Retrato de Belchior pintado por Carlos Bracher é envolto em mistério
Paradeiro do quadro, pintado há cerca de dez anos durante uma visita do cantor ao ateliê do pintor em Ouro Preto, segue desconhecido
Segundo o artista plástico Carlos Bracher, ele pintou mais de 300 retratos em sua carreira, incluindo personalidades como Chico Buarque, Milton Nascimento, Ferreira Goulart, Vinicius de Moraes, Jorge Amado, Lô Borges, Maria Bethânia, Bibi Ferreira, Haroldo de Campos, Affonso Romano de Sant’Anna, Tizuka Yamazki, Leonardo Boff, José Celso Martinez, Henry Kissinger, Tony Bennett, Cristian Lanza e Fernando Parrado, um dos sobreviventes do desastre aéreo na Cordilheira dos Andes, nos anos 70. Citar tantos nomes logo no parágrafo de abertura desta matéria tem motivo: ainda que sejam figuras de relevância em suas áreas de atuação, provavelmente não existe quadro que tenha causado mais frisson que o retrato feito por Bracher na década passada do cantor Belchior.
E todo esse frisson tem a ver com o mistério que envolve os últimos anos de vida de Belchior, que na década anterior à sua morte, em 30 de abril de 2017, na cidade gaúcha de Santa Cruz do Sul, não teve o que se pode chamar de residência fixa. Foi um período em que não gravou álbuns, fez shows, e de raríssimas entrevistas para a imprensa. São várias as histórias ou lendas contadas a respeito desse período: que abandonou casa e carros em São Paulo, que viveu no Uruguai, se hospedava em hotéis e não pagava as contas das diárias, que passava temporadas em mosteiros, casas de fãs e deixava bens pessoais pelo caminho – e muito se especula que o quadro pintado por Bracher seja um desses bens, em uma das poucas histórias em que há testemunhas.
Como costumam receber muitos visitantes em seu ateliê, em Ouro Preto, a família Bracher não lembra exatamente a data, mas acredita que foi em 2011 que Belchior apareceu por lá, acompanhado da namorada, e, conversa vai, conversa vem, Carlos Bracher pintou um retrato do artista cearense, que ganhou a obra de presente e foi embora. Depois desse dia, nunca mais tiveram contato.
Quando o CCBB realizou a exposição “Bracher: Pintura & Permanência”, anos depois, a família tentou encontrar o quadro por vários meses, sem sucesso. Recentemente, por conta do aniversário dos cinco anos da morte de Belchior, a filha de Carlos, Larissa Bracher, fez uma postagem em seu perfil no Instagram (@larissabracher) com o único registro fotográfico do retrato, além da foto que mostra o cantor posando para o artista plástico. A repercussão foi grande, com a família sendo procurada por diversos veículos de imprensa, mas o principal efeito da postagem foi despertar parte do que há de melhor na internet, com os fãs de Belchior se mobilizando para tentar resolver o mistério do quadro desaparecido.
Repercussão nas redes socias
Responsável por despertar a curiosidade de tanta gente, Larissa Bracher diz que ficou surpresa com a repercussão nas redes sociais e imprensa. “Quando fiquei sabendo que seria o quinto aniversário da morte do Belchior, postei a foto do meu pai fazendo o retrato dele e falei ‘gente, vamos tentar achar o quadro’. Para minha surpresa, várias pessoas começaram a postar também, a imprensa nos procurou, foi uma loucura”, relembra. “Aí que a gente vê a mística da pessoa, que ajudou as pessoas a ficarem curiosas em relação ao quadro, que eu queria tanto que tivesse feito parte da exposição, porque é maravilhoso.”
De acordo com Larissa, ela foi procurada pela família de Belchior, que também não tem ideia do paradeiro da obra, além de várias pessoas que passaram contatos que poderiam jogar alguma luz sobre o caso – por enquanto, sem novas pistas, apenas pessoas dizendo que são conterrâneas do cantor cearense ou que moram na cidade onde ele morreu. “Passou a ser um jogo de detetive. Mas o que tenho percebido é que as coisas dele foram muito dilapidadas. Pelo menos tem havido uma grande mobilização.”
Para Carlos Bracher, o mistério do quadro de Belchior virou o que ele chama de “busca e pergunta nacional”, muito por conta das lendas que envolvem os últimos anos do autor de “A palo seco”. “Esse fim de vida dele foi muito confuso; o Belchior foi sumindo, desaparecendo, ninguém sabia o destino dele. Ele foi se diluindo no tempo”, filosofa. “Parou de fazer shows, foi se encobrindo de névoas, andava sem dinheiro, ficava em hotel e não tinha dinheiro para pagar, deixou um carro num aeroporto, foi tendo um fim de vida muito estranho.”
‘Belchior era uma pessoa muito gentil’
Os Bracher não lembram com exatidão quando Belchior bateu à porta do ateliê da família, mas as lembranças das horas com o artista seguem frescas na memória. “Ficamos batendo papo e ele gostou muito dos retratos que estavam no ateliê, falou que gostaria de ser pintado por mim, e eu falei ‘tudo bem’, e foi uma maravilha!”, relembra. “Todo retrato é um enigma, o artista não tem uma regra do tipo ‘hoje vou fazer um quadro bom, uma música, um poema’. Tem um grande campo da arte que é extremamente obscuro. No caso dele fiz um quadro muito bonito, um excelente quadro, peguei bem o jeito dele, aquela cara meio quadrada, aquele bigodão, ficou com uma expressividade. E de repente sumiu o quadro, o que é uma pena, fica um vazio dentro de mim. Gostaria de rever essa obra, pois quadro é sempre do autor, mesmo que pare em múltiplas mãos no seu caminho de ir para o mundo.”
Fani Bracher, por sua vez, fala sobre a experiência de ter recebido Belchior. “Ele era uma pessoa muito inteligente, simpática. Ficamos eu, Carlos, Blima e Larissa (filhas do casal) conversando com ele, ficou no ateliê até a noite. Ele provavelmente foi uma dessas pessoas que perguntam para um guia de turismo, por exemplo, onde moramos, e que vêm aqui e batem à porta”, diz, torcendo para que o quadro seja encontrado e, quem sabe, possa ficar em exposição no Ateliê Bracher.
Outra testemunha do que chama de “noite muito afetuosa”, Larissa também compartilha suas lembranças. “O Belchior também era pintor, conhecia a obra do meu pai, e por isso queria encontrá-lo. E foi lindo, porque já não morava em Ouro Preto na época mas pude ver o retrato, conversar com o Belchior, que era uma pessoa muito gentil, contou muitas coisas de sua vida”, conta, acrescentando que Carlos Bracher fez algo que não costuma: entregou o quadro no mesmo dia.
“E ele estava com um livro grande, mas grande mesmo, sem pauta, que eram feitas por ele a lápis. E o Belchior mostrou pra gente, ele escrevia com uma caligrafia antiga, rebuscada, e era uma tradução da Bíblia, minha mãe acha que era para o latim. Foi nessa ocasião que descobri que ele havia sido seminarista.”
Em busca do ‘filho’
Por enquanto, permanece a especulação sobre qual fim teria levado o retrato de Belchior. Larissa não duvida que ele esteja a enfeitar a parede da casa de algum fã, que o cantor poderia ter dado em troca de um lugar para ficar. Já Carlos Bracher tem uma visão mais dramática. “Às vezes está num fundo de boteco, até mesmo numa lata de lixo, ou foi usado para pagar algumas cervejas, uma semana de hotel.”
Bracher acredita, ainda, que o mistério do quadro se associou ao mistério dos anos derradeiros de Belchior. “O quadro foi nessa leva de mistérios, nessa fumaça, é ‘o quadro que virou fumaça’, sendo que o destino de um quadro é muito importante, pois ele é único, assim como a vida humana. É muito bonito saber a trajetória das pinturas. Como, na minha aferição, é um quadro muito bom, gostaria de saber o destino dele, pois só temos duas fotos dele, extremamente amadoras.” Outro motivo para o artista plástico ansiar por reencontrar sua obra é um projeto que planeja realizar: um livro com os retratos que pintou. “Um quadro como esse não pode faltar, mas é preciso tê-lo para ser fotografado.”
Por fim, Carlos Bracher fala sobre as emoções despertadas por conta dessa história. “Ficou mais agudo esse sentimento de intensidade daquele instante. Esse quadro passou a ser vital na minha vida, um símbolo. Essa história está me deixando mais apaixonado pela pintura e minha condição de ser pintor. A gente às vezes não se dá conta disso, do que um quadro pode promover em nosso espírito, em nosso alumbramento. Ele passa a ser uma entidade própria, real, visível, factível. Essa noção de identidade que ele passa a ter é muito bonita. Ele me pertence e não me pertence ao mesmo tempo, passou a ter um caminho tão próprio, saiu de mim mas ainda se corresponde e dialoga comigo, mesmo nessa obscuridade, ele dialoga. É como se ele dissesse ‘Carlinhos, eu faço parte de você e você faz parte de mim. É como se fosse um filho que vai para o mundo, e agora está voltando.”