O que leva artistas a se expor desnudos?

Nomes da arte contemporânea de Juiz de Fora discutem a força do corpo e a escolha pela nudez


Por Mauro Morais

07/10/2017 às 07h00- Atualizada 07/10/2017 às 10h25

O corpo fala. Nu, grita. “Produzir arte é criar ficções, e o corpo nu na arte não é real, é uma ficção, mesmo quando acontece num autorretrato. O nu é um tema muito tradicional, que é revisitado há séculos pelos artistas e ainda não perdeu sua força mobilizadora e criativa. O corpo nu, como imagem, tem uma potência incrível, pois nunca é real, é uma criação simbólica e subjetiva, uma mentira que se veste de verdade, pois, apesar de todos termos um corpo nu em nós, a forma como o artista o mostra – seja na pintura, seja na performance, seja na fotografia – será sempre ficcional e impactante. Mas ele pode ser divertido também, óbvio, e pode ser dramático, pode ser político, pode tudo”, defende Priscilla de Paula, artista e professora do Instituto de Artes e Design da UFJF, chamando atenção para a arena das artes como espaço que transcende até mesmo o real.

Registro da Performance ”Selva bruta, de Letícia Nabuco. (Foto: divulgação)

Em tempos de verborrágicos discursos, enfrentamentos e desmedidas polêmicas, quando o espaço das artes transforma-se em arena de luta, todo gesto vira ato e extinguem-se as ficções. Tudo é cru. Afinal, o que leva artistas a se expor desnudos num momento político em que todo olhar pode ser chicote? “A nudez, para o meu trabalho, é mais um dado de pesquisa, não dá para dizer que é um assunto em si, um ponto de partida. Debruço-me sobre a nudez, mas ela não é tema, e sim o que fazia mais sentido para esses trabalhos. Não se trata da nudez, mas da visão de um corpo em movimento, ao qual não cabia roupa. É como escolher trabalhar com um figurino. É mais uma informação, principalmente considerando que a gente vive numa sociedade em que a nudez ainda é um tabu. Não tem como fazer um trabalho sem considerar a sociedade e o contexto cultural. Há um peso na nudez, mas, na minha visão, o corpo está para muito além do erótico. A gente experimenta o erotismo nu ou não”, comenta Letícia Nabuco, carioca radicada em Juiz de Fora, autora das performances “Seiva bruta” e “De novo”, únicas que em seu repertório trabalhou com a nudez. Enquanto na primeira, grávida, Letícia enfoca a criação, na segunda, por sua vez, aborda a passagem do tempo.

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Nu e nudez

Autor de “Ostracismo”, no qual se movimenta nu em duas paisagens distintas, o artista carioca que reside em Juiz de Fora Matheus de Simone atinge um lirismo e uma suavidade muito maiores sem roupas do que no registro de “Cosme e Damião”, quando mastiga e cospe balas para esculpir, com as guloseimas, um objeto fálico. “Parte de ‘Ostracismo’ foi realizada em uma praia de nudismo que frequento, a outra metade em uma cachoeira que não tinha o nudismo como prática. Acho que isso já cria duas situações distintas de exercício dessa nudez – mas em momento algum isso foi levantado como questão. Não sei se eu o faria vestido, até porque não encaro a nudez como uma destituição de informações, como se eu tivesse uma roupa que dissesse algo e no momento em que eu a tiro de meu corpo, ele passa a atingir uma neutralidade”, analisa.

‘Com olhos bem abertos’ de Paula Priscilla de Paula. (Foto: divulgação)

“Pare de correr e dispa-se. Dispa-se, com violência!”, ordenou uma espectadora numa das exibições de “Etéreo”, de René Loui. “É um espetáculo construído em tempo real, a partir da relação direta com o espectador. Nesse espetáculo me apego ao conceito de ‘dramaturgia em tempo real’. Assim como as demais urgências vivenciadas no espetáculo, a nudez surgiu como uma proposição. Mais que rapidamente, segui sua orientação à risca. Afinal, ser desafiado pelo outro, é uma de minhas principais motivações neste espetáculo. Daquele momento em diante, a nudez se fez presente”, conta o artista juiz-forano radicado em Natal, no Rio Grande do Norte. De maneira distinta, a nudez no trabalho da juiz-forana Priscilla de Paula surge da subjetividade de uma proposição íntima. “Atualmente percebi que minha experiência com o tempo se dá muito pela observação do meu corpo, afinal, estou envelhecendo, e olho o meu corpo e o corpo do outro. Na praia, fico maravilhada pela variedade de corpos e formas. Então quando pinto um nu, sendo eu ou sendo outro, estou tentando captar essa dimensão temporal ou formal da própria existência. O tempo vai passando, e me vejo retratada na tela. Cada Prida é diferente da outra, às vezes me pinto de forma completamente diferente, no mesmo intervalo temporal. Acho isso lindo. As várias formas e possibilidades de um corpo como imagem”, comenta, sem recusar as múltiplas potências do corpo despido. “O erótico está sempre ali. Não o nego nunca.”

‘O corpo é o que nos resta’

 

Cena de ‘Ostracismo’: de Matheus de Simone, e de ‘Etéreo’, de René Loui. (Foto: divulgação)

Se em “Ostracismo” Matheus de Simone mostra-se sem roupas, na série de fotografias “Direções para o invisível”, em que sequer expõe-se, parece mais nu. Tudo é corpo. “Existe a corporalidade em meu trabalho, mas não sei delinear todos os corpos existentes. É o meu corpo, o corpo do amante, o corpo disciplinado pelas instituições, o corpo masculino. Percebo um lugar que me interessa muito, que é o do corpo que quer ativar outros corpos, seja pelo incômodo, pela suscitação de desejo, mas sobretudo pelo encontro entre um corpo e outro(s)”, observa Matheus. “Quando penso no corpo, seja como suporte, tema ou discurso, penso primeiro no que está por trás desse corpo, que corpo é esse, o que me interessa nesse corpo. E penso também no meu: um corpo masculino, de 1,63m, com uma cor tal, marcas tais e por aí vai. Posso até tentar falar de outros corpos, mas não posso ignorar que sou um corpo específico dentre muitos, com suas questões e limitações. Gosto da ideia de um corpo como ponto de incidência, de encontro, um lugar. E aí ele pode ser um lugar de trabalho, um lugar para pesquisa, encontrar outros corpos-lugares. Acho que nós vamos falando do corpo, corpo, corpo, como se ele fosse algo distante e nos esquecemos que o corpo é a única coisa que nos resta para sermos alguma coisa, o resto é constelação.”

Segundo a pesquisadora e pintora Priscilla de Paula, “a arte contemporânea se apropriou da imagem do corpo e inicialmente a trabalhou em favor da desconstrução e da fragmentação daquela ideia de corpo pleno, ideal, belo, muito ligada ao nu artístico da academia e da arte tradicional. Antes havia essa distinção entre nu (artístico) e nudez (corpo nu real e associado ao pudor). A arte contemporânea assimilou isso tudo. Nu e nudez, tudo farinha do mesmo saco, lados da mesma moeda.” As primeiras experiências contemporâneas com as artes do corpo surgem, justamente, para “apalpar” a realidade. “As artes do corpo atualmente mostram a ficção do corpo como imagem. Os problemas atuais que podem ser pensados através do corpo são diversos, desde gênero, sexualidade, etnias, geografias. Mas perceber a diferença do corpo no cotidiano e do corpo como plataforma, como matéria, como imagem, como poética nas artes é urgente. Não há como tratar os dois da mesma forma. Ambos são muito potentes, mas proporcionam experiências com significados e consequências diferentes nos sujeitos e nas sociedades”, explica.

Como controlar o corpo?

Tela Nua no Ateliê. (Foto: divulgação)

Autora da performance “Com olhos bem abertos”, na qual o público puxa o fio de uma veste em crochê, exibindo a imagem da artista, também projetada nua numa tela, Priscilla de Paula bebe na fonte da sérvia Marina Abramovic, que já na década de 1970 performava nua. “O nu lá na Abramovic, porém, tinha uma importância política muito diferente de hoje”, destaca Letícia Nabuco. “Naquela época, às 17h, não víamos cena de sexo transmitida pela TV. Parece que, hoje em dia, a nudez a serviço de uma narrativa que não leva à reflexão não incomoda. A nudez que mostra corpos ‘potohshopados’ é aceitável. A nudez que constrói corpos passivos, adestrados, transformados, botocados, siliconados, pode. Já a nudez de um homem que não está na novela das oito choca, porque desloca todos esses sentidos, porque é uma nudez que cria permeabilidade, que tira do conforto. Essa é uma nudez perigosa porque gera reflexão. A nudez da novela e a que objetifica o corpo no carnaval fazem parte da vida”, questiona a dançarina por formação.

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De acordo com Letícia, a problemática atual tangencia não os gestos, mas o próprio corpo e seu papel social: “Estamos vivendo, desde os anos 1970, uma tentativa, por parte de alguns artistas e grupos, de retirar o tabu da nudez. Do movimento hippie, passando pela arte contemporânea, há uma busca pela nudez como expressão. Mas percebo, também, um movimento atual de resposta a isso. Discursos com cunho religioso, que misturam vários aspectos, em tom de muita repressão, visam retirar as possibilidades expressivas que a arte traz. Tenho a sensação de que estão fechando o cerco para os trabalhos que pensam em abrir demais, a arte que não se alia ao entretenimento, que busca diferentes maneiras de estar no mundo. Existe um controle ideológico. O corpo como sempre é um grande problema. Como controlamos o corpo?”

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