessoas que viveram o inesperado e precisaram, de alguma forma, se reerguer. O passado é uma lembrança de alguma coisa que se espera que não aconteça novamente. As doenças, as dores, os vícios passaram. Mas bem na pele ainda guardam as marcas: aquela em que tempo algum cicatriza. O jeito é encontrar formas de viver com essas cicatrizes. A arte, esse respiro, é, pois, um caminho. Um afago ao lado de tantas outras pessoas que formam uma rede de apoio que faz parecer que qualquer barreira é só um degrau a ser subido. No entanto, sem romantizar o que, na verdade, é a dor. Poliana Luce, Eloiza Menezes e Hoslany Fernandes. Três nomes, idades e dificuldades diferentes. O que os une? A vontade de viver.

Em uma longa conversa por telefone, Eloiza, 64, foi se apresentando. Mas, bem no final, confessou: “Enquanto a gente conversava, eu ficava olhando para a minha janela. Tem umas árvores aqui em frente à minha casa. E eu fiquei observando os galhos. Porque minha vida é assim: se eu cair de um, eu sei que vai ter outro para me segurar. Até porque o meu lema é: um dia de cada vez, uma vitória em cada dia e uma conquista a cada hora.” Ela descreveu: “Meu cabelo é rosa. Pintei porque uma amiga passou por uma cirurgia complicada, e deu tudo certo. Naquele momento, prometi que se desse tudo certo, eu iria fazer alguma coisa. Chegou o outubro rosa. Comprei um spray e pintei. Mas o cabelo foi clareando. Eu fazia um trabalho na Associação Feminina de Prevenção e Combate ao Câncer de Juiz de Fora (Ascomcer). Lá tinha um anjinho de 7 anos que me pediu um abraço e disse que era para eu pintar de novo, porque ele trazia alegria a ela”.

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Ela tem ainda uma tatuagem de um laço no braço, porque desde 2009, em todo outubro, ela distribui os tradicionais lacinhos e os doa. “Mas o meu laço não tem ponta, porque ele vai e volta, não tem fim. Pula. Toda hora olho para ele e agradeço por mais um ano de vida, por estar viva.”

O canto

Após passar duas vezes pelo processo de tratamento de câncer, Eloiza Menezes conta que passou a ver a vida de outra forma e descobriu que poderia cantar e fazer corrida de rua, coisas pratica até hoje (Foto: Acispes/ Divulgação)

Eloiza se mantém alegre o tempo todo. Ela relembra a primeira vez que recebeu o diagnóstico de câncer, em 2008. E começou, então, todo o processo para realizar a cirurgia. “Foi mesmo um processo de descoberta, com o apoio da minha família. Eu joguei fora as coisas que não me pertencem. Parece até que foi rápido”, conta. Foi nesse tempo que ela encontrou outros apoios fora da família, como o Grupo das Vitoriosas, da Ascomcer, e o coral Renovart, da Agência de Cooperação Intermunicipal em Saúde Pé da Serra (Acispes). “Isso me trouxe mais descobertas. Eu descobri que poderia cantar e fazer corrida de rua, coisas que faço até hoje.”

Esse apoio foi fundamental para que ela conseguisse passar por outro câncer, em 2019. “Uma nova batalha. Foram duas coisas diferentes. Eu já sabia o que ia acontecer, mas é diferente. Eu experimentei o buraco que todo mundo falava. Meu chão se abriu. Mas eu pensei: ‘Não vou morrer, vou ter uma vida melhor’.” Foram várias radioterapias e quimioterapias, essas, inclusive, menos vezes que o esperado porque passava mal. “Papai do céu que não me quis”, brinca. “Mas foi o coral que me abraçou como me abraça até hoje. Lá eu encontrei apoio e percebi que sou capaz de fazer tudo isso: de cantar, levar alegria a outras pessoas. É um momento de paz para as pessoas que passam por dificuldades, como eu passei. E a gente junto e misturada se ajuda. Equilibra a vida e leva esperança”. Ela ainda acredita que é cada vez mais importante reafirmar que o câncer tem cura. “Tem gente que ainda fala ‘aquela doença’. Nega-se a falar a palavra câncer. Eu falo sempre e tenho que falar mais. Porque é assim que a gente conscientiza. Não romantizo o que passei. Foi dolorido. Mas, agora, tem o sabor da vitória, daquilo que se pode cuidar, graças aos bons tratamentos e à uma vida melhor,” finaliza.

Pela arte, pela gastronomia e pelo esporte

A corrida contribuiu para que Hoslany Fernandes superasse as drogas: “O esporte é meu vício bom. Troquei tudo pela endorfina. A corrida me tirou de um lugar que eu não preciso ficar.” (foto: Divulgação)

Hoslany, 37, não para. Dava para sentir que, enquanto contava sua história, passeava de um lado para o outro em sua casa, em Belo Horizonte. Ele é juiz-forano. Tem, na cidade, seu salão. Mas adianta: “Minha história é gigante”. Em tamanho e significado, pode-se dizer. “Eu sou criança e ancião. Posso dizer que tive grandes curas a vida toda.” Nascido em um ambiente mambembe, cedo já se vestia de palhaço pelos circos que passava com a família. Depois, seu pai trocou o circo pelos parques de exposições, onde vendia maçã do amor e cocada, na barraca Cocada do Baiano.

Cedo também, o cabeleireiro e técnico mecânico conheceu as drogas. Da maconha foi para o crack. Quando se mudou para São Paulo, passou um período afundado na cracolândia. Vagou pela rua. Mas sua família sempre esteve ao lado. Foi dela que tirou impulso para se internar na Fazenda da Esperança: uma comunidade terapêutica que atua no processo de recuperação das pessoas que vivem vícios, através de um tripé: convivência, trabalho e espiritualidade. “Isso nunca falhou na minha vida”, confessa Hoslany.

Ele viveu esse processo em Guarará. Ficou na fazenda durante um ano – o tempo sugerido aos internos. Lá, além desse tripé, conheceu outra coisa que o fez mudar o rumo da vida: a corrida. A rotina dentro da fazenda incentiva a prática do esporte. Como lá dentro ele conviveu com pessoas em outros estágios de recuperação, foi seguindo alguns passos deles. Foi assim com a corrida. Depois de fazer missão na Alemanha, ele voltou a Juiz de Fora e foi se aprofundando na corrida. “O esporte é meu vício bom. Troquei tudo pela endorfina. A corrida me tirou de um lugar que eu não preciso ficar.”

Hoslany afirma ser muito criativo, mas também hiperativo: “Preciso entrar de cabeça nas coisas”. Mas vêm as frustrações. Uma contusão o deixou 5 anos longe da corrida. “E, agora, eu preciso lidar com a decepção sem usar droga.” Nesse tempo, foi conhecendo novos mundos: a pintura, a gastronomia intuitiva, a apicultura. Até, então, poder voltar a correr. No último ano, ele conseguiu participar da Cambotas Trail Fest, o maior festival de trilha da América Latina, em Barão de Cocais. Ele subiu as montanhas. Foram 81 quilômetros. Precisou superar ainda mais limites. No final, ficou em segundo lugar. “É uma química boa. Isso fez minha rotina mudar. Antes, eu começava e não terminava. Agora eu me apego.”

A ideia de toda essa história, de acordo com ele, é se alimentar e alimentar o outro com o esporte, a arte e a gastronomia intuitiva. “Eu fico procurando as formas de dar o amor. É isso que me faz novo”, diz. Desde a internação, passaram-se 12 anos. “12 anos que eu renasci, e eu já morri várias vezes.” Hoslany reitera que contar essas histórias é uma forma de aprender. “E eu acho que isso tudo mostra a importância do esporte, da educação, da cultura: foram essas coisas que me resgataram, e são coisas que precisam ser mais incentivadas”.

Pela filha

Vítima de violência doméstica, Poliana Luce conseguiu se livrar do trauma com o apoio de projetos e outras mulheres. Agora, ela se redescobre enquanto filha, mãe, amiga e profissional (Ana Ferreira/ O nome delas)

“Eu sou falante mesmo. E não tenho vergonha de contar minha história”, adianta Poliana, 37. “Bom, tudo começou há um ano. Uma coisa que eu jamais imaginei que fosse acontecer. Mas, no fundo, veio para me fortalecer.” Poliana morava junto com seu então companheiro, com quem tinha um relacionamento de cinco anos. Juntos, eles tiveram uma filha, agora com quase 2 anos. Mas, ele já tinha outra filha de um outro relacionamento. Depois de um desentendimento, seu ex-parceiro começou a ameaçá-la. Foi um caso que foi ganhando grandes proporções, envolvendo polícia, conselho tutelar e quase o Ministério Público. O homem difamou Poliana de diversas formas pelo bairro onde moravam, de maneira que ela ficou mais de um mês dentro de casa sem conseguir sair na rua.

Toda essa história começou a acontecer exatamente um mês antes da data marcada para o casamento dos dois. “Com isso, eu fui sabendo quem ele era de verdade. Entendendo tudo o que eu sofria, as mentiras que ele contava. Eu, nesses 5 anos, fui cega e não ouvi. Isso abriu uma lacuna na minha vida. Eu achava que tinha um parceiro, mas não”, diz. Seu maior medo era perder a guarda de sua filha, que, naquela época, tinha 1 ano. “Imagina tirar a filha de uma mãe. Isso me perturbava bastante.”

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Até maio, as visitas do pai eram assistidas. Mesmo com tudo, ela queria manter o contato entre os dois. Até que em maio ele anunciou uma visita repentina. Em um momento, pegou a criança no colo e a manteve por 40 minutos, até a polícia chegar. Ele exigia a guarda. “Foram 40 minutos que pareceram um dia. Porque minha filha estava chorando muito. Ela me queria, e ele não me soltava por nada. A gente acabou indo para delegacia. Foi minha primeira vez lá. Eu tive que amamentar minha filha dentro da delegacia. Foi um dia que nunca vou esquecer. Um marco.”

Depois de passar um dia inteiro dentro da delegacia, ela conseguiu o que pedia: a medida protetiva. “Eu ficava imaginando, se ele fez isso com minha filha, imagina o que ele poderia fazer comigo. Eu me dei conta que ele não era mais meu ex, só pai da minha filha. Eu não tenho medo dele, mas com minha filha no colo fico vulnerável. E ela vai sempre estar no meu colo.” O dia passou. Ela conseguiu, e ainda consegue, se manter longe dele. Mas as marcas não passaram. Uma amiga sugeriu que ela procurasse tratamento psicológico. “Eu não sou de chorar, mas sou muito de rezar.” Foi quando ela conheceu a Casa da Mulher. “Na hora que eu cheguei lá, chorei tudo que eu não tinha chorado até então.” Ao contar o que passou, foi entendendo que o que viveu foi violência doméstica. “Percebi que violência não é só tapa, chute e soco. Porque isso pegou todo meu psicológico. Tinha 5 anos que eu não cuidava de mim.”

Lá na Casa da Mulher, Poliana passou por diversos tipos de tratamento para se recuperar do trauma. Até que Ana Ferreira começou um projeto de fotografias com as mulheres assistidas pela instituição, com o nome de “O nome delas”. A ideia era retratar o que há de mais íntimo naquelas que passaram por algum tipo de violência. Poliana participou. “Eu me olhava daquele jeito, nas fotos, com roupa nova, unha feita, cabelo feito – coisas que não fazia há anos, porque ele tirou tudo de mim -, eu entendi que vou ser sempre para mim. A fotografia registrou minha alma e eu me reconheci. Foi um resgate.”

Tudo isso, para ela, foi um recomeço: “Como filha, mãe, amiga e profissional”, ela afirma. “Essa mulher forte que sou é cheia de cicatrizes e traumas”, diz. Mas Poliana quer essa vida nova pela filha também: “Quero isso para que minha filha me admire. Minha vida vai ser outra. Só preciso de paz”, finaliza.

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