Outras ideias com Giane Elisa Sales de Almeida
O perfume de Giane é tão bom, mas tão bom, que é difícil esquecer. Na verdade, toda ela é marcante. Os dreads na cabeça, os saltos plataforma, o sorriso largo e a fala incrivelmente segura. Essa imagem, forte, que Giane Elisa Sales de Almeida conquistou para si certamente surgiu das vozes que ecoavam pela casa. “Tive o privilégio de ter a família que tive, porque ser menina negra nunca foi um fardo para mim, porque tive proteção do tipo: ‘você é linda!’, ‘seu cabelo é lindo!’, ‘você é neguinha, e ninguém pode te chamar de macaca!'”, conta. Filha de uma empregada doméstica e de um vigia noturno, certificou-se logo cedo de que é possível romper, mesmo quando a história diz o contrário. Ela confrontou o inesperado.
Ela não nasceu no morro. Filha única, sua primeira casa era no Bairro Alto dos Passos, Zona Sul de Juiz de Fora. Pouco tempo depois, mudou-se para o Morro da Glória e, há 30 anos, reside no Manoel Honório. Ela também não frequentou escolas públicas. “Sempre estudei em escola de elite, passei pelo Santa Catarina, fiz piano, natação. Era um investimento que a minha família escolheu fazer, não que tivéssemos dinheiro”, diz. Ela apostou na formação e não parou de estudar. “Tive um marco na minha vida, o magistério. Ali resolvi que era a educação que eu queria. Fui da primeira turma de magistério do (Colégio de Aplicação) João XXIII, e era uma experimentação muito grande. Tive aulas com Margarida Salomão, Neusa Salim e Arlindo Daibert. Foi lá que comecei a fazer teatro”, conta ela, sempre sorrindo. Ela não se tornou atriz. Hoje, Giane é supervisora de direitos humanos do Departamento de Políticas para a Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos (DPCDH) da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social.
A bandeira da mãe
A defesa de agora é, nada mais, nada menos, que a bandeira de ontem, que a mãe agitava nos cantos de casa. “Minha mãe era militante de movimentos sociais, militou na igreja e acabou se metendo com partido e pastoral do negro. Minha casa sempre foi esse ambiente onde as diferenças são discutidas”, recorda. “Meu pai nunca foi de pegar bandeira, mas sempre acompanhou, tendo consciência de classe e crítica muito fortes”, completa ela, que antes mesmo de ingressar no curso de pedagogia da UFJF já havia se envolvido com a militância política, pensando sempre nos movimentos populares. Com o diploma em mãos, Giane Elisa ministrou oficina de teatro popular no Mutirão da Meninada do Vale Verde e ingressou no serviço público como professora engajada. Em uma escola no Bairro Granjas Betânia, Zona Nordeste, criou o grupo teatral Fala Betânia. “Hoje me considero uma pessoa de uma fé que não tem templo. Adoro os orixás, acho a figura de Jesus Cristo fantástica, acho o Meishu-Sama da Igreja Messiânica divino, mas a minha grande motivação era construir o reino de Deus aqui na Terra.”
Mulheres guerreiras
Ainda que o caminho seja outro, as pedras foram as mesmas. Giane Elisa aprendeu, logo cedo, que “existe uma peculiaridade em ser mulher, ser negra e ser brasileira. Paga-se um preço por isso. Acredito que a libertação acontece na coletividade”. Em 2007, em sua casa, criou a Candaces – Organização de Mulheres Negras e Conhecimento, que reúne, entre outras, estudantes, artesãs, donas de casa, intelectuais e professoras. “Nascemos com a intenção de juntar mulheres negras, produzir determinado tipo de conhecimento relativo ao nosso pertencimento e, principalmente, socializar com outros grupos. Quase um movimento de Robin Hood intelectual: pegar o que é produzido sobre questões raciais no Brasil e no mundo e dividir isso”, explica. Para esse discurso, ela cavou a terra e descobriu o terreno que agora pisa com ainda mais consciência. Em 2009, concluiu o mestrado em educação na Universidade Federal Fluminense, no qual pesquisou dez trajetórias de vidas, na tentativa de compreender como era ser mulher negra e jovem nas décadas de 1950 e 1960 em Juiz de Fora: “Existe um silenciamento grande envolvendo as mulheres negras na cidade, tanto nas histórias individuais quanto nas histórias coletivas. Vemos Juiz de Fora como um lugar que parece fingir não ter existido população negra. Aprendi na escola que a cidade foi fundada por alemães e italianos, sendo que Juiz de Fora foi o maior entreposto de escravizados de Minas Gerais”.
Intolerância, já!
Atrás de uma mesa repleta de fotos dos três cachorros e três gatos encontrados na rua e levados para casa, registros de amigos e imagens de Abdias do Nascimento e Angela Davis, Giane Elisa encontra a oportunidade de colocar em ação seu discurso de resistência e enfrentamento. “Estamos em um país onde não temos o direito mais básico, pensar nos direitos universais, então, é complicado. Por isso, é importante pensar nos direitos humanos não só da perspectiva da violação, mas de como se chega à violação. No ‘Ciranda cidadã’, trabalhamos com o conceito de determinância social: ser preto no Brasil é um determinante social para ter um direito violado. Temos que pensar nos direitos humanos não só na ponta, para ter estratégias de intervir antes que o desrespeito aconteça”, comenta, apontando para o projeto ao qual tem se dedicado, e que pretende aparelhar profissionais que trabalham diariamente com a população negra, mulheres e comunidade LGBT. “Quanto mais você tem consciência, mais intolerante fica em relação à discriminação, seja ela qual for. Tenho por opção na minha vida ser completamente intolerante com a discriminação. Na minha casa, não quero ninguém racista, homofóbico, machista, que não goste de animais. Penso que se não formos cada vez mais radicais, não chegaremos a lugar algum”, brada a dona de uma voz doce, defendendo repúdio extremo às atitudes preconceituosas. “Não acredito que o racismo vá acabar, mas espero que as pessoas estejam mais apoderadas para lidar com ele e enfrentá-lo.”