A cidade que existe e sobrevive no papel
Nos seis livros que escreveu como memorialista, Pedro Nava deixou marcado no papel um amplo painel da sociedade brasileira e também a ligação com sua terra natal, Juiz de Fora, a partir de suas experiências e das histórias que ouviu nas primeiras décadas de vida. Tantos são os relatos que é possível, através deles, traçar um panorama histórico, político, urbanístico, cultural, social, religioso e de costumes. É o que fez a escritora, professora e pesquisadora Ilma Salgado. Com outros cinco livros dedicados ao escritor morto em 1984, aos 80 anos, Ilma lança “Juiz de Fora apresentada por Pedro Nava”, em que reúne trechos de obras do próprio Nava, além de citações a outros autores locais, para recriar uma cidade que não existe mais, mas que foi tão próxima do escritor, que completaria 114 anos do seu nascimento nesta segunda-feira (5).
De acordo com Ilma, o livro pode ser considerado “uma edição ampliada e melhorada” do trabalho que lançou de forma independente em 2003, por ocasião do centenário de nascimento de Pedro Nava. Na ocasião, foram apenas cem exemplares impressos. “Fui amadurecendo durante os anos a ideia de fazer uma edição maior, incluindo alguns aspectos e tirando outros. Retomei o projeto em 2012 e modifiquei o que era preciso até conseguir a aprovação pela Lei Murilo Mendes no ano passado”, explica Ilma, destacando que isso facilitou para que a publicação saísse de forma tão rápida. “É também um presente que quis dar para Juiz de Fora em seu aniversário.”
Ilma pinçou histórias e memórias de três livros de Nava: “Baú de Ossos” (1972), “Balão Cativo” (1973) e “Galo-das-Trevas” (1981), entremeadas por textos da própria escritora, ajudando a reforçar o contexto histórico-político-social-econômico da prosa de Pedro Nava, além de citações aos trabalhos de pesquisadores como Riolando Azzi, Vanda Arantes do Vale (que também escreve a orelha do livro), Luiz Antonio Valle Arantes, entre outros.
“O próprio Nava dizia que o memorialista é o híbrido anfíbio de historiador e ficcionista. A partir dessa afirmação, adicionei aos textos dele informações da historiografia tradicional de notórios historiadores da cidade. O Pedro atuava como espectador e ator dessa história, muito do que ele apresenta são histórias de varanda que ouvia da família”, diz Ilma Salgado, que adiciona ao trabalho fotos antigas da cidade, em especial de lugares onde Pedro Nava morou e frequentou ou que cita em suas memórias.
Pelas curvas do tempo
Ao misturar a memória histórica, afetiva e os registros oficiais, Ilma preferiu não seguir uma linha cronológica rígida, ainda que os escritos de Nava consigam abranger um período que vai de 1840 a 1940. “Juiz de Fora apresentada por Pedro Nava” é dividida por tópicos, entre eles “Saúde”, “Os primórdios”, “Henrique Halfeld”, “As elites e a política”, misturando história e ficção em passagens tanto pitorescas quanto reveladoras.
Em “Os primórdios”, por exemplo, fala-se do Caminho Novo, da polêmica sobre o verdadeiro fundador da cidade e da importância de Henrique Halfeld, que ganha um capítulo só para si – afinal, ele foi casado com a avó de Pedro Nava, que após ficar viúva casou-se com aquele que se tornou o avô do escritor. “O Pedro, inclusive, foi quem salvou os documentos do Henrique Halfeld, que seriam jogados no lixo. Ele dizia que sem essa papelada não haveria o ‘Baú de Ossos'”, destaca.
Outro tópico, “As etnias”, ajuda a explicar as diferenças socioeconômicas que temos até hoje e mostra o quanto o racismo e o ranço escravocrata continuam entranhados em nossa cultura. Além de falar da imigração alemã e italiana, Pedro Nava selecionou trechos de suas memórias em que retrata o tratamento cruel que sua avó, Inhá Luísa, dispensava às empregadas negras, semelhante ao do período da escravidão. Quanto às religiões, ele cita a forte influência que Dom Antônio Ferreira Viçoso, bispo de Mariana, tinha sobre Juiz de Fora quando a cidade pertencia à sua diocese.
A mágoa que ficou e a cidade ‘barulhenta’
Nem todas as lembranças, porém, são positivas. Em seu livro, Ilma resgata a mágoa velada que Pedro Nava – já utilizando em seus livros o heterônimo Egon Barros da Cunha – nutria por não ter conseguido emprego como médico na Santa Casa. “Nessa época, a cidade já tinha sua diocese, e ele descobriu que precisaria ter as graças da Igreja para ser contratado. Mesmo sendo integrante da Sociedade de Medicina e Cirurgia e filho de médico (José Pedro da Silva Nava, que teve atuação destacada na cidade), ele voltou para Belo Horizonte.”
Também merecem destaque no livro os logradouros, talvez a parte física-visual que mais se modificou com o passar dos anos. Ilma reúne histórias e observações feitas por Pedro Nava a respeito de diversas vias, entre as quais a Rua Direita (atual Avenida Barão do Rio Branco), local em que nasceu e que antigamente tinha início no Largo do Riachuelo. Um exemplo das observações feitas por ele é em relação à Rua Halfeld (antiga Rua Califórnia, projetada em 1856). “Para ele, a Halfeld era a linha divisória da cidade. Do lado esquerdo ficava a população mais liberal, enquanto o outro lado era marcado pelos conservadores.” História pitoresca, se pensarmos nas diferenças entre a agitação do Centro nos dias atuais e a JF pacata do século XIX, é a que Pedro Nava relata a respeito da decisão de sua avó de deixar a Rua Direita devido à instalação de duas linhas de bondes puxadas por tração animal, que a incomodavam devido à “barulhada”. A solução? Mudar-se para a esquina da Rua Imperatriz (atual Marechal Deodoro) com a Santo Antônio.
Para Ilma Salgado, o livro consegue mostrar a admiração que Pedro Nava tinha por sua terra natal, apesar da mágoa aparentemente jamais curada por não ter conseguido o emprego na Santa Casa. “Há no final do livro uma entrevista concedida por ele em 1980 que é possível ver o amor que tinha por Juiz de Fora, mas nada meloso, romântico. Falava das qualidades, mas reconhecia seus defeitos”, aponta. “Acredito que ele sempre teve essa capacidade de mostrar a trajetória de sua terra com uma visão histórico-literária, e é preciso que as pessoas saibam que havia uma pessoa preocupada com nossa história”, acrescenta Ilma, que já doou o livro para mais de cem escolas da cidade.
Memorabilia
A famosa “cadeira fantasma” e a máquina de escrever que pertenceram a Pedro Nava aguardam o final das reformas da Biblioteca Comunitária Pedro Nava, no Monte Castelo, para voltarem à visitação pública. Segundo o presidente da Associação de Moradores do Monte Castelo, Marcelo Oliveira Palomino, isso deve acontecer em agosto. “Vamos realizar alguns eventos para arrecadar fundos para terminas as obras, e aí todos poderão visitar o memorial que construímos para o Pedro Nava”, diz Marcelo.