Retrato do juiz-forano Arlindo Daibert 25 anos depois do adeus
Obras inéditas e publicação de diários prevista para o próximo mês ampliam a dimensão de Daibert, um dos principais expoentes da arte contemporânea brasileira, cuja morte completa 25 anos
O desejo de visitar a capital belga passou. Paris ganhava ares de trivialidade e exigia outra contemplação. “Parece muito mais agradável ficar por aqui, sem pressa, andando pelas ruas, vendo as livrarias. É como se, de certa maneira, retornasse meu antigo passado. Talvez hoje esteja um pouco mais maduro ou independente, mas, na verdade, mudei muito pouco”, escreve Arlindo Daibert em seu diário. O trecho no qual o juiz-forano narra sua última ida a Paris, um ano, cinco meses e 15 dias antes de realizar sua viagem final, integra o livro “Diário: excertos”, organizado por Júlio Castañon Guimarães e Ronald Polito para o Selo Mamm. A obra, prevista para chegar às prateleiras na segunda quinzena do próximo mês, ajuda a compreender o intelectual que sobrevive vigoroso na memória dos irmãos.
“A gente aqui não tem o contato de todo dia, cada um mora na sua casa. Não que não sintamos falta, mas deixa mais fácil a ausência”, pontua Eveline Daibert, quatro anos mais nova do que os 66 que Arlindo completaria no último dia 12. “Ele sempre foi muito mais artista que irmão, num bom sentido, porque morou muito tempo fora, sempre muito distante”, acrescenta Anderson Daibert, de 59 anos. “Ele gostava muito de mim, e eu, muito dele. E foi como se ele desaparecesse. Ele passou mal e morreu”, recorda-se a irmã. “Ele dizia que seria lembrado mais por sua obra. Se antes ele estava ausente por conta da arte, hoje ele está presente por conta dessa mesma arte”, conclui o irmão, sobre o artista que morreu aos 41 anos, vítima de um aneurisma, há exatos 25 anos.
Homenageado e ainda lembrado
Arlindo está na sala da irmã. Numa agigantada tela em que reproduz os personagens do famoso quadro “O casal Arnolfini”, do belga Jan van Eyck, e também nas centenas de slides com registros de telas e desenhos. Também está na cadeira, cujo assento pintou, e no banco, onde fez o mesmo. Está em duas gravuras, nas quais representa homens carregando um outro desfalecido ser verde ou um casal vermelho numa cena de igual cor. Ainda, está no pequeno quadro do anjo da guarda que fez para a sobrinha Ana Luiza, nascida seis meses antes de sua morte e no desenho em grafite feito aos 11 anos. “Tenho para mim que ele não ficaria feliz se mostrássemos isso”, ri Eveline, explicando o perfeccionismo que o artista perseguia, gesto oposto ao que o Poder Público tem com sua memória.
Tal como foi criada, permanece a Praça Arlindo Daibert, no Salvaterra, próximo à BR-040, sem qualquer referência ao artista que a nomeia, mas com um dos onipresentes marcos do Rotary Club. A galeria que leva seu nome também, no segundo andar do Centro Cultural Bernardo Mascarenhas, segue fechada, por indicação do Corpo de Bombeiros por conta da ausência de AVCB do local, há cerca de três anos, sem previsão de reabertura. Dono de uma produção robusta e respeitado pela crítica, presente nas mais importantes coleções de arte do país, como a de Gilberto Chateaubriand, que detém suas três famosas séries baseadas na literatura universal — “Macunaíma”, “Grande Sertão: Veredas” e “Alice no País das Maravilhas” —, Arlindo carece, ainda da catalogação de sua obra.
“O volume maior e melhor é o que está no Museu de Arte Moderna do Rio (que possui o comodato da coleção de Chateaubriand). Eles têm os esboços de ‘Grande Sertão: Veredas’. O resto, desenhos antigos, uma porção de amigos tem”, aponta Eveline, mostrando a listagem recebida recentemente do Museu de Arte Moderna de São Paulo com os cinco trabalhos de Arlindo que integram sua coleção. “Fora os que estão em museus da América e da Europa”, completa Anderson, um dos quatro irmãos que atualmente respondem pelos direitos autorais de Arlindo. “A preocupação nossa era perpetuar o trabalho, e não deixamos nada escondido. Ensaiamos ter algo que dê visibilidade, como um site, por exemplo, reunindo trabalhos e mostrando releituras, mas não conseguimos”, acrescenta o irmão.
Circulação como dita o contemporâneo
Considerar possível, numa grande exposição, mostrar o que é mais significativo de um artista, segundo o diretor do Museu de Arte Murilo Mendes, Ricardo Cristofaro, é uma perspectiva utópica para qualquer um, principalmente para aqueles com grande produção. “Os livros, nesse sentido, cumprem melhor o papel da indexação da obra. É possível ter uma boa publicação que dê conta de um acesso de obras nas mãos de colecionadores. Para uma grande retrospectiva, não há a certeza de conseguir expor todos os trabalhos, mas registrá-los é possível. Uma mostra pode ficar muito cara, por conta de seguro e transporte. Isso inviabiliza exposições no Brasil todo. E uma publicação tem um aspecto de propagação da obra mais abrangente. Hoje, o que é mais premente é um registro de alto nível e amplo. É disso que sentimos falta”, pontua.
“Porque a universidade não faz um projeto de pesquisa sobre isso? Juntando as faculdades de artes e de jornalismo? Nós (a família) não sabemos fazer, não somos profissionais da área”, sugere Eveline Daibert, irmã do artista que, de 1983 a 1993, foi professor da UFJF. Para Cristofaro, professor do Instituto de Artes e Design de UFJF e ex-aluno de Arlindo, esse é o ideal. “O que falta hoje para a obra do Arlindo é uma indexação da obra. Ele mereceria. Seria um trabalho de pesquisa longo, mas várias pessoas pensam nisso, externam essa vontade. Temos que aproveitar esse grupo que ainda conviveu muito com o Arlindo e responsabilizá-los para levar adiante esse projeto. Tenho como desejo, como diretor do Mamm, apoiar isso. Certamente tem que haver o registro disso como pesquisa, juntando alunos, pesquisadores, aliando, talvez, ao programa de pós-graduação do IAD. É um trabalho muito rico, que merece ser feito em Juiz de Fora e não fora daqui”, comenta.
De acordo com Cristofaro, Arlindo Daibert “é um artista de muita importância, no panorama da arte contemporânea brasileira, no panorama de uma renovação das artes plásticas em Juiz de Fora, como pesquisador e na singularidade que a obra dele tem”, o que justifica sua perenidade, expressa em uma circulação coerente com a contemporaneidade. “Ele circula gradativamente e bem. Poucos artistas têm tanta produção literária sobre sua própria obra como o Arlindo. Isso é um fato raro. Não há esquecimento, e essa percepção é falsa. Eu que trabalho com meus alunos, sempre que tenho a oportunidade, falo dele. É um artista muito conhecido e bem referenciado.
Dizer que ele está sendo esquecido me parece uma fala fácil. O meio de circulação da informação das artes visuais era, durante muitos anos, a exposição, que era uma atividade-fim da arte. A arte contemporânea tem demonstrado que novos circuitos de informação e contato começaram a surgir e foram ancoradas no território da arte. Quem tem uma perspectiva contemporânea sobre como a arte circula percebe e sabe que o Arlindo não está esquecido”, analisa Cristofaro, citando a presença do artista em pesquisas acadêmicas e livros.
Basta uma rápida busca de seu nome e do título de seus trabalhos para perceber que, ao menos na internet, Arlindo Daibert mantém-se presente. Considerada uma das mais relevantes obras da literatura brasileira, “Grande sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, quando pesquisada nas principais ferramentas de busca da internet, também levam ao trabalho de Arlindo. “A circulação da informação sobre arte, de pesquisas hoje tornam muito fecundas ações que há 20 anos não existiam no mundo da arte. Acho extremamente singular que o Arlindo, que nem teve um tempo de carreira tão longo como artista — ele praticamente produziu por 20 anos, o que numa alça de artistas podemos considerar como período muito curto —, tenha material para alimentar tantas pesquisas que continuem a acontecer. Temos estudantes, escritores, artistas e pesquisadores interessados em lidar com a obra dele, citá-lo”, discute o diretor do Mamm.
Para compreender o criador
As centenas de cromos com reproduções das obras de Arlindo Daibert, feitas ao longo de sua carreira por fotógrafos que convidava de tempos em tempos para incursões em seu ateliê denunciam-lhe um senso de organização. Ou seria preocupação com a posteridade? Para o poeta e pesquisador Júlio Castañon Guimarães, trata-se, sobretudo, de uma preocupação com o trabalho. “É comum, sobretudo entre artistas plásticos. É quase um controle, um registro dos trabalhos, que são expostos e, eventualmente, vendidos. Há artistas que guardam rascunhos, projetos. Como os aristas fazem e vendem seus trabalhos, na grande maioria dos casos, isso se dispersa, vai para coleções particulares, para museus. Isso cria uma dificuldade, mas se impõe para todos os artistas”, comenta ele, apontando para Leonilson, contemporâneo de Arlindo e também morto em 1993, que, mesmo tendo um projeto com seu nome, que trabalha com a divulgação de sua obra e em defesa de sua memória, só ganhou no ano passado um catálogo raisonné (com toda a sua produção).
Nas recordações de Anderson Daibert, irmão do artista, a morte, de tão repentina, acabou por “impedir” a criação de uma proposta semelhante à da realizada pela família de Leonilson. “Quando ele morreu, tivemos que tirar rápido as coisas do ateliê, uns seis meses depois. Um irmão nosso tinha um apartamento que estava fechado, e levamos tudo para lá. Ficou anos por lá”, narra Anderson, contando que, quando o imóvel foi alugado, uma pequena parcela do material já se deteriorava, e outra parte começava a se dispersar. “Se a gente fosse guardar tudo, precisaríamos de um lugar de no mínimo 60m², como um museu. Mas não tinha jeito. Foi tudo muito veloz”, completa o irmão. Para a compreensão da produção total de Arlindo, a despedida abrupta também se conformou como uma questão. “O Arlindo parou de produzir num momento em que seu trabalho estava mudando. Era visível isso, o que cria uma dificuldade para a leitura do trabalho, já que as obras do início e do final são completamente diferentes. Isso não é negativo, nem positivo, mas um fato. Nesse momento há mudanças no próprio país”, comenta Júlio.
O internauta Arlindo
Do conteúdo do ateliê de Arlindo Daibert, seus diários foram os que mais rapidamente encontraram um destino. Foram para as mãos de Júlio Castañon Guimarães. E na casa do intelectual juiz-forano radicado no Rio de Janeiro permanecem. Ao menos até que o livro seja impresso. “Diário é uma coisa muito pessoal. Eu e Ronald Polito fizemos uma seleção de textos das anotações do Arlindo, que falam sobre o trabalho dele, viagens a museus e exposições, e, no meio dos comentários dessa natureza, tem desenhos, esboços. Transcrevemos o material, preparamos para publicação e incluímos os desenhos que fazem parte desses textos. É importante para quem se interessa pelo trabalho dele, pela época das artes plásticas, já que ele faz menções a outros artistas e mostras. Anotações em diários são materiais delicados, envolvem terceiros, o que exige lidar com vagar e cuidado”, reflete Júlio, chamando atenção para os conteúdos que enfocam ideias para desenhos e análises sobre participações em salões e exposições.
No material, não está a resposta para a dúvida que o próprio tempo escreveu: como estaria Arlindo hoje? “Não sei se ele se renderia ao computador, mas acho que sim”, diz Eveline Daibert, sua irmã. “Lembro-me dele falando que achou uma coisa muito interessante: o editor de texto. Ele estava doido para comprar aqueles computadores de tela verde, antigos. A impressão que tenho é que muita gente ia atrás dos recursos dele, e ele já pulava para outra coisa, ele era diferenciado, estava sempre à frente. Gostava de andar com a modernidade. Tinha muito conteúdo para viver esse tempo. Ele se adaptaria facilmente à atualidade”, reflete o irmão Anderson. Eveline concorda: “Ele teria, sim, um puta computador. Ele era inteligentíssimo e curiosíssimo.”
Inéditos
Fragmentos do livro “Diário: excertos”, de Arlindo Daibert. Organização e nota de apresentação de Júlio Castañon Guimarães e Ronald Polito.
21 de abril de 1979
A exposição da Projecta começa a tomar pé. Já tenho seis desenhos prontos e os resultados me satisfazem. Creio que mais algumas semanas e já terei a mostra “alinhavada”. Pretendo preparar parte da exposição e mostrar os desenhos a Antônio Bento. Gostaria muito que uma “pessoa idônea” escrevesse o texto do catálogo, alguma coisa mais cuidada que uma simples apresentação. Talvez seja pretensão querer uma análise mais profunda mas acredito que o trabalho já comporta enfoques mais profundos. Adiantei bastante a série “Retratos do artista”. De Vermeer, passarei a Courbet e pretendo pegar também as “Liaisons dangereuses”, a relação artista/modelo.
22 de maio de 1979
O “projeto Bienal” já tem 11 desenhos. Acredito que farei cerca de 30. Começo a pensar na segunda parte: as “Liaisons dangereuses”. Estabelecer paralelo entre a linha e o fio de Ariadne, as Musas e as Parcas, as “Muses maudites”, afinal as duas partilham de uma mesma essência: uma se submete, a outra atua. Sinto que algo de “afetivo-sentimental” está tentando se insinuar no “processo racional” desses desenhos, romper a rígida especulação e análise estética. No ônibus reli os “Fragments”.
13 de março de 1992
Cinco dias já em Paris. É uma viagem estranha onde não me assalta o impulso, da última viagem, de escrever e descrever minuciosamente o ocorrido e o visitado a cada dia. Permaneço em Paris como se estivesse passando férias em São Paulo ou outra cidade qualquer. Antes de embarcar, tinha planos de ir até Bruxelas, mas, chegando a Paris, me parece muito mais agradável ficar por aqui, sem pressa, andando pelas ruas, vendo as livrarias. É como se, de certa maneira, retornasse meu antigo passado. Talvez hoje esteja um pouco mais maduro ou independente, mas, na verdade, mudei muito pouco.
De maneira geral Paris continua sendo um lugar não muito bom para se avaliar a produção contemporânea. Pouca coisa de realmente interessante nas galerias. Os museus continuam com seu esquema de grandes exposições históricas. A exposição Giacometti é um ótimo exemplo. São dezenas de salas com centenas de obras. Em alguns casos, a montagem é muito sofisticada, como no caso das quatro microesculturas montadas numa enorme sala branca de quase 200 m². É um grande artista, mas, talvez o momento mais emocionante da obra seja, justamente, o segmento consagrado ao atelier do artista. Ao lado de imensas fotos do escultor com sua cara de louco divino, foram resgatados os muros do atelier com os grafites e pinturas feitas por Giacometti sobre eles. As pinturas não me atraem especialmente. Não é o caso dos desenhos, que são magníficos.
Paralelamente à mostra, os incontáveis vídeos didáticos para confirmar e consumar a lição dentro do melhor espírito francês. Entretanto, um deles é excelente. Trata-se de um documentário feito nos últimos anos de vida do artista com tomadas maravilhosas de seu processo de trabalho e da documentação completa da feitura de um retrato. O documentário acompanha o pintor até seu enterro no vilarejo dos Alpes debaixo de uma neve pesada. Cumprindo meus roteiros, visitei novamente (desta vez com calma) o Museu d’Orsay e pude confirmar que não é dos meus favoritos. Continuo ainda gostando do mobiliário e dos pastéis de Redon e Degas, mas, como um todo, o museu não me agrada. Acho que o século XIX não me atrai muito e as toneladas de impressionistas só servem para confirmar minhas preferências e afinidades com Monet, Cézanne e Bonnard.
Se não tenho conseguido ver muita coisa interessante de artes plásticas, tenho visto belos filmes. Meus critérios são muito abrangentes e não tenho o menor preconceito em acompanhar as produções de países pouco identificados com a “indústria cinematográfica”. É o caso da China que me tem reservado algumas boas e belíssimas surpresas.