‘A lógica da uberização é aplicável a quase todo serviço’, diz documentarista
No Dia do Trabalho, o jornalista Carlos Juliano Barros fala sobre seu documentário “GIG – A uberização do trabalho”, exibido nesta sexta e domingo no Canal Brasil
Em São Paulo, metrópole com área de mais de 1,5 mil km², jovens moradores da periferia não costumam voltar para a casa durante a semana. Eles pedalam cerca de 100km por dia e dormem nas ruas para economizar o que ganham nas baratas entregas que se concentram no centro expandido da cidade mais populosa do país. Isso é normal? Pode ser normal?, questiona o jornalista e documentarista Carlos Juliano Barros, um dos diretores de “GIG – A uberização do trabalho”, realizado em parceria com Caue Angeli e Maurício Monteiro Filho. O média-metragem, inédito na TV, chega ao Canal Brasil nesta semana, com exibições nesta sexta, 1º, Dia do Trabalho, às 16h, e neste domingo, 3, às 10h10, retratando uma das faces mais cruéis da contemporaneidade, a dos trabalhadores acionados via aplicativos de celular.
Produzido pela organização Repórter Brasil, o filme retrata a rotina de entregadores de comida, motoristas, professores particulares e faxineiras, debatendo a falta de proteção desses profissionais. Para as plataformas, que se proliferam pelas redes, o que existe é apenas uma mediação. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizada no último ano, aplicativos de serviços tornaram-se os maiores “empregadores” do país, servindo como fonte de renda para cerca de 4 milhões de brasileiros.
A questão, que interessa distintas áreas, da economia ao direito, passando pela saúde e pela tecnologia, ganha contornos sensíveis com os rostos apresentados no documentário de Barros, mestre em Geografia Humana e um dos fundadores da Repórter Brasil, coautor, também, de “Carne, osso”, “Entre os homens de bem”, “Cartas para um ladrão de livros” e “Jaci – Sete pecados de uma obra amazônica”, esse último vencedor do Prêmio Gabriel García Márquez de Jornalismo. Em entrevista por telefone, Barros avalia a potência da discussão sobre a uberização em tempos de pandemia, quando os celulares tornaram-se a principal ponte com o mundo, e os trabalhadores que cortam as cidades fizeram-se essenciais.
Tribuna – O conceito de uberização ganha novos contornos neste momento de pandemia, já que se torna, em muitos casos, alternativa única. Muito mudou desde que iniciaram a produção do filme?
Carlos Juliano Barros – Quando começamos a fazer o filme essa realidade ainda era muito pouco debatida. As pessoas, em geral, tinham certo deslumbre com esse novo tipo de tecnologia. É inegável que essas plataformas democratizam o acesso, prestam serviços rápidos, eficientes e baratos, mas havia uma série de questões que estavam debaixo do tapete e, agora, com a pandemia, afloraram de vez. Essas questões têm a ver com certificação do trabalho, precarização e transferência total de risco. São questões que essa nova economia digital propõe. Esse sistema de uberização enseja uma série de mudanças que nem são tão novas assim: o trabalhador precarizado, informal, que vive de bicos sempre existiu no Brasil e é uma característica do mercado de trabalho brasileiro. A diferença é que essas novas plataformas dão até certa organizada nessa multidão de trabalhadores precarizados, mas também trazem uma série de mecanismos que geram intensificação do trabalho. Boa parte dessas empresas tem investimentos graúdos de fundos internacionais, de risco, e torram uma grana violenta por mês para dar subsídios não só para seus consumidores como para seus entregadores. É por isso que essas plataformas arrebanharam tanta gente. No começo, era o melhor dos mundos: muito barato para o consumidor final e atraente para o trabalhador. Chega a um ponto que essa conta não fecha mais, e os trabalhadores sentem um decréscimo na remuneração e intensificam o número de entregas para fazer o mesmo valor que faziam antes. Neste momento em que vivemos, com uma queda brutal da economia, vemos um monte de gente se digladiando para conseguir qualquer tipo de corrida. É uma situação muito precária, de corrida para o fundo do poço. É uma competição que não tem limites.
Acredita que neste momento esse fenômeno encontra terreno para se expandir?
Tendo a achar que sim. Não é possível apontar o dedo para as pessoas que precisam desse trabalho. É evidente que quem precisa pagar contas e comprar comida para os filhos vai se submeter a qualquer tipo de trabalho. Lidamos com necessidades básicas do ser humano. E esse é um trabalho que existe. O problema são as consequências que a estrutura de organização do trabalho que essas plataformas defendem, geram. Estamos falando de plataformas que abertamente defendem a erosão da legislação trabalhista e de toda a proteção social, sob um argumento muito questionável de que são meras intermediadoras entre clientes finais e prestadores de serviço, como se não houvesse nenhum tipo de subordinação ou controle sob o trabalho. Assistimos a erosão de uma série de garantias conquistadas ao longo de décadas e décadas, sob o pretexto de que é melhor qualquer trabalho do que nenhum trabalho. Isso tem uma série de consequências, como a questão previdenciária. Algumas plataformas, por exemplo, exigem que os trabalhadores sejam microempreendedores individuais (MEIs). O governo até lançou um decreto recentemente colocando motoristas como passíveis de MEI. Alguns motoboys já se cadastravam como MEIs em algumas plataformas, principalmente as mais organizadas. E o MEI, do ponto de vista previdenciário, é um regime altamente deficitário, porque basicamente é uma contribuição simbólica. Se o trabalhador se acidenta, portanto, está coberto pelo INSS e recebe o mínimo que o instituto provê. As empresas não contribuem com absolutamente nada. Um estudo do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) estima que o rombo previdenciário do regime de MEI é de R$ 400 bilhões em 40 anos (R$ 464,7 bilhões entre 2015 e 2060). É uma contradição total se de um lado fazemos uma reforma da previdência em nome do saneamento das contas públicas e de outro estimulamos novos postos de trabalho via MEI, que trará uma série de problemas no futuro. É uma posição esquizofrênica. É um argumento quase cínico de que essas empresas não tem responsabilidade sobre nada. Está no DNA dessas empresas certa alergia a qualquer tipo de regulação, nem trabalhista, nem de uso de dados, nem tributária, nem ambiental. A quantidade de lixo que elas geram é muito grande.
“É uma contradição total se de um lado fazemos uma reforma da previdência em nome do saneamento das contas públicas e de outro estimulamos novos postos de trabalho via MEI, que trará uma série de problemas no futuro. É uma posição esquizofrênica. É um argumento quase cínico de que essas empresas não tem responsabilidade sobre nada. Está no DNA dessas empresas certa alergia a qualquer tipo de regulação, nem trabalhista, nem de uso de dados, nem tributária, nem ambiental. A quantidade de lixo que elas geram é muito grande”
É comum ouvirmos de um trabalhador inscrito nesses aplicativos que está ali por um instante. Esses trabalhadores, de fato, encaram a experiência com a plataforma como momentânea?
No Brasil, o trabalho de carteira assinada não é sinônimo de bom trabalho. Se pegarmos alguns dados, a esmagadora maioria dos empregos que foi perdida recentemente era da faixa de um a dois salários mínimos. Não eram empregos altamente qualificados, com benefícios. Em alguns casos, para quem já tinha trabalho com carteira assinada, mas era ruim, trabalhar dez, 12 ou 14 horas por dia para ganhar um pouco mais nessas plataformas talvez valesse até mais a pena. Essa discussão é muito complexa por causa disso. Vivemos num mercado de trabalho desestruturado há bastante tempo. Fora isso, vivemos uma crise econômica que parece não ir embora tão cedo, por ser influenciada por outras questões, políticas e institucionais. Temos uma massa de pessoas com outras profissões, até mais qualificadas, e foram obrigadas a se submeter a esse tipo de trabalho. Alguns têm isso como uma questão temporária. Mas é um temporário que vai persistindo. O engenheiro que virou Uber é um filme do nosso cotidiano. Tudo isso aponta para uma tendência que acontece no mundo inteiro, da dualização do mercado de trabalho. Existem economistas muito famosos, como o David Autor, do MIT (Massachusetts Institute of Technology), e o Daniel Roberts, de Harvard, que batem muito nessa tecla da dualização, ou seja: temos uma pequena minoria de trabalhadores com trabalhos criativos, bem remunerados e cheios de benefícios, e uma esmagadora maioria que se vira nos 30 para bancar seus salários. Nessas plataformas temos as pessoas responsáveis pelo design, pela engenharia de dados, pela comunicação, que estão bem, e uma esmagadora maioria que a cada dia veem suas remunerações minguarem, suas janelas de trabalho se intensificarem e as condições ficarem ainda mais precárias. Eu conversava esses dias com um professor da rede pública, que me falou que aqui em São Paulo já é grande a quantidade de alunos que trabalham fazendo entregas. Eles vão para as escolas para dormir e comer. Já saem da escola e vão fazer entrega. A quantidade de adolescente fazendo entregas é incrível. Não há fiscalização e não há controle.
Já se discute, principalmente durante a pandemia, a adoção de aulas on-line para escolas, no que seria a uberização do professor. No filme você trata disso com os professores particulares inscritos nessas plataformas. Acredita nessa lógica como uma tendência atual?
Na rede pública de São Paulo, isso já aconteceu. O projeto não foi implementado, mas previa a adoção de uma plataforma para a contratação de professores volantes para fazerem substituições, já que o absenteísmo de professores era muito grande, como uma forma de garantir a substituição mais rápida. Essa lógica da uberização, em última instância, é aplicável a quase toda cadeia de serviços, até aos profissionais da saúde. Para os trabalhadores que já eram tradicionalmente precarizados e atuavam com bicos, isso, de alguma forma, deu uma organizada. O caso dos entregadores é o mais exemplar de todos. Tínhamos uma categoria de motoboys muito unida, que conquistou legislações protetivas, não tinha um salário exuberante mas tinha condições mínimas de trabalho. Vieram os aplicativos, e as principais plataformas pagavam bem. Isso arrebanhou os motoboys mais antigos, que eram profissionais, tinham moto, cursos na prefeitura e trabalhavam no ramo há décadas e décadas. Esses caras, no começo, ganharam bem mesmo. Tinha motoboy ganhando R$ 6 mil, R$ 7 mil, o que é um salário muito alto para a realidade brasileira. Com o passar do tempo, essa estratégia foi mudando. A base de trabalhadores foi se alargando, e a remuneração foi caindo muito. É claro que em todo aplicativo vai ter uma meia dúzia que ainda consegue manter um padrão interessante e maior do que a esmagadora maioria, que está na correria de forma totalmente desamparada.
Você acompanhou seus entrevistados após as filmagens, nos últimos anos?
Converso com eles direto. Estou nos grupos de WhatsApp, então, consigo acompanhar bastante os assuntos. O filme rodou bem, aqui em São Paulo passou em vários lugares, foi debatido na Câmara dos Vereadores, em festivais de cinemas, sindicatos, cineclubes e sempre que havia debates eles apareciam. A Josefa, a diarista que aparece no filme, sempre ia aos debates. O caminho deles é quase sempre o mesmo: começa bem e vai decaindo. O motoboy foi desligado de uma das empresas, a que é a mais admirada pelos motoboys, e ele teve um problema grave de renda. As empresas tradicionais, as express, faliram por não conseguirem competir. Falamos muito dos trabalhadores, mas como fica a situação das empresas que contratavam e registravam seus trabalhadores e, agora, precisam competir em pé de igualdade com empresas que captam centenas de milhões de reais para investir nesse processo produtivo. Isso é uma concorrência leal do ponto de vista do mercado? É justo que uma empresa subsidie um serviço barato para quebrar as concorrentes? Tinha uma empresa de faxina aqui em São Paulo com faxinas por R$ 19,90. O trabalhador não recebia só isso, mas R$ 39,00. Era uma faxina express, simples, de lavar a louça, passar um pano e recolher o lixo. Ainda que o trabalhador recebesse R$ 39, só para ir e voltar ele gasta R$ 10 em condução, senão mais. Quem está bancando esse valor de R$ 19,90? É óbvio que isso não é sustentável.
“Falamos muito dos trabalhadores, mas como fica a situação das empresas que contratavam e registravam seus trabalhadores e, agora, precisam competir em pé de igualdade com empresas que captam centenas de milhões de reais para investir nesse processo produtivo. Isso é uma concorrência leal do ponto de vista do mercado? É justo que uma empresa subsidie um serviço barato para quebrar as concorrentes?”
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Durante as suas pesquisas, você constatou que o Brasil foi um terreno mais fértil para essa lógica do que outros países pelo mundo?
A Veena Dubal, professora de direito da Universidade da Califórnia, fala que essa é uma nova forma de imperialismo, um imperialismo revisitado no século XXI, nessa ideia de que essas plataformas em países com mercado de trabalho desestruturado como o brasileiro deitam e rolam. Tem um monte de gente precisando de dinheiro, de trabalho, se sujeitando a qualquer condição. Tanto é que nessas plataformas de entregadores nos Estados Unidos e na Europa, quem trabalha são os imigrantes, que já não têm muitas condições, que ganham a vida com esses subempregos que os cidadãos nativos não querem. Essa realidade está mudando, mas quero dizer que, em geral, essas plataformas acabam absorvendo a mão de obra mais precarizada, mais vulnerável, mais desprotegida, mais “sem qualificação”. Países como o Brasil, que tem um mercado consumidor gigantesco e uma taxa de informalidade estrutural bastante alta desde sempre, são terrenos muito férteis.
Acredita ser possível aproveitar essa lógica sob uma perspectiva melhor?
Existe uma revista norte-americana chamada “Business Insider”, cujo próprio nome demonstra que ela é totalmente insuspeita de qualquer esquerdismo, que tem um articulista que chama a economia uberizada, essa GIG economy, de “counterfeit capitalism” (capitalismo falsificado). Há uma série de pessoas do próprio mercado que questiona demais a viabilidade financeira dessas empresas. Se pegar o caso da Uber e da WeWork, de gestão de escritórios compartilhados, ambas foram subsidiadas pelo SoftBank, um fundo japonês, e sofreram mudanças drásticas em suas administrações, porque davam prejuízo atrás de prejuízo. Os investidores agora querem que isso mude. Não dá para torrar bilhões e bilhões de dólares em nome de certo domínio de mercado que até agora não aconteceu. Um exemplo de todas essas empresas talvez seja a Amazon, que durante muito tempo também deu prejuízo e chegou um momento em que ela dominou o mercado. O problema é que, com o tempo, a tecnologia também vai se modificando, vai virando uma commodity. Criar um aplicativo há cinco ou dez anos como o Uber era supercomplicado. Hoje em dia, é cada vez mais fácil, e a cada semana surge um novo aplicativo de entrega. Isso também vai estrangulando as margens e a capacidade de rentabilização dessas plataformas. Tendo a achar que é difícil acreditar que isso seja, um dia, um bom negócio. O futuro disso é ser o que é: um bico disfarçado e altamente precarizado.
“GIG – A uberização do trabalho”
Média-metragem exibido no Canal Brasil nesta sexta, 1º, às 16h, e neste domingo, 3, às 10h10