Pontes da região central viram moradia em Juiz de Fora
Tribuna percorreu as 13 estruturas viárias entre Santa Terezinha e o Bairro de Lourdes, constatando presença de moradores sob 11 das construções
Thiago Vieira de Aquino, 35 anos, nunca pensou que um dia fosse morar, literalmente, embaixo da ponte. Invisível aos olhos de quem caminha sobre sua cabeça pela ponte de Santa Terezinha, ele mantém a sobriedade como estratégia de sobrevivência para quem se viu, de uma hora para a outra, desempregado e à margem da sociedade.”Já está difícil para a gente desse jeito, com drogas ou bebidas alcoólicas seria o fundo do poço”, argumenta, desmistificando o imaginário de que apenas usuários de entorpecentes se abrigam nesses locais inóspitos. O esmero com a casa sem paredes, montada sob o teto da estrutura viária que liga os dois lados da Avenida Rui Barbosa, faz lembrar a clássica música infantil de Vinicius de Moraes. Mas quem lhe dera que os versos poéticos de “A Casa” espantassem as noites frias e o mau cheiro que vem logo dali, do poluído Rio Paraibuna.
Neste mês, marcado pelo Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua (19), a Tribuna percorreu as 13 pontes existentes no trecho entre Santa Terezinha e o Bairro de Lourdes, constatando a presença de moradores sob 11 das construções urbanas. Lonas, barracas e camas improvisadas podem ser vistas debaixo das conexões entre ambas as pistas da Avenida Brasil. As únicas estruturas que não viraram teto de moradia são a Ponte Carlos Otto, no Poço Rico – porque o modo como foi construída não viabilizaria espaço para ocupação -, e outra usada para passagem de pedestres em frente ao Terreirão do Samba, a Ponte da Leopoldina.
Embora a sujeira predomine em alguns dos espaços sob as estruturas usadas como habitação, muitos moradores cuidam da limpeza e da aparência do local como se, de fato, fosse sua própria casa. E Thiago é um grande exemplo disso. Ao receber a equipe de Tribuna, ele se prontifica a ajudar na descida do barranco que leva à sua residência e avisa: “Cuidado, pode escorregar. Eu capinei, mas esqueci de varrer.”
Logo a história daquele homem começa a aparecer. Enquanto a companheira dele, 36, arruma cuidadosamente as roupas e os utensílios domésticos no armário em um dia de faxina, Thiago revela ser de Paraíba do Sul (RJ), a cerca de 80 quilômetros de Juiz de Fora, e diz ter vindo para a cidade à procura de emprego. Trabalhou como pedreiro e também como chapeiro em um restaurante fast-food de um shopping na Zona Sul. Mas há cinco meses, após não conseguir mais vaga no mercado formal, foi viver embaixo da ponte denominada Engenheiro Daniel Alberto Rigoli Botta.
A mulher, que preferiu não ter seu nome divulgado, veio de Simão Pereira (MG), a apenas 30 quilômetros de distância. “Nos conhecemos em Juiz de Fora e resolvemos ficar juntos. Infelizmente, por enquanto, estamos nessa situação”, lamenta Thiago, com a certeza de que a permanência no endereço é temporária. “Nossa intenção é juntar dinheiro para pagar aluguel. Chegamos a olhar uma casa, mas era R$ 500 por mês. Para nós fica apertado, porque ganhamos no máximo R$ 40 por dia com materiais recicláveis que recolhemos e vendemos em um depósito aqui perto. Eu vou para a rua todos os dias, mas ela não consegue me acompanhar sempre, porque sente dores nas pernas se andar muito.”
Roubos e medo marcam rotina de vida na rua
Na companhia dos cães Leão e Tutuquinha, o morador em situação de rua Thiago conta que o começo da vida debaixo da ponte de Santa Terezinha foi o período mais difícil. “Há perigo todos os dias, e logo que viemos para cá fomos roubados. Levaram nossas roupas e os documentos da minha mulher. Só não levaram os meus também porque deixo no depósito onde reciclo o lixo que recolho. Depois começaram a nos conhecer.”
Ao falar de outro assalto, quando teve seu celular subtraído, o homem confidencia ser pai de quatro filhos e demonstra orgulho em ter casado a primogênita,18, no último dia 20 de julho. “Entrei com ela na igreja.”
Apesar de ter ficado sem o telefone que usava para se comunicar com seus filhos, Thiago segue adiante, driblando o frio e a falta de oportunidade. Ele e a companheira dormem em uma cama estreita, improvisada em cima de páletes de madeira para amenizar as baixas temperaturas noturnas do inverno. Para esquentar ou preparar a comida, uma lata faz o papel do fogão. “Nunca morei antes na rua.”
Com o fim desta estação, o homem sabe que tem um novo desafio:
“Sei que no período das chuvas a água chega a bater lá em cima na ponte. Alaga, e isso tudo aqui fica coberto. Ainda não sei como faremos, mas temos uma barraca de acampamento. Vamos ter que ir para algum outro lugar. Talvez consiga dormir no depósito.”
Thiago afirma contar com a ajuda de muitos moradores do entorno de onde reside para ter uma vida mais digna. “Nesses cinco meses que estou aqui, nunca apareceu nenhum órgão público. Mas recebemos muita doação da igreja e de algumas pessoas.”
Questionado sobre o motivo de não ter procurado uma instituição pública para se abrigar, como o albergue municipal da Rua José Calil Ahouagi, voltado aos adultos em situação de vulnerabilidade que vivem nas ruas de Juiz de Fora, ele rebate: “Para entrar lá, temos que chegar até as 18h. Isso se conseguir uma vaga.” O serviço, que integra o Núcleo do Cidadão de Rua e o Centro Pop (Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua), é ligado à Secretaria de Desenvolvimento Social (SDS) da Prefeitura e executado pela Amac. O atendimento para pernoite é oferecido a cerca de cem usuários por dia, mas a população em situação de rua é muito maior.
Polêmica
A anunciada transferência do aparelhamento, que atualmente se encontra nas ruas José Calil Ahouagi e Professor Oswaldo Veloso, no Centro, para um imóvel de três andares, também alugado, na Avenida Brasil, entre os bairros Costa Carvalho e de Lourdes, Zona Sudeste, tem causado polêmica. Os espaços atuais não têm mais condições de abrigar a demanda diária por questões estruturais e de segurança, já alvos de ações do Ministério Público.
Entretanto, representantes de moradores dos dois bairros próximos ao novo local e também do Poço Rico e Aracy, na mesma região, além de escolas e entidades ao redor do novo endereço, não querem receber o equipamento público, temendo aumento da violência. O tema já foi alvo de diversas discussões, inclusive no plenário da Câmara Municipal.
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Segundo a Secretaria de Desenvolvimento Social (SDS), a mudança está prevista para acontecer já no próximo mês. A Casa de Passagem para Homens (antigo albergue) continuará a atender cem usuários para pernoite e 130 para alimentação todos os dias. Já a Casa de Passagem para a Mulher em Situação de Rua, com 50 vagas, permanecerá no mesmo endereço, na Rua Oswaldo Veloso.
Conforme a pasta, nesses dois locais, as pessoas têm acesso a banho e alimentação, além do pernoite. Durante o dia, é oferecido o Centro Pop, com capacidade de 200 atendimentos por dia, onde também há alimentação, atividades psicossociais e encaminhamentos para outros serviços da rede. Já na Casa da Cidadania, há 50 vagas para aqueles que precisam de um acompanhamento mais próximo, por razões de saúde ou outras especificidades, em período integral. “A SDS oferece também inclusão socioprodutiva, disponibilizando 120 vagas para a população em situação de rua.”
‘Aqui tenho pé de ameixa, de amora e de abacate’
A um quarteirão de distância de Thiago e na mesma margem do Rio Paraibuna, o catador de recicláveis Adriano Lopes da Cunha, 34, montou uma casa a céu aberto. Optou por não ficar embaixo, mas ao lado da ponte de ferro vermelha Domingos Alves Pereira, ainda em Santa Terezinha. Ele compôs sua moradia minuciosamente, inclusive com objetos decorativos, com quadros e vasos de plantas – a maioria pendurada nas árvores que estão ao redor. O cenário curioso, à beira da Avenida Brasil, chama a atenção de pedestres e motoristas que passam pelo local. Enquanto os quartos de Adriano e da companheira, 43, e de um amigo, 34, são organizados em quatro barracas de acampamentos, sendo uma delas usada apenas como guarda-roupa, os demais ambientes são ao ar livre. A casa não tem teto, não tem paredes.
Na sala, há um sofá de frente para um rack com vários equipamentos eletrônicos, como TV e aparelho de som, além de uma espécie de barzinho com garrafas. As roupas são secas em um varal, e os troncos dão sustentação a uma rede e a uma placa de alerta: “Cuidado, área de risco”. Os recados ainda aparecem no guard rail que separa a avenida da margem do rio: “Foi Deus que me deu”.
Adriano era pedreiro de acabamento, mas teve que abandonar a profissão por ter perdido o movimento em dois dedos da mão devido a uma facada. Há 17 anos em situação de rua, ele tem na ponta da língua os motivos de ter escolhido o atual ponto para morar, há um ano e nove meses:
“Aqui eu tenho pé de ameixa, de amora e de abacate. Tenho também ninho de curió e nosso senhor Jesus. Meu periquito e meu papagaio ficam soltos.”
Ele conta ter conhecido seu amigo há 20 anos. “Já morei em vários lugares”, revela, lembrando que tudo começou depois que a casa da família no Eldorado, Zona Nordeste, pegou fogo e os problemas familiares aumentaram. Devoto de Nossa Senhora Aparecida, ele arranjou um lugar para pendurar a imagem da Padroeira do Brasil.
Assim como muitos moradores nessa situação, Adriano prefere dormir na rua à frequentar albergues por não concordar com as regras estabelecidas. Mas sonha em um dia voltar a ter uma casa e uma vida mais digna. Enquanto a expectativa não vira realidade, ele passa os dias recolhendo detritos reaproveitáveis.
SDS aponta 24 moradores sob pontes centrais
Diagnóstico realizado pela SDS, em abril, identificou 24 moradores em situação de rua, utilizando as pontes entre os bairros de Lourdes e Santa Terezinha como espaço de moradia. Nas 13 estruturas percorridas pela equipe foram encontradas pessoas de 20 a 50 anos. Onze pessoas não quiseram responder à equipe de abordagem. Ao todo, 16 homens e oito mulheres permaneciam, pernoitavam ou usavam de fato os locais como “casa”. Entre os motivos que levaram essas pessoas a morar debaixo das pontes estão desentendimento familiar e migração, com quatro casos de cada um, enquanto outra afirmou ser egressa do sistema prisional.
Um dos abordados confirmou ser usuário de crack, dois de bebidas alcoólicas e dois de tabaco. Apenas quatro utilizavam benefícios sociais e a rede de atendimento social, sendo esses o Bolsa Família, o Centro Pop, o Pequeninos de Jesus e o Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas. Sobre como faziam para obter renda, quatro disseram realizar a venda de materiais recicláveis, um afirmou trabalhar como flanelinha, outro realizava capina e um relatou fazer trabalhos informais.
“Para a assistência social, o mais importante é entender os motivos que levaram essas pessoas para vivência de rua e a utilizar as pontes como moradia. Após o levantamento, a secretaria acompanha caso a caso, faz os encaminhamentos necessários e desenvolve ações de forma que as pessoas tenham seus direitos garantidos e possam superar a situação de rua”, explica.
A Prefeitura garante realizar todo mês uma abordagem social em diversos pontos da cidade, inclusive nas pontes. A ação é conjunta e envolve a Polícia Militar, Demlurb (que realiza a limpeza de resíduos), secretarias da PJF e Guarda Municipal. “A intenção é orientar e encaminhar os moradores para os serviços sociais. Vale lembrar que eles só serão encaminhados caso aceitem. De acordo com a legislação brasileira, todos possuem direito de ir, vir e permanecer”. O Serviço de Abordagem Social pode ser acionado pelo telefone 3690-7770.
Crise financeira agrava situação
Para a coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos, Fabiana Rabelo, a crise financeira no país é um dos fatores que tem levado trabalhadores a viverem em situação de rua em Juiz de Fora. “A crise econômica e o aumento do desemprego são reflexos do fim das políticas públicas que começaram a ser destruídas nos últimos quatro anos. (…) A existência de pessoas em situação de rua comprova a profunda desigualdade social brasileira e insere-se na lógica do sistema capitalista de trabalho assalariado, cuja pobreza extrema combina com seu funcionamento.”
Dados do FGV Social, divulgados no último dia 19, no trabalho intitulado “A Escalda da Desigualdade – Qual foi o Impacto da crise sobre a distribuição de renda e a pobreza?”, mostram que o total de pessoas que cruzaram a linha da extrema pobreza desde 2014, passando a viver com menos de R$ 232 por mês, cresceu 33%. Os miseráveis chegam a 23,3 milhões e equivalem a 11,2% da população. A queda da renda, o desemprego e o aumento da desigualdade são apontados como os motivos da reversão ocorrida após a diminuição da pobreza, em 75%, observada de 1990 a 2014. Do fim de 2014 a junho deste ano, a renda per capita do trabalho dos 10% mais ricos subiu 2,5% acima da inflação, e a do 1% mais rico, 10,1%. Já o rendimento dos 50% mais pobres despencou 17,1%, e dos 40% da classe média caiu 4,2%.
Sobre a ilusão de que apenas usuários de drogas e de bebidas alcoólicas se abrigariam sob as pontes, Fabiana explica que essas pessoas carregam a marca do estigma e da exclusão a que são submetidas.
“Sua presença incomoda e desconcerta quem busca ver nas ruas a mesma tranquilidade asséptica de condomínios habitacionais com circulação restrita de pessoas.”
Na percepção da especialista, o que leva ao abrigo embaixo das pontes não é o consumo de entorpecentes, mas sim a condição de estarem em situação de rua. “Entre os principais motivos que levam a pessoa em situação de rua a fazer tal uso destacam-se as dificuldades vivenciadas neste meio, a qual abrange a exclusão social, a miséria, a vulnerabilidade e a violência. Deste modo, o sujeito, para tirar o foco de seu sofrimento, a fim de suprir o vazio existencial ocasionado pela situação que o permeia, acaba se sujeitando ao uso de drogas e álcool como escape para fuga da realidade.”
Ainda conforme Fabiana, a implementação da Política Municipal para População em Situação de Rua seria uma forma de o poder público municipal contribuir para a efetivação de ações que promovam a (re)integração dessas pessoas às suas redes familiares e comunitárias, assim como o acesso pleno aos direitos e às oportunidades de desenvolvimento social. Segundo ela, o projeto foi elaborado pelo Comitê Gestor Municipal Intersetorial da Política Municipal para População em Situação de Rua, constituído pelo Decreto Municipal nº 11.749/2013, e aguarda pela aprovação por meio dos órgãos competentes.
Oportunidade
Conforme a SDS, nesta semana, houve apresentação de proposta, pela equipe da Pastoral de Rua de Belo Horizonte, para realização de um seminário em outubro na cidade, reunindo a rede de atendimento à população em situação de rua e também empresários. O objetivo é estabelecer parcerias para ampliar as possibilidades de emprego e renda para que essas pessoas possam sair desta condição.
A gerente do Departamento de Proteção Especial (DPE) da SDS, Gisele Zaquini, destaca a importância dos encontros, que tiveram ampla abordagem:
“Ações de discussão, com diferentes segmentos, são muito relevantes, uma vez que as políticas públicas precisam ser fruto de discussões coletivas, de forma que todas as vozes se façam presentes em busca do mesmo objetivo que, neste caso, é a superação da vivência de rua pelos usuários dos serviços e programas ofertados pelo setor público”.
Último diagnóstico foi realizado em 2016
De acordo com a coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos, Fabiana Rabelo, o último diagnóstico sobre população em situação de rua foi realizado em 2016 e traz algumas informações e dados sobre o abrigamento de pessoas embaixo de pontes. “Todavia, sabemos que vários fatores como clima, serviços de “higienização”, relação com a comunidade local, segurança pública, entre outros, colaboram ou não para a permanência, sendo assim, os números podem variar.”
Segundo a SDS, a estimativa de 2016 tem validade de quatro anos. Durante a contabilização, foram encontradas 243 pessoas dormindo nas ruas, 141 acolhidas pelos equipamentos públicos e 496 sobrevivendo nas vias públicas, mas com retornos para casa. Segundo o relatório, 82% das pessoas que dormem nas ruas são homens e 18% mulheres. Do total, 40% são pardos, 38% negros, 16% brancos, 2% indígenas e quatro não responderam. Desses, 68% declararam não terem sequer concluído o ensino fundamental, ao passo que 2% completaram e 8% revelaram serem analfabetos. Já 18% não concluíram o ensino médio, 2% finalizaram esta etapa e outros 2% estavam com o ensino superior incompleto. Apesar da baixa escolaridade, 4% estavam estudando. A faixa etária desse público ficou concentrada entre 26 e 41 anos. Em relação ao trabalho, apenas 16% tiveram carteira assinada nos 12 meses anteriores e 54% estavam na informalidade.
Fabiana destaca que a permanência nas ruas é um direito do cidadão. “Mas para além desta situação, a Casa de Passagem para Homens (albergue) oferece apenas cem vagas para atender tanto moradores do município, como migrantes. Capacidade insuficiente para acolher pessoas que necessitam pernoitar. Além disso, penso que as Casas de Passagem atendem a necessidade de um determinado público, mas acaba não atendendo a necessidade de outros, como pessoas que trabalham com reciclagem e temem deixar os carrinhos na rua, pessoas que têm animais ou que formam casal e não querem se separar no pernoite, entre outras especificidades.”
Thiago, o que vive embaixo da ponte de Santa Terezinha, se encaixa nessas particularidades. Enquanto a crise financeira que atinge o Brasil, o Estado e o Município não passa, fazendo crescer o número de desempregados, ele só tem uma certeza: “Assim que der, vou sair daqui.”