Registros do breu
Enquanto os onipresentes celulares procuram a luz para fazer surgir a melhor selfie, o fotógrafo Renan Cepeda recorre ao breu. Enquanto há urgência nas imagens que se embaralham nas redes, o fotógrafo Renan Cepeda abre o obturador de sua câmera e aguarda calmamente até que ele vagarosamente se feche. Enquanto a arte contemporânea recusa as estéticas agradáveis, o fotógrafo Renan Cepeda se baseia no belo. Enquanto os turistas se apressam em enquadrar o Cristo Redentor como símbolo de uma cidade, o fotógrafo Renan Cepeda enfoca uma cidade naturalmente harmônica.
“O Rio de Janeiro é uma cidade horrorosa cravada num lugar espetacular. A fotografia infravermelha consegue enaltecer a natureza sobre a cidade, porque a clorofila dos vegetais fica muito brilhante e acaba camuflando a cidade numa paisagem”, diz o homem que se fez artista ao tomar para si técnicas que vão além do clique fugaz. Quando não se utiliza do infravermelho, que capta uma radiação invisível aos olhos, ele se apropria do light painting, que consiste na iluminação manual, em espaços escuros, de áreas que se deseja claras.
Sua criação, portanto, parte do papel em preto. Sua caneta, assim, é uma lanterna. “As fotografias desde que foram inventadas, 99,9% são feitas com a luz presente, do sol ou a que se apresenta para o fotógrafo. No universo da criação das artes visuais, sempre procurei ter alguma assinatura, fazer algo que só eu faço, buscando minha própria identidade. Então achei que a técnica do light painting era um campo vasto e pouco explorado, capaz de conferir uma linguagem para o meu trabalho. É uma forma lenta de fotografar, mais trabalhosa, que não é simplesmente apertar um botão”, pontua Renan.
A arte do homem que iniciou sua carreira nos anos 1980, em grandes veículos de comunicação como o “Jornal do Brasil”, chegando a ser correspondente em importantes agências fotográficas, está no processo. Em passagem por Juiz de Fora, para ministrar curso dentro do JF Foto 16, na última semana, Renan defendeu a criação como motriz para os profissionais. Num instante de imagens diversas e constantes, para que a próxima fotografia valha, é necessário que se estabeleça nova. O mundo hoje prescinde das novidades. Fora isso, será só mais uma foto. Ou mais um fotógrafo.
Imagem profunda
Filho de um fotógrafo amador, o carioca Renan Cepeda não pretendia ser mais um. “Quero atribuir um pouco de trabalho e erudição à fotografia. Vivo do mercado de arte, vendo minhas fotos em galeria, e 90% do meu dinheiro vêm disso, então, me sinto constrangido em entregar algo que fiz de maneira frívola. Gosto do trabalho quando ele é elaborado. Ainda que faça rápido, é preciso que seja resultado de estudo, pesquisa, tenha profundidade”, afirma ele, mecânico industrial por formação e artista por força do reconhecimento de um universo dos mais rigorosos.
“Se sou um artista é porque antes de tudo sou fotógrafo. É possível ser fotógrafo e não ser artista, mas para ser artista com fotografia é preciso saber o que faz. Comecei numa formação autodidata, mas muito ortodoxa. Aprendi a revelar os filmes, fazer a química, ampliar. Depois veio o digital, e precisei me inteirar dos processos e, mesmo nela há mágica,há segredos a serem desvendados”, aponta, certo de que para fazer uma gastronomia sofisticada é preciso cozinhar o feijão com arroz de todo dia.
“Vão de almas”, série na qual retrata os habitantes da comunidade quilombola homônima, na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, é prova de que o clique não se faz apenas de emoções. No ambiente negro ocupado por negros, Renan ilumina corpos e pequenos objetos, como a dizer de uma história que ganha nobreza a partir das narrativas individuais. Repleto de referências plásticas em diálogo com a história da arte, o trabalho toca por se fazer uma tela quando o recurso é uma câmera.
“Nesses retratos, há uma luz de Rembrandt, da escola holandesa. Naquela época, havia um estudo profundo da luz”, confirma. “Uma vez eu estava no Museu de Van Gogh e comecei a chorar na primeira sala, onde estão os pintores que o influenciaram. São fotografias: o olhar dos caras, a observação que eles faziam são fenômenos da natureza. Eles tinham que memorizar na retina a paleta de cor da paisagem, fotografando na memória para reproduzir na tela. Aí é que me caiu a ficha de que a fotografia começou muito antes da película, na memória. A película foi uma forma química de registrar com precisão.”
O peso do imprevisível
Ainda que recuse propositais referências, o pesquisador finalista do Prêmio Pipa de 2012, um dos mais importantes na cena contemporânea, sabe o terreno que pisa. “Em meu trabalho final, nunca percebi uma referência proposital. Costumo dizer que o único fotógrafo artista foi o primeiro, quem inventou o processo, e todos nós estamos plagiando. Todos temos como referência o Hercule Florence, o Daguerre (representantes de uma fotografia primitiva)”, comenta.
O domínio que o faz portar-se como mestre em cursos e oficinas pelo Brasil não retira dele, porém, a imprevisibilidade própria da fotografia. “Mesmo o mais experiente fotógrafo sempre vai se deparar com uma parcela de surpresa. A fotografia é mágica e pode surpreender o próprio autor. Esse jogo me faz ainda ser fotógrafo. Se ela fosse absolutamente previsível, não teria graça. Quando faço um trabalho em light painting, sempre fico ansioso com o resultado. Há dois anos fazia em filme. Ia para o sertão, fotografava, voltava para o Rio e no dia seguinte é que via o resultado”, conta. “Na medida em que vamos praticando, a porcentagem do previsível vai aumentando, mas nunca deixo se reduzir a 30%. O acaso é sempre o coautor da fotografia.”
O que o separa do fotógrafo trivial é justamente a dose de criatividade com que pode trabalhar, abrindo mão ou não de altas doses de imprevistos. “O fotojornalista tem o compromisso de informar. Ele já sai pautado, tem que entender o que vai ser publicado e quais são os elementos que devem estar presentes na imagem. Tanto o fotojornalista quanto o fotógrafo publicitário têm uma missão já pré-atribuída por outra pessoa. Já na fotografia de arte, a experiência da pessoa, a ideia, a história têm que ser traduzidas em imagem. No meu caso, a própria disciplina fotografia é o tema do meu trabalho. A fotografia como química, como algo mágico.”
Numa de suas sessões, chegou a esperar duas horas até que um único clique se finalizasse. O local: o Salar de Uyuni, na Bolívia. “Era uma foto de uma composição de trens abandonada, e a temperatura estava abaixo de zero”, recorda-se ele, ressaltando o valor do conhecimento na execução do que anseia ser o novo. Ainda assim, não há receitas. Fotografia, diz, não é como o pudim que pede à atendente durante a entrevista, a algumas horas de uma sessão, junto de seus alunos juiz-foranos, na pequena comunidade rural de Dias Tavares.
Naturalmente contemporâneo
“Muitos fotógrafos que migraram do fotojornalismo e da publicidade para o mercado de arte se deram mal por achar que tinham que fazer algo que não era para eles. Vieram de uma fotografia objetiva, um mundo riquíssimo, e se sentiram obrigados a atender um discurso para fazer um trabalho subjetivo. Não entrei nessa jogada, que é uma armadilha. Sou e continuarei sendo fotógrafo. Não tenho a preocupação de ser artista contemporâneo”, afirma ele, contemporâneo por si só, ao escolher o que o desafia.
“Sempre falo ao meus alunos: A última coisa que o mundo não precisa é de mais um fotógrafo. É cruel, mas digo isso para eles prestarem atenção de que precisam fazer a diferença. Estamos sendo fotografados aqui, pelas câmeras de segurança. Para fazer boas imagens, não são precisos mais fotógrafos”, critica o autor de boas e inspiradas imagens surgidas num breu que não representa a exaustão das ideias, como é comum pensar, mas o esconderijo delas.