Dia de Reis é celebrado em Juiz de Fora
Com 12 folias, tradição na cidade se mantém com presença de nova geração devota aos Santos Reis
“Fica com medo não, meu filho, eles são do bem”, disse uma moça a seu filho, no Parque Halfeld. Além dos dois, mais uma centena de pessoas, algumas com celular na mão, se mantinham com olhos fixos na Resposta do Oriente Jesus Vivo, a Folia de Reis do André. Depois de uma peregrinação que passou por diversas cidades da Zona da Mata, nesta quinta-feira, véspera do Dia de Reis, celebrado nesta sexta-feira (6), o grupo se concentrou no Parque Halfeld para se preparar e adentrar a sede da Funalfa. Ainda dispersos, bastou que André gritasse: “Vamos acelerar. Capacete na cabeça”, para que todos se aprumassem e se organizassem da mesma forma como fizeram durante 12 dias, do dia 24 de dezembro ao dia 6 de janeiro.
Dois apitos dados pelo responsável da folia e lá vão eles: tocadores e cantadores ordenados em fileiras e palhaços mais a frente, balançando o corpo, rodando entre quem estava ali apenas para acompanhar a apresentação, mas com olhares vidrados. Quando sobem a escada da fundação, entoando os cantos que avisam a chegada, dá para sentir o chão tremer. André faz as perguntas e todos respondem em coro agradecidos a Deus por cumprirem sua jornada. Ele, de olho fechado, toca um pandeiro forte. “Não chore, quem cuida de você não dorme. Levanta, tem muita gente que te ama”, entoam.
Toda essa movimentação tem um significado. Trazida há tanto tempo para o Brasil, a Folia de Reis abraçou as manifestações do país, tanto de matrizes africanas quanto católicas. Conhecida também como Reisado, aqueles homens representam a visita dos Reis Magos ao menino Jesus, guiados pela estrela do oriente. “Só que nesse caminho, eles se hospedaram no palácio de Herodes. Eles falaram que Jesus tinha nascido. Foi quando Herodes mandou que os soldados matassem Jesus. E por isso essas figuras do palhaço, que representam os soldados na perseguição, principalmente naquela passagem da bíblia que fala que eles mataram todas as crianças abaixo de 2 anos. A nossa bandeira a gente leva como forma de presentear os devotos. Os magos levaram ouro, incenso e mirra, que naquela época eram as joias mais caras. A gente hoje leva prosperidade, saúde e harmonia nas casas”, diz André Brasilino que, além de comandar a Folia de Reis Resposta do Oriente Jesus Vivo, também é presidente da Associação de Folia de Reis e Charolas de Juiz de Fora e Região.
Festejo e fé
André, inclusive, desde os seus 14 anos faz parte das folias. É coisa que vem de pai para filho. E é, então, impossível negar a tradição. Ele já foi palhaço, catarina, folião e, então, o mestre. Se mantém há mais de 30 anos na tradição porque acredita que é assim que a memória não há de ser apagada. “É uma tradição, sim, mas em primeiro lugar vem a devoção, uma questão de fé. É uma forma de mostrar à comunidade o que a gente significa. Porque se não cuidar, acaba. Não tem jeito. Mas mostra também que estamos vivos”. Esses 12 dias são apenas um pedaço do que realmente são as folias. Logo após a quaresma, eles já começam a se reunir, fazer as roupas e realizar os ensaios. “Folia é troço complicado de se fazer”, brinca o presidente, justificando o fato de Juiz de Fora ter 12 registradas há tempos. “As que se mantêm são as mais tradicionais.”
É difícil porque, na verdade, é um processo anual de abdicar sua vida para viver a folia. “A gente roda muito. Hoje (última terça), por exemplo, fomos almoçar às 17h. Estou conversando com você enquanto a gente descansa, mas já tem um bairro esperando aqui em Ubá, onde a gente vai almoçar. E tem que ir. É demonstração de fé. A gente come o que dão, dorme onde é recebido, passa fome, frio, pega chuva e sol. Mas a gente se mantém firme. Cumpre a nossa jornada”, emociona.
Um bem imaterial
André explica que, apesar de ter origem católica e de frequentarem também os terreiros de umbanda, a folia é para todo mundo. “O que guia a gente é a estrela guia. Da mesma forma que os reis do oriente tiveram dificuldades, não é sempre que a gente é bem aceito na comunidade. A gente sempre respeita a todos, mas não tem como esperar o mesmo. O preconceito acontece, mas a gente sai é pela bandeira. A gente pode bater em sete casas e ser rejeitado por seis, o que importa é a única que abriu a porta.”
Ele lembra, ainda, que a tradição foi tombada pelo estado de Minas Gerais, através do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha) que, em sua lista de 2020, consta com duas mil folias registradas, incluindo as 12 de Juiz de Fora: Charola de São Sebastião, Sinal dos Três Reis Magos do Oriente, A Estrela da Guia, Resplendor do Pai Eterno, Estrela de Belém, A Caminho de Belém, A Caminho da Salvação, Sagrado Coração de Jesus, Estrela do Amanhã, Resposta do Oriente Jesus Vivo, Estrela Dalva e Viagem dos Três Reis Magos do Oriente.
Antigamente, as folias da cidade, de acordo com o presidente, eram compostas, principalmente, por pessoas mais velhas. Isso, no entanto, foi mudando. “Hoje, 70% é jovem”, afirma. Para isso acontecer, foi necessário um trabalho de aproximação entre a tradição e a comunidade. Fabrício Ângelo, por exemplo, tem 20 anos. Com 3 participou de sua primeira folia. Depois com 5. Parou. Voltou com 15 e nunca mais saiu. “O André sempre fala que antes as pessoas mais jovens tinham vergonha de participar. Hoje mudou. Por isso não acaba”, diz ele, que participa do grupo Os Três Reis do Oriente. André analisa que grande parte das folias é fruto da Zona Leste. “Lá tinha muita briga. A gente fez um combinado: só poderia entrar nas folias se não tivesse mais participação nessas coisas. E deus certo. A violência na Zona Leste diminuiu muito. É uma amostra de que nosso trabalho está dando certo, tanto de valorização quanto de recuperação dos jovens. Por isso que, quando dá o dia 6, eu olho para a nossa jornada, e sinto gratidão. Surte mesmo efeito”, afirma André.
Novos foliões
Essa juventude foi trazendo coisas novas às folias. Pelas redes sociais, por exemplo, eles postam onde as folias estão. “E isso é legal porque a gente consegue chegar com a bandeira, através das redes sociais, onde o corpo não chega. É importante porque também é uma forma de tocar as famílias”, comemora André.
Fabrício é um dos responsáveis pelo perfil no Instagram que reúne registros de todas as folias da cidade. A página se chama Paixão Por Folia de Reis JF. A ideia surgiu quando ele viu que existia uma que reunia imagens de grupos do Brasil todo. “E, aí, quis fazer também para Juiz de Fora. Eu pensei: ‘Poxa, quero ajudar todas as folias’.” No começo, preferiu ficar no anonimato, porque temia que as pessoas achassem que ele iria beneficiar apenas a que participa. “Hoje, todo mundo marca a gente. Eles viram que é para todo mundo mesmo. Nesse tempo, que a gente não para, é mais difícil de postar. Mas quando eu paro, eu posto.”
A voz dele já estava rouca faltando ainda três dias para terminar a peregrinação. Ele toca a sanfona e canta. Lá quando era pequeno, confessa que não gostava muito de participar. Era por obrigação. Mas ficando mais velho, foi entendendo o significado. Mesmo com a correria – para, come, dorme e sai – ele afirma que mal dá para sentir o cansaço. “Folia, na verdade, para a gente é o ano inteiro. A gente só espera a quaresma acabar. Mas no dia 23 já está ansioso e no dia 7 fica triste por ter acabado e já quer mais.”
Ao contrário do que André falou que acontecia antes, Fabrício não sente vergonha. Muito pelo contrário: sente-se gratificado pela família que construiu dentro da folia. “A verdade é que a gente passa fome, passa frio e calor, sono, tudo junto. É muita convivência e por isso é uma família. E isso significa tudo para mim. Quando eu estou com a bandeira, peço pela minha família e os Santos Reis me atendem. Eu tenho fé. Por isso estou aqui.”
Folia para todos os espaços
Andar de casa em casa à mercê das intempéries é costume do grupo. Agora, adentrar a uma instituição acaba sendo a grande novidade para eles. Giane Elisa Sales de Almeida, diretora da Funalfa, no dia que recebeu a folia de André na sede da fundação, disse que é um dever daquela casa estar de postar abertas para todas as expressões culturais: “É um dever que a gente cumpre, cheio de alegria e afeto. Nada do que existe hoje existiria se o povo não estivesse ocupando esses espaços. O povo da cultura popular e preta.” Já André afirmou que a intenção é levar aquela bandeira sagrada a todos os lugares, e estar ali reafirma o objetivo de ocupar os espaços que são de todos por direito.