Gilton Monteiro Jr.: ‘A arte nunca está ajustada’

Pesquisador e crítico de arte discute desafios da arte contemporânea e aponta: “Hoje nos acostumamos com o mal-estar que as obras geram”


Por Mauro Morais

07/09/2017 às 15h36

Complexo, porém acessível, o trabalho do artista carioca Waltercio Caldas reflete o traçado intelectual que um de seus principais pesquisadores realizou. Gilton Monteiro Jr. transita com algum conforto pela história da arte e pela escrita do presente. Como Waltercio, Gilton sabe que escrever os dias de hoje requer, no mínimo, uma atenção com os tempos passados. Nascido no Rio de Janeiro, crescido, a partir dos 12 anos, em Juiz de Fora, o crítico de arte e pesquisador concluiu sua graduação em Artes e Design na UFJF, onde lecionou por dois momentos, e retornou à terra natal, onde fez mestrado, doutorado e pós-doutorado. Enquanto prepara-se para um segundo pós-doutorado, em Belo Horizonte, Gilton ministra o curso “Arte contemporânea, um prelúdio”, numa residência na Rua Olegário Maciel, sempre às segundas-feiras, do próximo dia 11 ao segundo dia de outubro.

Após ater-se às obras de Cildo Meireles e Waltercio Caldas – ambos expoentes da década de 1970 -, Gilton volta-se para nomes ainda mais recentes, Nuno Ramos e Ricardo Basbaum. “São dois artistas com vertentes e questões diferentes, mas ambos carregam o desdobramento de um senso de experimentalismo da década de 1960 e 1970. Paralelamente faço uma reflexão sobre a geração deles e como a própria noção de contemporaneidade foi se desdobrando no trabalho desses dois”, conta, demonstrando o alargamento de sua perspectiva, capaz de reconhecer e respeitar tempos que se penetram.

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Por isso, a relatividade da potência da internet. Em entrevista à Tribuna, o intelectual, que há dois anos voltou a residir em Juiz de Fora, rechaça a justificativa do esvaziamento das galerias na virtualidade das relações. “É uma questão de política cultural, de estratégia, de divulgação, de ter e promover os espaços e os eventos, instigando a sociedade a participar. Não podemos achar que desenvolvimento social é só uma questão de emprego e renda. Qualidade de vida tem que estar vinculada à cultura. Se não houver uma política cultural associada a um projeto de desenvolvimento local, a qualidade de vida pode piorar, porque é a cultura que qualifica a vida social. O sentimento de esvaziamento surge quando não há setor cultural estimulado”, afirma, apontando não só para o enfraquecimento intelectual do público, mas, sobretudo, de uma classe artística que se alimenta, também, do contato com o que o outro produz, ontem e hoje.

Para Gilton, “não existe um conjunto de critérios que estabeleçam de forma definitiva o que pode ou não ser obra de arte”. (Foto: Marcelo Ribeiro)

Tribuna – Consegue ver uma unidade em nossa arte contemporânea?
Gilton Monteiro Jr. – Acho que a pluralidade, a dispersão das questões, é o que marca o período atual. O Paulo Sérgio Duarte (crítico e historiador da arte) tem um livro recente em que fala justamente disso, da dificuldade de trabalhar com o material atual, muito amplo e diversificado, criando certo estado de perplexidade. Acho que os grandes imperativos que se colocavam para os artistas nas décadas de 1960 e 1970 se dissolveram nas décadas de 1980 e 1990. É claro que existem elementos em comum, com os quais eles têm que lidar, como a violenta presença do aparelho institucional, o que é um problema para os artistas, interferindo até na própria concepção e elaboração do trabalho. Não existe um ponto de atração para o qual os artistas estejam orientando suas questões.

O experimentalismo não é mais um imperativo?
O experimentalismo foi uma espécie de sintoma que os artistas das décadas de 1950, 1960 e 1970 tiveram em relação às questões que vinham sendo encaminhadas pela modernidade. De certo modo, a gente pode dizer que o experimentalismo começa, de fato, no contexto da modernidade. O dadaísmo e Duchamp são experimentais e estão questionando os limites da arte, ou pelo menos as especificidades, os critérios dos quais nos valemos historicamente para atribuir valor artístico a uma obra. Com o desdobramento da Pop Art, em seguida o minimalismo e a arte conceitual, temos um regime de “experimentalidade”, mais cético e mais desencantado. Até mais secularizado que o primeiro experimentalismo moderno, filiado aos grandes ideais, com um corpo de questões e um modo de enxergar a destinação da obra num contexto social. Os artistas eram conscientes sobre os problemas que a arte vivia dentro do contexto da sociedade burguesa ocidental e eram movidos por grandes ideais. O neovanguardismo das décadas de 1960 e 1970 foi o campo, por excelência, do experimentalismo, porque a própria ideia da obra de arte foi posta em questão. Hoje o que percebemos é que se naturalizou a ideia de que a arte pode vir de qualquer lugar e estar presente em qualquer lugar. Não existe um conjunto de critérios que estabeleçam de forma definitiva o que pode ou não ser obra de arte.

Estaríamos, então, numa “pós-arte”?
Talvez num contexto pós-experimental e, com isso, num certo esgotamento de um tipo de concepção de contemporaneidade. O contemporâneo é uma categoria muito dita, muito divulgada e pouco debatida. O que veio caracterizar essa contemporaneidade atual? É uma produção distinta entre as gerações. Há uma lacuna que fica no debate crítico. Como o campo é muito diversificado, é difícil especificar. O que percebemos é que a atualidade herda certos aspectos das primeiras gerações dos artistas contemporâneos. Por outro lado, desencanta alguns preceitos dessas mesmas gerações, como por exemplo o fato de que a obra de arte só se estabelece na tensão com o campo da cultura, que a absorve imediatamente e tende a convertê-la em mercadoria ou mero objeto. Já estamos distantes daquela grande destinação da arte, conscientes de que o espaço da arte é produzido num jogo, numa relação de atrito o tempo inteiro e nunca é estável e apaziguada. Isso gera o mal-estar em relação à arte contemporânea. A opinião que, geralmente, ouvimos das pessoas quando vão a uma Bienal ou a um grande evento artístico é de que não gostam daquilo e de que aquilo não é arte. São opiniões corriqueiras e que marcam esse lugar de tensão. Ela não é facilmente assimilada e reconhecida como arte e, ao mesmo tempo, não deixa de ser arte, porque as pessoas não reconhecem valor. A arte nunca está ajustada. E o difícil é assegurar esse lugar de desajuste.

Esses grandes eventos e ambientes da arte contemporânea exibem trabalhos espetaculares. Seria essa uma marca da atualidade?
Produzimos arte numa sociedade do espetáculo. O artista e a obra têm que, o tempo inteiro, lidar com essa situação que é de esvaziamento. O problema da espetacularização da arte é que o componente artístico tende a ser esvaziado. Justamente aquilo que deveria gerar tensão. A arte contemporânea lida com isso há um bom tempo. A Pop Art sintomatizou um pouco isso, apesar de os artistas tomarem partido a favor desse mercado, com uma exposição excessiva da obra e o do autor. Essa indústria da fama já estava presente no cinema e em outras formas artísticas e ainda não tinha se imposto para a arte da forma como veio se colocar sobretudo nos últimos 30 anos.

Obra “Como imprimir sombras”, em acrílico, de 2012, assinada por Waltercio Caldas (Foto: Divulgação)

E qual o peso da cena internacional em nosso contexto?
Podemos dizer que boa parte da divulgação dos nomes do Cildo (Meireles) e do Waltercio (Caldas) no nosso contexto local se deve à ressonância deles num contexto internacional. Se os alunos de artes e mesmo o público em geral já ouviram falar em Cildo Meireles, isso se deve muito mais à inserção do nome dele num circuito internacional do que no próprio circuito local. Não foi o mercado de arte interno que construiu essa reputação para com nosso público. Isso faz parte desse mercado que é cada vez mais megalômano, tanto na produção das obras quanto na divulgação. Muito do respeito que alguns artistas vêm adquirindo de forma até precoce pode ser questionada em relação à qualidade de seus trabalhos.

Há uma prevalência do discurso em detrimento do gesto?
O próprio artista já é um elemento dentro disso tudo. Desfez-se aquela imagem romântica do artista como gênio criador. Ele é um agente que integra o meio da arte, como o curador e o colecionador. E como participa cada vez mais desse processo ele é cada vez mais convocado a tomar partido com seu discurso e a autoexposição. Ou seja, ele integra esse sistema de livre comércio das imagens, que consiste na principal forma de relação da sociedade do espetáculo. Algumas vezes a gente conhece mais o artista do que a obra.

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Existem ferramentas fundamentais para a leitura dessa arte contemporânea brasileira?
Isso sempre foi um desafio para o crítico. Existe essa dificuldade de estabelecer os critérios para poder lidar com os trabalhos concebidos pelos artistas. Ao ponto de grandes nomes, hoje consagrados, como Matisse, serem desprezados, como ele foi no início do século XX. O grande público de arte recebia muito mal a obra dele. O reconhecimento do (Paul) Cézanne foi tardio. É muito paradigmático aqueles conflitos que geraram em torno das figuras de (Édouard) Manet e (Gustave) Courbet. Manet reclamava sempre com (Charles) Baudelaire, dizendo que o público tratava sua obra com total sarcasmo e só faltava jogar pedra nele. Na medida em que os critérios da própria beleza caem por terra, quais são os critérios para estabelecer uma experiência estética com os trabalhos? Hoje nos acostumamos com o mal-estar que as obras geram. Posso estar diante de uma obra que, a princípio, não consigo penetrar e me acostumei de que as coisas são assim. O olho crítico tem um tempo que é próprio, não é automático.

“Desvio para o vermelho”: Instalação de Cildo Meireles, no Instituto Inhotim (Foto: Divulgação)

Qual o lugar do crítico hoje?
No Brasil, que tem um debate cultural muito escasso e diluído, a figura do crítico tende a ser institucionalizada. Ele vai sendo empurrado para as universidades, porque o meio acadêmico é o espaço reservado a ele para exercer sua reflexão. Se, de fato, tivéssemos um mercado editorial mais amplo, com mais revistas ou sites, haveria outro espaço para ele. O papel do crítico no Brasil, a meu ver, é de um mediador entre a obra e o grande público. Às vezes, ele não consegue mediar, porque o grande público não consegue ter acesso ao discurso que o crítico elabora, o que é um paradoxo. Como a arte fica muito fragilizada nesse contexto da cultura da comunicação rápida, permeada pela publicidade e que é contrária à natureza da arte que demanda um tempo mais demorado de apreciação, o crítico acaba atuando menos. O ambiente hoje parece estar mais rarefeito. Mas a noção de crise é inerente ao nosso momento histórico já há alguns séculos. Não é que a figura do crítico esteja em crise, ela é a crise em excelência. Até porque a própria arte, com que ele lida, está nessa posição de desconforto.

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