Artistas comentam a polêmica Neil Young vs. Spotify

Lenda do rock e folk, cantor canadense retirou seus álbuns do Spotify porque serviço de streaming manteve podcast negacionista


Por Júlio Black

06/02/2022 às 07h00

Pouquíssimas músicas de Neil Young restaram no Spotify depois que o cantor canadense retirou sua discografias inteira do Spotify (Foto: Fernando Priamo)

Há mais ou menos seis décadas, a cultura e o mundo mudaram quando os jovens de então passaram a contestar a política, a religião, a sociedade e as autoridades através da música, principalmente através do rock ‘n’ roll e da música folk. Tantos anos depois, são os veteranos dessa época que mostram que os artistas ainda podem ser os agentes de mudança ou de confrontação, não apenas através de sua obra, mas também graças a suas atitudes. Sim, estamos falando da recente polêmica que envolve uma das lendas do folk e do rock, o canadense Neil Young, e o Spotify, uma das mais populares plataformas de streaming de música do mundo.

Para quem está alheio à treta, explicamos. No fim de janeiro, Neil Young anunciou que tiraria todo seu catálogo do Spotify por causa do podcast do norte-americano Joe Rogan, acusado de entrevistar negacionistas e, assim, disseminar informações falsas sobre a Covid-19 e desestimular a vacinação, além de ser acusado de declarações racistas e homofóbicas. No esquema “ou ele ou eu”, o cantor e compositor – que contraiu pólio na infância, pouco antes da vacina contra a doença começar a ser aplicada – teve toda sua discografia retirada do Spotify, a despeito de ter mais de dois milhões de seguidores e seis milhões de ouvintes mensais na plataforma, que preferiu manter o contrato de exclusividade assinado em 2020 com Rogan, de cerca de US$ 100 milhões (mais de meio bilhão de reais) e que tem um total de 11 milhões de reproduções de cada episódio.

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No último domingo (30), o presidente e fundador do Spotify, Daniel Ek, publicou uma carta aberta em que reiterou a posição da empresa sueca de manter o podcast negacionista em sua plataforma. Como “argumento”, ele declarou que a empresa tem “compromisso” com a liberdade de expressão e que “é importante (…) que não assumamos a posição de censor de conteúdo”. Como paliativo, o CEO do serviço de streaming anunciou que o Spotify passaria a tomar medidas para combater a desinformação, como adicionar um alerta de conteúdo para podcasts que tratassem da Covid e disponibilizar links que levem para material com informações cientificamente comprovadas.

A postura da empresa, porém, não ajudou a limpar a barra do Spotify. Ainda em janeiro, centenas de cientistas já haviam assinado uma carta alertando sobre o perigo da desinformação propagado pelo podcast de Joe Rogan, carta essa que fez Neil Young tomar conhecimento do alcance do podcast de Joe Rogan e pressionar o Spotify. O podcaster ainda foi denunciado por descumprir seguidamente as regras da própria plataforma contra desinformação a respeito da Covid-19, mas a plataforma de streaming manteve sua posição.

Reação dos artistas

Se alguma mudança virá, ela só deve acontecer se doer no bolso da gigante de streaming. Logo após o anúncio feito por Neil Young, o Spotify chegou a perder US$ 2 bilhões de valor de mercado em apenas um dia na Nasdaq, a bolsa de valores norte-americana das empresas de tecnologia, totalizando US$ 4 bilhões apenas na última semana de janeiro. Antes da polêmica, a empresa já havia encarado queda de 25% do seu valor.

E não é só o valor de mercado que o Spotify pode perder, pois ainda há a questão dos assinantes, que podem debandar para outro streaming caso haja um boicote massivo de artistas. Por enquanto o movimento tem sido tímido, mas alguns nomes da geração contestadora dos anos 1960 seguiram os passos do compositor de “Harvest Moon”. A primeira foi a artista folk Joni Mitchell, que anunciou que também tiraria seu catálogo do Spotify. Atualmente, é possível encontrar apenas os quatro álbuns lançados por ela entre 1982 e 1991.

Parceiros de Neil Young em projetos variados, David Crosby, Stephen Stills e Graham Nash anunciaram em carta aberta que também tirariam seus álbuns solo e de projetos como os supergrupos Crosby, Stills & Nash e Crosby, Stills, Nash & Young do catálogo do serviço de streaming. Até o momento, já não é mais possível encontrar alguns dos discos dos artistas. O guitarrista Nils Lofgren (E Street Band e Crazy Horse, que costumam tocar com Bruce Springsteen e Neil Young, respectivamente), a cantora India Arie e a banda Failure também anunciariam que iriam cortar os laços com o Spotify.

Atentos à polêmica

Será que uma saída generalizada dos medalhões da música seria capaz de afugentar assinantes o suficiente para abalar a força do Spotify e forçar a empresa a rever suas prioridades? E como os artistas, sejam eles gigantes do pop ou independentes, podem fazer a diferença num momento em que a desinformação, o negacionismo e as fake news são tão difíceis de combater? Quantos nomes seriam necessários para bater de frente com as corporações?

Guitarrista e vocalista do Autoramas, uma das mais longevas e populares bandas independentes do Brasil, Gabriel Thomaz comenta que há vários aspectos a serem observados, a começar pela questão da remuneração dos podcasts em um serviço de streaming musical: dificilmente um artista ganhará os mesmos US$ 100 milhões pagos pelo Spotify a Joe Rogan.

“Eu nunca vi nenhum artista sendo contratado pelo Spotify, nem que seja recebendo uma grana menor, pelo menos nunca vi um artista tendo exclusividade nesses serviços, pelo menos no Brasil”, aponta. “Quando um artista lendário como o Neil Young, ouvido no mundo inteiro, toma uma atitude de pressão para que não se divulgue um material que faz mal a todos – e isso tem resultado, pois o Spotify perdeu bilhões de dólares em um dia, a ponto de avisarem que o material pode ser contestado -, é muito relevante”, diz.

“Certamente isso não é suficiente para o Neil, mas eles estão pensando no pessoal que pode boicotar. Vários outros artistas não conseguiram ainda tirar suas músicas do Spotify porque, se tiram de uma plataforma, têm que tirar de todas. É o caso do Autoramas. Mas vi que artistas colocaram a imagem ‘delete Spotify’ em seus perfis do serviço”, prossegue o músico, ressaltando que o Spotify, pelo menos no caso do Autoramas, sempre realizou ações com a banda. “É surpreendente que a empresa apoie e pague muito caro para ter um conteúdo negacionista.”

Para os integrantes da Onze:20, é importante se posicionar contra o negacionismo, mas banda prefere não privar os fãs de suas músicas (Foto: Fernando Priamo)

Contra o preconceito, a favor da música

O baterista da banda juiz-forana Obey!, Lipe Tedeschi, elogia a reação de Neil Young. “É uma atitude corajosa e louvável, de um artista que está mantendo o seu posicionamento além da música em uma causa contra a maior distribuidora de música que temos hoje no mercado”, afirma. Fábio Mendes, baterista da banda juiz-forana Onze:20, diz que o grupo não concorda com nenhum tipo de preconceito e também com nenhuma propagação de informações falsas, “principalmente sobre a pandemia, que vem afetando a vida do mundo todo”. Ao mesmo tempo, ele pensa nos fãs que podem ficar privados da música do artista canadense. “Acreditamos que o Neil Young, por toda a sua história de vida, tem motivos para não querer estar em uma mesma plataforma que o Joe Rogan. Ao mesmo tempo, achamos muito radical privar uma parte do seu público de ouvir as suas músicas. É aquilo, né? Cada um é cada um”, diz.

“Existem várias formas de se posicionar e defender o que você acredita”, argumenta Fábio. “Nós, por exemplo, estamos sempre falando em entrevistas, shows e nas redes sociais o nosso pensamento. Não somos a favor do Joe Rogan, mas também não vamos tirar a nossa música do Spotify porque grande parte do nosso público está lá, não queremos que ele ‘pague’, de certa forma. Acreditamos que cabe a cada artista pesar na sua balança e ver se vale a pena continuar ou não na plataforma.”

Quem vai boicotar?

Até o momento, poucos artistas de peso pularam fora do barco do Spotify. Questionado se artistas como U2, Rolling Stones, Radiohead e Madonna poderiam fazer a empresa mudar de posição caso ameaçassem deixar o serviço – o que poderia acarretar numa debandada de assinantes -, Gabriel Thomaz acredita que eles deveriam seguir Neil Young. “Está demorando para o Bono (do U2) aderir, e ele pode fazer isso, assim como a Madonna. Espero que eles estejam aguardando uma posição do Spotify. Imagina se tiram os Beatles da plataforma”, opina o músico.

O conteúdo continua após o anúncio

“O mundo está cada vez mais diversificado. O que é bom para mim, não é bom para você”, pontua Fábio Mendes. “Ficamos chocados como existem pessoas que não são a favor da vacina, por exemplo. Acreditamos que o peso desses artistas pode influenciar o Spotify, sim, e ao mesmo tempo existem outros que vão passar panos quentes. Se a maioria desses grandes artistas ameaçar deixar o Spotify, com certeza alguma mudança seria feita, pois a plataforma estaria perdendo, literalmente, em números por defender um negacionista. Joe Rogan sozinho não vai ser maior que Neil Young, U2, Madonna e por aí vai. É aquilo, ‘hoje você é interessante pra mim, se amanhã não é, tchau!’. O mundo está e é cada vez mais assim.”

“Com toda certeza, o Spotify é uma grande ferramenta para divulgar o nosso trabalho, mas temos outras opções no mercado – claro que não com o mesmo alcance”, analisa Lipe Tedeschi, para quem qualquer tipo de mudança só acontecerá se houver pressão. “Para o artista que já tem um público formado e fiel, acredito que os fãs migrariam para outras plataformas. Mas é uma situação muito complexa para avaliar.”

Canção e ação

Para Gabriel Thomaz, a atual polêmica envolvendo o Spotify serve de argumento para quem defende que é preciso que o artista reforce sua posição de agente de mudança ou de confrontação – e não apenas através de sua obra, mas também por suas atitudes. “O surgimento de um gênero como o rock vem desse desejo de mudança, da luta contra as injustiças, desde os anos 50 e 60, depois com o punk, e nos anos 80 com o U2. Um artista como o Kurt Cobain (do Nirvana) certamente ficaria revoltado com um serviço que prefere o negacionismo, é uma loucura isso”, acredita. “Talvez muitos dos problemas contra os quais os artistas lutavam tenham sido resolvidos, mas agora temos um retrocesso, esse tipo de atitude é realmente necessária. ‘Ideias’ negacionistas são coisas que devem ser combatidas, assim como governos autoritários e as fake news que fazem as pessoas acreditarem nessas ‘crenças inacreditáveis’”.

Lipe Tedeschi segue na mesma linha do frontman do Autoramas. “Atitudes de artistas e bandas possuem uma grande influência em sua base de fãs e seguidores, sejam elas negativas ou positivas. Durante a pandemia, temos nos orgulhado e nos decepcionado com o posicionamento de alguns desses artistas, e acredito que isso acarrete na reflexão da galera em relação a todas essas mudanças que estamos passando. As verdadeiras atitudes corretas devem acontecer justamente fora dos holofotes; não podemos falar algo nas nossas músicas e fora delas viver algo completamente diferente”, expõe.

Fábio Mendes diz, por sua vez, que os artistas têm papel muito importante perante o público, mas que nem todos possuem essa consciência. “A gente tem que pensar muito bem antes de falar e agir. Todos dizem querer um mundo melhor, com menos desigualdade e mais inclusão social. Será que todos que dizem isso fazem por onde? A gente pode dizer que nós, do Onze:20, fazemos! Tentamos mostrar para as pessoas que nos acompanham que devemos tratar o outro com respeito, que não importa a cor ou raça; o outro tem o mesmo direito que você, que a vacina é importante para podermos nos encontrar nos shows e por aí vai.”

Aproveitando o gancho, Gabriel Thomaz faz o que chama de “pequena provocação” aos artistas de outros gêneros ou que não costumam ter posição em questões polêmicas. “Foram os artistas que têm experiência no protesto, no inconformismo, que tomaram alguma atitude. Estou aguardando uma atitude do pessoal do rap e de outros gêneros, como o pop, ver quem vai tirar suas músicas (do Spotify). Quanto ao rock nacional, hoje existe esse discurso que roqueiro é ‘reaça’, mas, para mim, roqueiro é como o Neil Young. Acredito que todo mundo tenha seus contratos a cumprir, mas o Neil mostrou que não tem rabo preso com ninguém.”

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