TV Industrial é resgatada após tombamento do prédio
No ano em que sua fundação completa 55 anos, prédio sede continua abandonado, assim como o Morro do Imperador
A pintura se perdeu, as paredes apresentam infiltrações, há rachaduras atravessando os azulejos da fachada, as janelas basculantes estão quebradas. Pelas frestas no portão empenado do imóvel, é possível ver entulhos em seu sujo interior. Numa lateral há um buraco bem no meio da parede, no mesmo lado onde uma janela aparece com o vidro estilhaçado. E não há vigilância no local. Propriedade da mesma Prefeitura que decretou seu tombamento, o prédio erguido para o funcionamento da TV Industrial é retrato de um abandono pelo qual o instrumento de preservação é contrário. Ainda que o tombamento, publicado no último dia 14, estabeleça a proteção da fachada e volumetria do imóvel, o que representa é, sobretudo, a tentativa de conservação de um projeto fundamental para a história recente da cidade. Não à toa, dentre as cinco justificativas para o gesto, estão “o valor histórico e cultural da edificação”, “que o referido edifício remete à chegada da TV em Juiz de Fora”, e “que a edificação constitui um símbolo do pioneirismo da cidade, uma obra moderna e inovadora”.
Projetado pelo engenheiro Armando Favato, o prédio de características modernas servia ao estúdio, auditório, redação, escritórios e torre de transmissão (duas vezes maior do que o monumento ao Cristo) da emissora de televisão inaugurada em 29 de julho de 1964. A Industrial ficava num pedestal. E mesmo não sendo a primeira iniciativa – já que a TV Mariano Procópio, dos Diários Associados, estreou em 1961 sem aguardar a concessão – a emissora instalada no alto do Morro do Imperador ganhou a longevidade e, também, a posteridade. “Tinha, no pano de fundo, uma rivalidade, uma briga por concessão. A TV Mariano Procópio acabou ficando na linha do experimento, puro e simplesmente, porque eles não conseguiram uma concessão efetiva para transformar em emissora, e o grupo dos Mendes (família dona da Industrial) conseguiu a concessão pela proximidade política deles com o grupo trabalhista nacional. O status da Mariano Procópio acabou ficando no teste e o status da TV Industrial foi o efetivo, o oficial, o consagrado”, avalia o professor e pesquisador Frederico Belcavello, que em sua dissertação de mestrado investigou a história do canal 10 local.
“A narrativa da Industrial ficou tão forte que, durante muitos anos, esqueceu-se completamente da TV Mariano Procópio, ficando no imaginário a ideia de que a Industrial era a pioneira. Ouvi, quando adolescente e durante a faculdade, a história de que a Industrial era a primeira emissora geradora do interior do Brasil. Depois isso foi questionado localmente e em outros lugares, como Bauru, que teve um movimento histórico que demonstra que eles tiveram TV em 1959. O fato de essa narrativa ter durado tanto tempo tem a ver com a força que o canal teve”, comenta Belcavello, professor do curso de Comunicação Social do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora e doutorando em linguística pela UFJF. Diretor, produtor, apresentador, roteirista e editor na extinta TV Visão, ele se interessou pelo assunto após os cinco anos, de 2003 a 2008, de atuação no canal local transmitido pela Net, frequentemente associado ao projeto que chegou ao fim em 1979, 15 anos após sua inauguração com show de Doris Monteiro.
Para Christina Ferraz Musse, professora do curso de Comunicação Social da UFJF e autora do livro “Memórias possíveis: personagens da televisão em Juiz de Fora”, em parceria com Cristiano José Rodrigues, a TV Industrial representa um marco por sua localização histórica. “É um momento da televisão brasileira tão diferente do momento atual. As emissoras locais tinham uma identidade tão profunda com a comunidade, com as coberturas de carnaval, programas de auditório, com um telejornalismo que era praticamente um rádio na TV. As pessoas que viviam na cidade tinham um espaço muito maior para serem vistas e ouvidas. Os intervalos comerciais eram muito referentes a elas. Tinham muitas pessoas da comunidade que iam se apresentar na TV Industrial, como, por exemplo, um colégio que fazia uma apresentação de uma peça de teatro, ou um cabeleireiro que ia demonstrar seu trabalho. São muitas as histórias curiosas”, pontua a pesquisadora carioca, radicada em Juiz de Fora desde 1980, quando a TV Industrial já havia sido vendida para Rede Globo, que começou a funcionar em abril daquele ano.
Questionada pela Tribuna sobre a perspectiva de revitalização do imóvel, que apresenta rachaduras, infiltrações e janelas e parede quebradas, a assessoria de comunicação da Prefeitura informou que, após visita técnica, foi constatado que não há comprometimento estrutural do prédio. “Em 2017, já havia o interesse de fazer com que o espaço abrigasse o projeto “Cineminas” – Programa Codemig de Apoio ao Cinema, o que só não foi possível por restrições documentais. Atualmente, a Sedeta vem sendo procurada por alguns entes privados que se interessam em restaurar, manter e explorar o local, e entende que o espaço teria vocação para um equipamento de difusão cultural, podendo passar, inclusive, pela gastronomia e pela valorização da tradição na produção cervejeira de Juiz de Fora”, aponta a assessoria da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Turismo e Agropecuária (Sedeta). Sobre a ausência de policiamento, a pasta assegura que a Polícia Militar utiliza o espaço como ponto de referência para o patrulhamento regular. Ainda, acerca dos vidros e telhados quebrados na área onde já funcionou restaurante e boate, no complexo do Morro do Imperador, a Prefeitura indica que “a manutenção nos vidros e no telhado será exigida ao futuro permissionário da exploração do espaço. A Prefeitura não possui verbas específicas disponíveis para a reposição destes tipos de materiais.”
A TV tornou-se outra
Como uma lenda, restou a história de que logo após a venda da TV Industrial para a TV Globo de Roberto Marinho, um funcionário pegou todos os filmes da extinta emissora e lançou no Rio Paraibuna. Não sobrou um fotograma sequer, nenhuma imagem. “Os relatos das pessoas que atuaram na TV na segunda metade dos anos 1970 são de um trabalho muito amador, bastante improvisado. Mas o parâmetro da época é difícil de entender também. Tinha um caráter familiar, e isso é muito evidente”, analisa Frederico Belcavello. Se as águas levaram ou não os registros, o que ficou preservada na memória dos juiz-foranos é a lembrança de um veículo que se esforçou para retratar a cidade que via do alto. A programação predominantemente local contava com, dentre outros, edições locais de programas de auditórios vindos da rádio ou da TV no Rio de Janeiro. “Vinha toda a trupe e montava aqui programas que, na verdade, já funcionavam e eram conhecidos da época do rádio”, aponta Belcavello. “Acho que eles seguiram a cartilha de reproduzir um conteúdo radiofônico. Como tinha a Rádio Industrial e Juiz de Fora vivia um tempo profícuo de rádio entre a Industrial e a B3, com radionovela, programas de auditórios, eles fizeram a transposição para a televisão, como a Tupi tinha feito nos anos 1950. Não tenho qualquer tipo de material que sustente a ideia de vanguardismo”, acrescenta.
A programação, segundo Christina Musse, era muito rica, “certamente com uma qualidade muito precária, algo muito artesanal, o que não se compara à tecnologia incorporada à TV depois que é vendida e se transforma na TV Globo de Juiz de Fora”. Havia público, claque, torcidas e grandes debates. “Em termos da representação da cidade, o Geraldo Magela contando sobre o ‘Sermão da Montanha’, que eles fizeram no alto do Morro do Imperador, num dia de chuva, é genial”, aponta a professora, referindo-se ao relato do jornalista morto em 2015 presente no livro “Memórias possíveis”. “Uma meia dúzia de pessoas de guarda-chuvas e outras dentro do estúdio, José Carlos de Lery Guimarães apresentando, o saudoso e imortal José Carlos. O câmera focalizava os guarda-chuvas. Parecia que tinha uma multidão só. Lá dentro do estúdio um boom fazendo a claque: ‘Já ganhou! Já ganhou!’. Parecia, a quem estava assistindo em casa, pela TV, que tinha uma multidão no Morro do Cristo. E aquilo decidiu a eleição. Foi o primeiro comício ao vivo transmitido por uma TV, foi na TV Industrial, canal 10”, orgulha-se Magela, em depoimento a Christina. “Quando nós descemos, depois do comício, que fomos ao bar, ao restaurante para jantar – era um restaurante aqui próximo à antiga rodoviária, na Avenida Getúlio Vargas com a Avenida Rio Branco – via-se a quantidade de gente que estava ali esperando e que tinha visto o programa. E no outro dia também, só se comentava o programa da TV Industrial que foi no último dia de campanha.”
Carregando câmeras pesadas morro abaixo, a TV Industrial fazia a transmissão do carnaval local, também exibia as famosas lutas livres, precursora das atuais e pomposas disputas de MMA. “É algo tão artesanal e tão interessante, do espírito de uma época, que transmite tanto sobre o que era o Brasil, o que era Minas e o que era Juiz de Fora naquele período”, comenta Christina. Transportando um gigantesco piano de cauda morro acima, a TV também exibia o programa “Panorama Social”, que tinha o empresário Rafael Jorge, do Raffa’s, como apresentador. “A TV Industrial conseguiu audiência porque ela focalizava rigorosamente as coisas de Juiz de Fora”, reconhece Geraldo Magela Tavares, que de acordo com Christina tornou-se uma figura de muito relevo para a compreensão da expressão da TV na cidade: “O Geraldo foi uma figura interessantíssima, fazendo programas de transmissão esportiva dos jogos do campeonato carioca e debates em que cada pessoa que participava da mesa era torcedor de um time específico de futebol. Era uma forma de programa jornalístico de esportes que antecedeu tudo o que vemos hoje com as mesas esportivas.”
A TV agora é outra
Quatro anos depois da inauguração da Industrial, em 1968, sob a ditadura militar, entrava no ar o “A Hora é Notícia”. “Começou em 1968, com uma hora e quinze de jornal. Havia cinco locutores, às 18h começava; eram 16 quadros com 16 patrocinadores, diários. Era aberto com uma espécie de crônica de opinião (editorial), ora lida por mim, ora lida por Natálio (Luz), que teve sempre uma voz magnífica, belíssima. Nós fazíamos esse editorial e depois vinham os locutores cada um dentro de quatro ou cinco módulos do jornal, que falava sobre sociedade, arquitetura, condução, moda, saúde”, rememora Marilda Ladeira, em entrevista conduzida por Christina Musse para o livro “Memórias possíveis”. O formato, relatado pela jornalista morta em 2016, serve como medida das transformações vividas pela televisão nas últimas décadas e que, em alguma medida, justificam o fim da iniciativa juiz-forana. “Acredito que tenha faltado ao grupo proprietário uma possibilidade de investir mais seriamente na televisão, tornando ela mais competitiva. Imagino que a falta de investimento em se atualizar, comprar novos equipamentos. Televisão é uma coisa cara. Houve uma época, ainda nos anos 1970, em que foi formada uma rede de emissoras independentes, na qual a TV Industrial fez parte. Mas essa rede não conseguiu fazer frente a um esquema com um capital financeiro muito alto de redes como a Globo, Excelsior, Continental e Band”, explica a pesquisadora.
“A Industrial era uma emissora na qual a programação era praticamente toda local. Eles entravam em cadeia, mas tinham um percentual de programas locais muito grande. Como uma emissora local poderia fazer concorrência com a Tupi e suas novelas? Com a Globo, que nos anos 1970 já vira uma campeã de audiência? Essa concorrência era dificílima, porque aí já começa a haver o sistema por satélites, as transmissões com videotape. A TV Industrial não conseguiu se manter estável economicamente, equilibrando receitas e despesas, mas em termos de programação, ela mostrava a cara da cidade”, lamenta Christina, chamando atenção para avanços tecnológicos que permitiram, também, uma agilidade maior na oferta de notícias e uma cobertura mais ampla dos acontecimentos. O próprio modelo representado pela Industrial, e depois repassado a projetos que a sucederam com o a TV Visão e a TV Tiradentes, remetem a uma experiência que perdeu seu lugar. “A televisão não vai acabar, mas o modelo que a minha geração conheceu está em transição. O que comanda a produção audiovisual é o acesso ao conteúdo por streaming, na hora que você quer, sem obedecer a grade de programação, sem assistir dentro de casa, com uma tendência cada vez maior de assistir em outra tela, seja no computador, Ipad ou telefone. A maneira de fazer e assistir TV está num momento de mutação. Não sei se a gente vai poder chamar, daqui a dez anos, isso de televisão, talvez exista outro nome”, analisa a professora do curso de Comunicação Social da UFJF.
“O que percebi do meu levantamento é que o legado é a sensação de que a sociedade juiz-forana clama por canais da expressão local. De tempos em tempos, vamos sentindo a necessidade de ter um espaço de identificação. Vemos um movimento de diminuição de grade local em televisão, e ciclicamente se abre o caminho para aumentar, de redução de programação local em rádio e isso mexe com a gente, de valorização por termos um jornal local com a expressão da Tribuna, o que não é normal Brasil afora. Esse é um legado importante: sentir que a cidade deseja e entende ser fundamental se ver representada em veículos de comunicação”, comenta Frederico Belcavello. Em seu trabalho no qual resgata a relevância da TV Industrial, intitulado “A TV Industrial de Juiz de Fora: memórias da juizdeforaneidade (1964-1979)”, Belcavello trabalha com o conceito que, em suas palavras, “situa as coisas que aconteciam aqui e tinham um verniz de localidade e claramente se antagonizava com a ideia geral de mineiridade”. A grande resistência de Juiz de Fora em se ver representada politicamente e economicamente por Belo Horizonte e pela região metropolitana, conforme aponta o pesquisador, manifestava-se na programação e no conceito da TV Industrial. “Justamente por combinar as coisas específicas da cidade e a valorização do Rio de Janeiro. Essa orientação de olhar para o Rio de Janeiro e ressignificar as coisas aqui, como uma sucursal carioca, parecia ser um traço bastante importante do que eles tentaram fazer na TV Industrial. Ela se colocava como um canal local em contraposição a todas as outras opções, que não eram muitas, e não eram locais. Juiz de Fora está em Minas Gerais, mas não é como todo o estado. Está próxima do Rio de Janeiro, mas longe de ser carioca. Esse lugar de passagem, que ficou marcado na história da gente ao longo do tempo, continua sendo sentida, porque há uma busca por uma identidade juiz-forana.”