Produções da Disney estarão disponíveis apenas no streaming no Brasil

Colecionadores e especialistas em cultura comentam a decisão da empresa de encerrar a venda de DVDs e Blu-rays no país para impulsionar o serviço de streaming Disney+


Por Júlio Black

01/11/2020 às 07h00

Disney+, serviço de streaming que chega ao Brasil dia 17, terá exclusividade em produções do Marvel Studios e “Star Wars”, entre outros (Foto: Divulgação)

A Walt Disney Company é conhecida por levar mundos de fantasia para gerações há décadas, graças a seus filmes e animações, mas também é um dos símbolos do sistema capitalista que joga não apenas para vencer a todo custo, mas vencer a todo custo e de goleada, no estilo varrer a concorrência e ser a dona do pedaço. Por isso, não foi surpresa quando a empresa tirou as produções do estúdio, mais os filmes da Marvel, Pixar e franquia “Star Wars”, entre outros, das plataformas de streaming (Netflix, Prime Video) e TV por assinatura (canais Telecine, Warner, Sony, TNT, Megapix), uma vez que a gigante do entretenimento vai lançar seu próprio serviço de streaming, o Disney+, no próximo dia 17 na América Latina.

Porém, o que pegou muita gente no contrapé foi o anúncio do fim do contrato com a Cinecolor, empresa que era responsável pelo marketing e distribuição de mídia física na América Latina até o final de outubro. Ou seja: ontem, sábado, dia 31 do décimo mês de 2020. E o que isso quer dizer? Que a partir deste domingo, 1º de novembro, não haverá mais produção de DVDs e Blu-rays da Disney, Pixar, Marvel, “Star Wars” (e Fox também) para venda no Brasil. Quando acabarem os estoques das lojas físicas e virtuais, acabou mesmo, boa sorte.

PUBLICIDADE

Quem aproveitar a raspa do tacho ainda pode garantir suas cópias de “O Rei Leão”, “Vingadores: Ultimato”, e quem já possui sua caixa com as trilogias de “Star Wars” não precisa se preocupar, pelo menos por enquanto. Agora, se a sua coleção da Pixar estiver desfalcada e não correr atrás, a solução no futuro próximo será assinar o Disney+ para assistir a “Divertidamente”, ou aceitar pagar os preços inflacionados que estão rolando em vários sites ou recorrer a sites e vendedores corsários (a chamada pirataria).

Estratégia agressiva

A Disney, definitivamente, entrou na guerra do streaming a fim de mandar o 7 a 1 na Netflix e Prime Video, entre outras, e por isso adotou uma estratégia ousada e agressiva, principalmente no que diz respeito à mídia física. É uma decisão que afeta, por exemplo, os fãs de uma franquia como “Aliens”, que gostam de ter os filmes para assistir quando quiser; a pessoa que foi ao cinema, gostou de “Viva _ A vida é uma festa” e quis comprar o DVD ou Blu-ray; os pais que precisam levar para todo canto uma cópia de “Toy Story”; e, principalmente, os colecionadores, aquela turma que tem milhares de filmes e séries em casa, que a partir de agora terão de apelar para a importação quando sair o terceiro filme de “Guardiões da Galáxia” e assim completar sua trilogia.

O professor de arquitetura e urbanismo da UFRGS Juliano Caldas de Vasconcellos, mais conhecido como Jotacê, tem em seu acervo mais de três mil itens, entre DVDs e Blu-rays de filmes e séries, e criou em 2008 o Blog do Jotacê, dedicado ao colecionismo de mídias audiovisuais. O site, inclusive, foi um dos primeiros a noticiar, ainda em agosto, o fim da produção de mídia física da Disney para o Brasil.

“The Mandalorian” chega ao Brasil com mais de um ano de atraso em relação aos Estados Unidos (Foto: Divulgação)

Ele conta que, no início, houve surpresa e descrença em relação à notícia, principalmente por ter vindo de uma fonte sigilosa _ o que ele define como “fase de negação” por parte da turma. Entretanto, quando os lojistas informaram que a Cinecolor estipulou um prazo para os últimos pedidos, os colecionadores não só se deram conta da realidade como houve uma reação forte (e negativa) em relação à Disney.

“Foi uma sensação de revolta e indignação, e que dura até hoje. E automaticamente veio a tristeza, pois não há perspectiva de que as produções da Fox entrem no streaming. Quem tem a mídia física ainda poderá assistir, mas quem não comprou será jogado na pirataria”, prevê. “O que temos é o estoque nas lojas, pois não há previsão de voltar a produzir. Teremos que correr atrás dos títulos disponíveis para completar a coleção. A maioria ainda está disponível, porém coisas raras não se encontram mais. No mercado paralelo o preço está altíssimo, no dia seguinte ao anúncio já começou a especulação.”

‘Morte’ da mídia física?

O fim da mídia física de produtos sob propriedade da Disney tem sido usado para reforçar o argumento da “morte” do DVD e do Blu-ray, seguindo a velha lógica imediatista de que uma nova tecnologia sepulta automaticamente a outra _ caso do vinil, cassete, CD, VHS. “Essa estratégia não tem a ver com a ‘morte’ da mídia física, que é senso comum, mas quem está no mercado tem uma visão mais complexa. Outros estúdios continuam investindo, a Warner já anunciou para 2021 a versão em 4k de ‘O Senhor dos Anéis’. Não acredito no lançamento de um próximo ‘Star Wars’ sem mídia física, o (diretor) James Cameron já anunciou que o próximo ‘Avatar’ (da Fox, comprada pela Disney) terá versão em mídia física.”

Para Jotacê, a estratégia da Disney não tem como dar certo, pois não leva em conta características culturais. “Ela fez seu julgamento a partir do mercado norte-americano, onde a fiscalização é bem diferente; quem usa torrent recebe uma carta falando sobre download ilegal. A Disney radicalizou para forçar a assinatura. A maioria dos estúdios fez um acordo para comercialização por pelo menos dez anos de DVDs e Blu-rays na Europa.

Boxes especiais da Disney, como o que reúne os quatro filmes dos Vingadores, estarão disponíveis apenas por importação (Foto: Divulgação)

Aposta na força da marca

Outro colecionador afetado pelo fim/hiato da mídia física das produções da Disney é o jornalista Rodrigo de Oliveira, editor-chefe da revista “Almanaque 21” e apresentador do podcast Almanacast, que viu filmes e séries da gigante de mídia saírem de plataformas de streaming que assina, como Netflix e Prime Video. Para ele, é tudo parte da estratégia para forçar o público a também assinar o novo serviço de streaming, mesmo que seja pela troca de uma plataforma por outra _ muito por conta da força que a marca tem em nossas memórias afetivas.

“A Disney nos acompanha desde a infância, pois íamos às locadoras alugar filmes quando eles eram muito caros para comprar. E pudemos comprar ‘Alladin’, ‘O Rei Leão’. A Disney não dá ponto sem nó, ela quer que o Disney+ chegue aqui ‘chegando’. A empresa sabe que a Netflix é muito forte, é como se fosse a Globo na TV aberta. Uma forma de chegar com força é cercear a possibilidade de escolha do público, querem te cercar de todas as formas para assinar”, diz.

A chegada do Disney+ é também mais um gasto na conta de quem já paga TV fechada e outros streamings. “Se for botar na ponta do lápis, quanto gasto com streaming? A Disney será mais um serviço, já pago R$ 44 na Netflix, e eles querem que tu assine mesmo sabendo que o brasileiro não tem dinheiro pra assinar tudo. Por isso, já tiraram suas produções de outras plataformas (para forçar). Se o seu filho quiser assistir ‘Frozen’, vai ter que assinar o Disney+. Como vai falar para seu filho que ele não pode assistir, que não está na TV por assinatura, que não tem pra vender na loja?”, questiona Rodrigo, que pretende assinar o Disney+ e manter os demais serviços por considerá-los complementares.

Decisão estratégica esperada

Leonardo De Marchi é professor de comunicação da UFRJ e professor de pós-graduação da Uerj. Atualmente, seu projeto de pesquisa está voltado para as plataformas de conteúdos digitais e suas consequências para a diversidade cultural nos mercados de cultura no Brasil. Para ele, a decisão da Disney de encerrar a comercialização de mídia física no país é não apenas estratégica, como também esperada.

O conteúdo continua após o anúncio

“Todo mundo sabia que ela entraria no mercado, tendo em vista a expansão da Netflix. A Disney faz o que cabe a ela, pois lançar uma plataforma de streaming exige que se tenha muita gente utilizando-a, e ela tem um catálogo valioso do qual vai se valer, vai forçar o mercado a assinar o negócio dela. A empresa está exercendo o poder de controle que tem sobre a mídia física e direito autoral, tirando dos concorrentes o material que disponibilizava”, observa. “É uma tentativa agressiva de conseguir muitas assinaturas rapidamente, ao invés de conquistar gradualmente assinantes na América Latina, o que demonstra o investimento da empresa na região.”

Longa inicialmente previsto para o cinema, “Mulan” não terá DVD e Blu-Ray no Brasil e poderá ser assistido apenas no streaming (Foto: Divulgação)

A América Latina, entretanto, tem uma população sem o poder aquisitivo dos países do Norte do continente (Estados Unidos e Canadá). Leonardo acredita que a estratégia da Disney não seja levar todos a assinarem o serviço, mas garantir que a população de maior poder aquisitivo embarque no Disney+ por pura falta de opções. “Eles tiram todas as opções para o público mais rico e deixam o Disney+ como única alternativa, e por isso devem entrar em todos esses mercados como um dos principais líderes do audiovisual digital. Aliás, é a mesma estratégia utilizada pela indústria fonográfica quando houve o lançamento do CD. Enquanto no norte global o CD ficou junto com o LP, por aqui cortaram todos os outros formatos e foram direto para o compact disc, o que obrigou o público a comprar CDs. Isso teve impacto positivo imediato para as gravadoras nos primeiros anos, mas depois resultou na pirataria física e digital”, alerta.

Para Leonardo, a Disney fez uma aposta muito alta com a decisão de cancelar a mídia física. “O nível de pirataria de seus produtos deve aumentar muito. Foi o que aconteceu com a indústria fonográfica (CDs piratas e download ilegal) e a TV por assinatura, com decodificadores e aplicativos para assistir ao futebol. Eles estão apostando que vão chegar no mercado, roubar os assinantes de outras empresas – o resto entrega para a pirataria, e seja o que o deus do mercado quiser. A empresa tem isso como cálculo, e depois devem discutir com cada pais sobre a repressão à pirataria.”

Streaming é o (único) caminho?

Estratégias agressivas à parte, Leonardo De Marchi diz que a decisão da Disney confirma uma tendência que tem sido consolidada na indústria da música, que é a utilização da tecnologia do streaming como o caminho a ser seguido pela indústria de entretenimento como um todo. De acordo com ele, a plataforma se provou o caminho “menos pior” para quem detém o direito autoral das obras em um cenário ainda complicado.

“O ‘não fracasso’ da Netflix, conseguindo um bom número de assinantes, faz com que a Disney chegue num momento em que está mais ou menos tudo consolidado. Ela chega como um grande ator no mercado, e querendo tomar a maior parte”, analisa.

“A entrada da Disney aponta e consagra o streaming como o modelo tecnológico de negócios a ser seguido no século XXI, seja na literatura, música, audiovisual, e a empresa pode apresentar uma evolução dentro desse modelo, seja de negócios ou tecnologia. Acho difícil ela voltar a produzir mídia física para a América Latina. Pode ser que venha a importar para a região como produto premium, mas a princípio ela quer é forçar todo mundo a partir para o streaming.”

Os comentários nas postagens e os conteúdos dos colunistas não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir comentários que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.