Ecos de um tambor silenciado

Primeiro livro de William Melvin Kelley, lançado em 1962 e considerado um clássico moderno redescoberto há pouco, “Um tambor diferente” é lançado no Brasil


Por Júlio Black

07/06/2022 às 07h00

William Melvin Kelley, comparado a Joyce e Faulkner, escreveu sobre o que pessoas brancas pensavam de pessoas negras (Foto: Carl Van Vechten Trust/Beinecke Library, Yale)

Clássico da literatura contemporânea norte-americana – e redescoberto recentemente graças ao movimento Black Lives Matter -, “Um tambor diferente” (Todavia), de William Melvin Kelley, chega ao Brasil 60 anos depois de seu lançamento. Além de um pungente relato do racismo no Estados Unidos de seis décadas atrás, é prova de que há muitos clássicos esquecidos que aguardam apenas uma oportunidade para serem resgatados do ostracismo.

“Esquecimento”, aliás, que não é culpa do escritor, que morreu em 2017, aos 79 anos, pouco antes de se tornar uma nova referência para os movimentos de igualdade racial. Originário de uma família afro-americana de classe média de Nova York, ele foi aprovado na Universidade de Harvard em 1956 e sonhava se tornar um advogado de direitos civis; porém, não demorou para descobrir sua paixão pela literatura e mudar para o curso de inglês. Entretanto, largou a universidade para se dedicar à carreira de escritor, lançando “Um tambor diferente” em 1962. Sua estreia literária foi aclamada, e Kelley chegou a ser comparado a nomes como James Joyce e William Faulkner.

PUBLICIDADE

Ele lançou mais três romances e uma coletânea de contos até 1970, mas nenhum deles – apesar das críticas positivas e de um estilo considerado ímpar – alcançou o mesmo sucesso de sua primeira obra, e William Melvin Kelley foi caindo no que podemos chamar de “ostracismo controlado”, pois seguiu escrevendo contos e ensaios para publicações como a “New Yorker”, “Playboy” e “Harper’s”, além de começar a trabalhar como professor nos anos 1980 (ele ainda escreveu outros dois romances, ainda inéditos por terem sido recusados por diversas editoras).
O período de ostracismo do escritor tem sido explicado de forma bem simples: suas histórias tratavam, essencialmente, do racismo sofrido pela população preta, mas estas eram contadas, principalmente, pelo ponto de vista de personagens brancos, com todos os seus preconceitos e defeitos. Dessa forma, a população negra não se sentia representada pelos personagens, e os brancos não queriam ler livros em que eram retratados de forma negativa. Só agora, tanto tempo depois, essa forma peculiar de enxergar essa mácula ainda presente na sociedade norte-americana ganha a valorização que merece.

Lançado em 1962, livro de estreia de Kelley foi redescoberto nos últimos anos (Foto: Reprodução)

Diáspora às avessas

Com a vida e obra de William Melvin Kelley contextualizadas, é possível escrever sobre “Um tambor diferente” e afirmar que se trata de um clássico da literatura do século passado, essencial para entender um pouco mais como o racismo segue com raízes profundas na sociedade norte-americana. A história se passa na fictícia cidade de Sutton, nas proximidades de New Marsails, que seria a capital de um imaginário estado sulista – e racista – entre o Mississipi e Alabama. Um de seus habitantes é Tucker Caliban, negro descendente de gerações de escravos, que compra um pedaço da fazenda onde seus antepassados foram obrigados a trabalhar – seu bisavô seria a criança que um mítico negro, conhecido como O Africano, defendeu com toda sua lendária força antes de ser traído e assassinado.

Um dia, porém, Tucker salga todo o terreno de sua fazenda, mata os animais e ateia fogo na própria casa, e segue em direção ao Norte com a esposa. A população branca fica estupefata com a atitude, e o assombro aumenta quando toda a população do estado segue os passos de Caliban, abandonando suas terras e demais posses em direção ao mesmo Norte.

Sem entregar os motivos que levaram Tucker Caliban a fazer o que fez – e por que todos os negros seguiram seu exemplo -, William Melvin Kelley conta a história a partir do olhar dos personagens brancos, que transitam pelos mais variados sentimentos. Se eventualmente surge um ou outro personagem que acredita ser “amigo” dos negros, a grande maioria, na verdade, tenta agir com indiferença e até mesmo alívio com a partida deles, mas acaba escancarando seu racismo e transforma a postura ativa dos afro-americanos em motivo de ressentimento, ingratidão, de perda de uma “posse” e revolta, chegando a um clímax violento.

Ao terminar a leitura de “Um tambor diferente”, percebe-se a genialidade de William Melvin Kelley em retratar uma “diáspora às avessas” da população preta norte-americana, que deixa de ter uma postura algo passiva para enfim buscar sua autodeterminação e, enfim, libertar-se de vez da escravidão do passado que assombrava seu presente. Sorte nossa que esse clássico moderno deixou as sombras do esquecimento.

O conteúdo continua após o anúncio

Os comentários nas postagens e os conteúdos dos colunistas não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir comentários que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.