Luta por direitos básicos marca o Dia Nacional da Visibilidade Trans
Lucca Sad, Brune Coelho, MC Xuxu e Mateus Leri falam sobre suas batalhas como pessoas trans no novo episódio do podcast ‘Corpo a Corpo’
O dia 29 de janeiro marca o Dia Nacional da Visibilidade Trans. Nesta data, em 2006, parte da comunidade compareceu à campanha “Travesti e respeito” e fez algumas reivindicações a respeito dos direitos que precisavam contemplar as pessoas trans. Desde então, foi reivindicado direito à saúde, mais segurança, empregabilidade e tratamento social justo – o que, até hoje, não foi conquistado. Para refletir sobre o tema, a Tribuna convidou Lucca Sad, Brune Coelho, MC Xuxu e Mateus Leri, além da deputada federal Duda Salabert, para contarem sobre suas vivências e exporem uma realidade que demanda muita luta para ser transformada. A conversa é tema do sexto episódio do podcast da Tribuna “Corpo a Corpo”, já disponível no Spotify.
O processo de se descobrir um homem trans, para Lucca, ocorreu muito antes de conhecer essa nomenclatura. Tudo aconteceu a partir de um sonho, em que ele entendia de fato quem era. Desde então, começou um processo de aceitação e de fazer com que as pessoas ao seu redor conseguissem entendê-lo. Para isso, buscou grupos de apoio e pessoas que já tivessem passado pelo que ele estava vivendo, e foi através desse movimento que seu nome verdadeiro passou a ser respeitado pela primeira vez. “Essa experiência foi essencial. No começo é difícil se reconhecer e se aceitar. Entendi, por exemplo, que eu não precisava aparentar nada para ser chamado como eu queria, não precisava performar masculinidade para ser chamado como homem. É difícil entender isso por si só”, diz. Lucca precisou de diálogo e tempo, já que na família em que nasceu o assunto era desconhecido.
A falta de possibilidades que os órgãos públicos apresentavam para que ele se apresentasse como desejava dificultou o processo. Lucca chegou a buscar terapias hormonais clandestinas, que poderiam ter colocado sua saúde em risco. “Com pressa de começar, apliquei hormônio sozinho, sem saber a quantidade certa ou como meu organismo estava”, explica. Hoje, ele entende que esse não foi o melhor jeito e recomenda que outras pessoas tenham calma, porque “a mudança que acontece internamente e por fora é muito grande”. Até hoje, Lucca também não conseguiu registrar o nome escolhido por ele em cartório. O desconforto é claro: “Quando apresento um documento, tenho que contar minha vida inteira. Já cheguei a ser recusado de comprar coisas e proibido de entrar em lugares”, diz.
Essa dificuldade está longe de ser somente dele. Brune Coelho, primeira doutora trans formada pela Universidade Federal de Juiz de Fora, na área de psicologia, explica que, mesmo com as mudanças que ocorreram de 2018 para cá (quando o Supremo Tribunal Federal definiu que todo cidadão tem direito de escolher a forma como deseja ser chamado sem que se submeta a cirurgia de redesignação sexual) acertar essa documentação nem sempre é acessível. E alerta: “O procedimento de retificação civil, muitas vezes, é acompanhado de algumas violações”. Os cartórios, por exemplo, cobram taxas que costumam ser altas, quando é considerado que boa parte das pessoas que precisam desse tipo de retificação está no mercado informal e não tem acesso aos recursos necessários. “É um direito essencial, o direito ao nome, que deveria ser garantido com gratuidade”, reivindica.
Empregabilidade trans: desafio urgente
A empregabilidade é uma questão apresentada por todas as pessoas com quem a reportagem conversou como urgente. Hoje, no mercado, de acordo com dados da Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra), apenas 4% das pessoas trans e travestis têm empregos formais. A situação coloca esse grupo, muitas vezes, num estado de vulnerabilidade social ainda maior. Lucca, por exemplo, tem uma barbearia que busca ser inclusiva e empregar pessoas trans, mas nem sempre consegue encontrar quem possa trabalhar com ele. “É muito difícil, porque ninguém tem acesso a cursos. E eu mesmo até posso dar o curso, mas eu não consigo oferecer isso sem material nem patrocínio, sem nada”, diz.
Para a Mateus Leri, uma mulher trans que está se formando como jornalista, encontrar um espaço no mercado de trabalho também parece desafiador. Nesse processo, ela tem se prendido aos exemplos que, ainda bem, já existem – jornalistas trans que conseguem, exatamente por trazerem suas vivências para o trabalho, deixar esses espaços mais democráticos. “A rede de contatos que eu criei fez com que eu pudesse perceber que posso estar no mercado de trabalho também, furando a bolha. Me ajudou a entender que não é a minha sexualidade ou a cor da minha pele que vão me fazer melhor ou pior que ninguém. A minha identidade é muito importante, preciso ser respeitada com ela, em uma redação ou em qualquer outro espaço.”
Na vivência das pessoas trans, como explicam, essa falta de oportunidade acaba direcionando formas de sobrevivência inseguras, com baixa expectativa de vida e que não permitem que os indivíduos explorem suas potencialidades. Para mudar esse cenário, Lucca enxerga que é preciso incentivo público e também alternativas vindas da iniciativa privada, no sentido de ações que se preocupem em incluir essas pessoas. MC Xuxu atesta: “As pessoas não abrem portas para pessoas trans trabalharem. Tudo que a gente quer é oportunidade. A gente precisa lutar muito para mudar a sociedade”.
Conquistar espaços
Entrar em espaços que são tão predominantemente ocupados por pessoas cisgênero não é nada fácil – mas é necessário, porque é também onde querem estar. MC Xuxu, por exemplo, já é uma pessoa conhecida na cidade por seu trabalho na música, tendo mais de 80 mil seguidores nas redes sociais e 40 mil inscritos em seu canal no YouTube. Ela começou na dança, no bairro onde foi criada, o Santa Cândida, apresentando-se onde davam oportunidade.
Mesmo hoje, já tendo realizado lançamentos bem grandes, é comum ouvir entre artistas da cidade que o trabalho dela ainda é muito desvalorizado ou colocado por muitas pessoas apenas em um nicho LGBT. E ela mesma percebe isso, quando reflete sobre até onde chegou: “Às vezes eu fico muito feliz, e às vezes eu fico triste. Fico feliz por saber que sou uma travesti pioneira, que influenciou outras travestis a entrar para a arte, entrar para a música, ocupar os lugares onde já cantei e já passei, programas de TV, entrevistas. Mas fico triste quando percebo que se eu não fosse uma pessoa trans, preta, periférica, talvez eu estaria num lugar muito maior, ganhando muito mais dinheiro, alcançado muito mais públicos. A transfobia atrapalha nisso, parece que a gente tem que ficar num certo espaço e não pode, não consegue sair dessa bolha. Porque as outras pessoas não estão preparadas, elas não aceitam”, diz.
Já Brune Coelho enfrenta outros desafios – o primeiro foi ter conseguido permanecer na universidade, mesmo em momentos em que esse processo pareceu custar muito de sua saúde mental. “As estruturas da universidade ainda são muito cis-heteronormativas, e isso impacta a gente com muita força. Já passei situações desconfortáveis em aula. Então isso tudo me afastou da vida acadêmica e das pessoas, foi um processo de muita solidão”, explica. O próprio processo para se tornar doutora também foi complexo. “Acho que existe ainda uma transfobia institucionalizada, de não entender as nossas especificidades, e nem a forma com que a gente produz conhecimento. Porque além de ser uma mulher trans que está no espaço da universidade, eu quero pensar e depois pensar epistemologias trans, e esse processo é muito custoso, é muito difícil”, diz.
Enfrentando resistências
Brune, por mais de uma vez, enfrentou dificuldade sendo uma mulher trans produzindo conhecimento para outras pessoas trans. Mesmo em um espaço onde considera que recebeu acolhimento, também sente que os preconceitos atravessaram suas vivências diversas vezes. “A gente está lá, mas a gente ainda disputa o espaço em uma relação de poder para conseguir falar sobre si”, diz. Por vezes, esse processo aconteceu de forma menos nítida, mas ainda bastante dolorosa. “A gente não tem total autonomia nesse processo enquanto cientistas, apesar de ter metodologia, apesar de a gente ter arcabouço teórico para isso. A universidade tem uma resistência que não é de ordem científica, que é de invalidar algumas perspectivas teóricas que são produzidas por nós”.
Mateus externa uma questão que gera bastante incômodo, principalmente em locais particulares: o uso do banheiro. Ela sente que enfrenta muita resistência para entrar em banheiros femininos e teme violência quando precisa entrar nesses espaços. “Muitas pessoas ainda têm o olhar preconceituoso de quem acha que uma mulher trans é um homem vestido de mulher. Não, gente: é uma mulher. É uma mulher como qualquer outra, que tem as suas potencialidades e as suas particularidades”, esclarece. Vale lembrar, sobre esse receio da violência, que a expectativa de vida da população trans, de acordo com dados do IBGE, é de apenas 35 anos, enquanto da população geral é de 77 anos.
Histórias em comum
O processo de inclusão, aceitação e desenvolvimento da autoestima não tem sido fácil para Lucca, Mateus, MC Xuxu e Brune. Os exemplos que essas pessoas trazem de vivência, mesmo assim, são histórias de superação: Lucca conseguiu ter sua própria barbearia. Mateus vai se formar como jornalista. MC Xuxu é bem-sucedida no mundo da música. Brune é doutora e profissional da psicologia. A luta que cada uma dessas pessoas traz, inclusive, é para que as suas histórias de sucesso não sejam pontos fora da curva, mas que façam cada vez mais parte da vida de pessoas trans em Juiz de Fora e no Brasil.
Os problemas que cada pessoa entrevistada enfrenta também estão longe de serem individuais: são enfrentados pela comunidade trans como um todo, desde a dificuldade para registro de nome até o contato recorrente com muito preconceito, descredibilização e obstáculos para inserção no mercado. Para que o cenário mude, além da desconstrução de certa mentalidade mais conservadora da população e da disposição da sociedade em aprender e aceitar, essas pessoas também entendem que precisam ter uma representação política forte e que lute para mudar essas vivências.
Em 2022, Duda Salabert (PDT) e Erika Hilton (PSOL) foram eleitas deputadas federais justamente para dar conta dessas pautas. Para Duda, é uma vitória de toda a democracia. “Nossa participação acaba tendo um contorno pedagógico, no sentido de que estamos ao mesmo tempo dando visibilidade à diversidade humana, mas também ensinando a sociedade como o ser humano é complexo e diverso. Também ensinamos que o respeito a essa diversidade é um elemento fundamental para assegurar a dignidade humana, princípio que é assegurado na própria Constituição brasileira. Ter pessoas travestis e transexuais no Congresso Nacional é não só uma vitória eleitoral e política, mas uma vitória dos direitos humanos, do país, do modelo de sociedade que nós sonhamos e acreditamos. Uma sociedade pautada no que é o ser humano: diverso e plural.”