75% dos processos criminais de JF não resultam em condenação
Pesquisador investigou dados do TJMG durante 12 anos, mapeando números das varas criminais do município entre 2002 e 2014
Cerca de 75% dos processos produzidos pelas cinco varas de justiça criminal de Juiz de Fora não resultam em casos de condenação. O percentual demonstra a perda do trabalho desenvolvido na Justiça motivada pela falta de provas e de registros, absolvições, problemas processuais, incapacidade de ouvir testemunhas, protelação defensiva e burocracia. Essa é a conclusão de um estudo, que investigou dados do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) durante 12 anos, realizado em pesquisa de doutorado defendida no curso de Ciências Sociais da UFJF, de autoria do promotor de justiça, Hélvio Simões Vidal. Com o título “Na portinha: Uma investigação sobre a entrada no sistema de justiça criminal”, o trabalho, de 314 páginas, mapeia a produção das varas criminais do município entre 2002 e 2014, mostrando que, mesmo com as perdas processuais, o sistema prisional da cidade encontra-se superlotado e sem perspectiva de melhoras.
Os dados mapeados mostram que, em agosto de 2014, as varas criminais e o Tribunal do Júri alcançaram o total de 21.776 processos criminais. Em contrapartida, na Vara de Execuções Penais, para onde são encaminhados todos os processos nos quais ocorreram uma condenação criminal, existiam 5.777 processos individuais para sentenciados à pena de prisão (regime fechado, semiaberto e aberto, com ou sem prisão domiciliar) e penas alternativas.
O marco inicial da pesquisa é a implantação, em Juiz de Fora, do Sistema de Computação do Tribunal de Justiça (Siscom), que informatizou os dados gerados pela Justiça, servindo de objeto para o pesquisador. Conforme aponta o estudo, apenas cerca de 25% do que é produzido pelas varas criminais juiz-foranas transformam-se em condenação. O restante vai para o limbo e tem como consequência custos processuais, acúmulo de serviços, contratação de advogados, demandas ao Ministério Público e perda de tempo.
“Meu objetivo foi fazer um retrato da produção da justiça criminal na atualidade, ou seja, identificando seus feitos. Quais crimes consegue punir. Qual é o trabalho que a polícia encaminha para essas varas. Qual o número de perdas de processos. Qual o número de pessoas presas e quais os tipos de crimes que geram essa prisão”, ressalta o autor, explicando o que o motivou a fazer o estudo. Segundo Vidal, a importância do trabalho está em apontar por que algumas pessoas ficam presas durante o andamento do processo e outras permanecem em liberdade, uma vez que, apesar do grande números de processos perdidos, o Brasil alcançou, em 2016, a terceira maior população prisional do mundo, com 711 mil presos condenados ou provisórios.
“Existe uma tendência em se prender antes de se condenar, mas isso ocorre de forma seletiva. Somente em alguns tipos de crime ocorre essa inversão. Quando se faz um estudo da população prisional brasileira e sua evolução, é perceptível que ela é crescente durante os últimos 20 anos. Quarenta por cento das pessoas presas no país não foram julgadas, revelando uma tendência brasileira de manter a pessoa presa sem julgamento, provocando a superlotação dos presídios, e isso vale para a realidade de Juiz de Fora”, considera Hélvio.
Tráfico de drogas é tratado com dureza pela Justiça
O estudo revela que, no município, processos gerados em razão do tráfico de drogas, crimes contra o patrimônio e contra a vida, além da violência doméstica, são aqueles que mais levam o acusado a permanecer preso enquanto o processo ainda está em andamento. Em diagnóstico realizado em uma única data, em junho de 2014, a pesquisa verificou que, naquela época, nas cinco varas criminais da cidade, haviam 520 processos de prisão sem julgamento.
Do total, 188 pessoas estavam presas por envolvimento com o tráfico de drogas. Em seguida, apareciam os crimes contra o patrimônio, como roubos e furtos, com 169 casos. Na sequência, os crimes contra a pessoa, homicídios consumados e tentados, com 106 registros. O diagnóstico termina com 27 processos por porte de arma de fogo, 24 de violência doméstica e seis relativos à resistência, a crimes ambientais e à legislação especial. “Esse mapa foi feito numa data específica, porque dia após dia esses dados mudam, porque o indivíduo obtém liberdade, fiança, fazendo esse número oscilar. Mesmo assim, esse total representa um contingente elevado. O tráfico de drogas, que é ainda o crime que mantém o maior número de pessoas presas, revela que o acusado dificilmente será colocado em liberdade. É um tratamento duro da Justiça, e a explicação é que o tráfico é considerado um mal que atrai outros delitos, é um crime esponja e, para a Justiça, quase todos os males sociais estão relacionados às drogas”, pontua o promotor. Conforme ele, o elevado número de casos de prisões por tráfico mostra que o trabalho da Justiça é reflexo da ação das polícias, além de ser um delito grave com pena alta, que chega a 15 anos de prisão.
No que diz respeito aos roubos e furtos, Hélvio explica que esses casos resultam em muitos processos, porque a polícia consegue fazer o flagrante e encaminhá-lo para a Justiça, a qual ratifica e mantém a prisão. “Isso é uma atuação antiga dos policiais, que têm a função de prender ladrões. Como esses crimes acontecem em público, com grande visibilidade, é mais fácil detectá-los. No caso dos assassinatos, além da visibilidade, são delitos que atingem o maior bem de qualquer sociedade, que é a vida”, avalia o promotor.
Como ele pontua, um fenômeno pode estar ocorrendo, uma vez que, depois do tráfico, dos homicídios e dos roubos, a violência doméstica é o fato social que causa a maior demanda nas varas criminais da cidade. “É uma violência de gênero, e o grande acúmulo de processos pode ser explicado pela criação da Lei Maria da Penha que, em 2006, passou a conferir direitos e recrudescer o tratamento para a violência doméstica, criando uma legislação, que facilita a aplicação pelos juízes, posto que criou mecanismos que interrompem esse processo de violência, como a criação de delegacias de mulheres. “Essa constatação representa que há uma tendência de o tráfico de drogas ser superado na rotina das varas criminais pelas ações e medidas de proteção da Lei Maria da Penha, pois, quando se somam os processos de violência doméstica ao número de medidas protetivas, o resultado ultrapassa o de tráfico de drogas”, ressalta.
Funcionamento patológico
Na visão do promotor, existem dois padrões de funcionamento da Justiça. O primeiro, segundo ele, é comparado a uma esteira rolante, no qual a polícia prende e a Justiça ratifica a prisão. “Certamente a pessoa fica presa durante o processo e é condenada no final. É como uma esteira rolante, porque ela entra num ponto e chega no final sem nenhuma alteração. Não há mudança no produto final. A Justiça age com dureza nesses crimes que dão visibilidade, porém, em relação a outros tipos de crimes, o processo segue de maneira diferente. A pessoa fica em liberdade, tem direitos a todos os recursos até as últimas instâncias, e o processo termina naquelas perdas. Geralmente, nesses casos, estão crimes graves, como corrupção, lavagem de dinheiro, desvio de verbas, improbidade administrativa, fraude em licitação. Todos esses processos permanecem como fatos inexistentes e não geram 1% das demandas das varas criminais, apesar de existirem”, assevera Hélvio, que dispara: “Isso significa que a polícia e a Justiça funcionam, mas de forma patológica, enxugando sangue das ruas e fazendo o papel de aspirador social, tirando das ruas os indesejáveis, enquanto outros crimes, que geram impacto para uma coletividade, são perdidos.”