Xeque-mate no ‘eu não consigo’

Aulas de xadrez mudam realidade em escola inserida em cenário de vulnerabilidade social


Por Bárbara Riolino

22/07/2017 às 17h37- Atualizada 24/07/2017 às 12h50

De uma simples aula de extensão para complementar sua carga horária, a professora de Educação Física Simone Lima deu início a um projeto que mudou a realidade da Escola Municipal Gabriel Gonçalves da Silva, no Bairro Ipiranga, Zona Sul: o ensino de xadrez. Em quase cinco anos de existência, os estudantes do ensino fundamental colecionam, além de títulos e medalhas, boletins sem notas vermelhas e mudanças no comportamento. Entre as conquistas estão o terceiro lugar, entre 27 países, no Campeonato Mundial de Xadrez realizado em 2014; o primeiro lugar na Liga X de Xadrez de Juiz de Fora como a equipe que mais pontuou em 2014; participação no Campeonato Brasileiro de Xadrez, em 2015; e o terceiro lugar no Campeonato Mineiro de Xadrez, realizado em 2016.

Valores como respeito, criatividade e raciocínio são repassados aos alunos, que elevaram sua autoestima com as conquistas que alcançaram

Atualmente, a equipe está entre as classificadas na primeira etapa da Liga X deste ano. “Essas conquistas mexeram demais com os alunos e com a autoestima da escola, ainda mais para uma instituição inserida em um contexto de extrema violência, vulnerabilidade social e tráfico de drogas. Desde o primeiro contato com o universo do xadrez, eles ficaram encantados e motivados a jogar e competir. Isso, para um professor, é maravilhoso”, destaca Simone, que não mede esforços para conquistar o apoio de instituições para ajudar a financiar a participação dos alunos nas disputas.

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“O xadrez desperta a responsabilidade, pois, antes de mover uma peça, o jogador precisa pensar nas consequências deste movimento” (Simone Lima, professora)

Sem grades, sem limitações

Apoderando-se dos inúmeros significados que a palavra “xadrez” possui, Simone baseou-se no sinônimo de prisão para criar o nome da equipe: “Xadrez sem grades”. Com esta analogia, a educadora quis mostrar aos 130 alunos participantes do projeto que não há barreiras para se jogar xadrez. O par de asas presentes na logomarca simboliza que as crianças podem voar e ir além do que imaginam. “Quando coloco essas asas quero que eles se percebam capazes e reconheçam suas potencialidades. O xadrez proporciona um universo de relações sociais e de possibilidades. Não é minha intenção formar atletas, mas fazer um trabalho de base e democratizar esse acesso. Mesmo não falando outros idiomas, eles sabem a linguagem universal do xadrez, sabem fazer as anotações algébricas, que são as provas do seu jogo”, conta.

A professora revela que seu contato com o xadrez aconteceu em outra escola que trabalhava, por intermédio de um aluno do curso de Educação Física que trabalhava em um projeto voltado para o xadrez escolar. “Assim como meus alunos, eu busquei esse conhecimento para levar até eles. Como educadora, eu me aproprio dessa ferramenta para ensinar e levar esse conhecimento, que não está nos livros, mas para quem quiser. Não tenho vontade de ser uma enxadrista, mas quero ser uma excelente professora de xadrez.”

valores ensinados
Além de despertar paixões e desenvolver habilidades, Simone conta que o xadrez proporciona às crianças outros valores, como respeito, criatividade, raciocínio e o mais importante: se colocar diante do outro, compreendendo que não se trata de um adversário, mas de um oponente que sem ele o jogo não acontece. “Eles passam a entender que esse alguém é seu companheiro. Outra obrigatoriedade do xadrez é cumprimentar o oponente, estendendo-lhe a mão, e desejar-lhe um bom jogo, independente de ser forte, fraco, conhecido ou desconhecido. Hoje temos dificuldade de olhar no olho do outro. O xadrez também desperta a responsabilidade, pois, antes de mover uma peça, o jogador precisa pensar nas consequências deste movimento. Ao trazer para o nosso cotidiano, é pensar antes de agir. Quantas situações enfrentamos hoje a partir de atitudes impensadas? Tudo isso ainda desperta a autoestima, pois a maioria acha que o xadrez é para pessoas mega inteligentes e superdotadas.”

Melhorias no ensino e no comportamento

Uma das primeiras alunas a se destacar no xadrez dentro da Escola Municipal Gabriel Gonçalves da Silva foi Brenda Correia, 13 anos. Ela conta, com orgulho, como o xadrez a ajudou no desempenho escolar. Em cinco anos de prática, a estudante viu suas notas aumentarem, principalmente em matemática. “Geralmente eu ficava na média, mas logo subiu para 90% de aproveitamento. Antes eu não conseguia me concentrar nas aulas, hoje consigo ter mais atenção e foco. Passei a praticar em casa, ensinando o meu pai para ele jogar comigo.” Brenda coleciona 35 medalhas e seis troféus. “Quero um dia ser árbitro de xadrez e ajudar outras crianças, como a Simone faz.”
Por influência do irmão, que participou das primeiras turmas da escola, Kennedy Gonçalves, 11, passou a frequentar as aulas de xadrez. Neste um ano em que participa ativamente do projeto, viu seu interesse em aprender aumentar. “Antes eu não gostava, não prestava atenção. Com o xadrez eu aprendi a me concentrar e traçar as estratégias. Meu sonho é poder comprar um tabuleiro para jogar em casa com o meu irmão.”
Quem também comemora a introdução no xadrez é a auxiliar de serviços gerais Carmem Lúcia Costa Leite, que trabalha há 21 anos na escola. Segundo ela, os recreios estão bem mais calmos. “A gente já percebeu que houve uma grande mudança no comportamento. A paixão deles pelo xadrez fica estampada nos olhos. Eles são loucos com a Simone e com o jogo. Quando eles vão competir, a gente torce muito e fica feliz quando voltam com medalhas”, conta.

Aspectos sociais
Na visão do sócio-criador da Liga X, Leandro Conti, iniciativas como esta criada pela professora Simone Lima são fantásticas, ainda mais dentro da rede pública, onde existem outras demandas envolvidas. “Há outros aspectos sociais a serem considerados, e o xadrez, assim como outras modalidades esportivas, tem papel até mais importantes. Ele é trabalhado de diversas formas e nos mais variados contextos. No Espírito Santo, por exemplo, o jogo vem sendo praticado em programas do sistema prisional, com um projeto premiado na Europa, o Xadrez que Liberta. De qualquer forma, dar oportunidades e fazer as crianças se relacionarem de maneira respeitosa, harmônica e com regras a serem seguidas, contribui para o desenvolvimento pessoal e social deles.”

Segundo Conti, o desenvolvimento da criança no xadrez só depende da prática e de uma boa orientação. “Não há nada que indique melhor desenvolvimento em crianças de escola privada ou da pública. O problema é que o xadrez não está inserido de forma sistematizada na rede pública. Já na rede particular, há maior inserção, pois a decisão é rápida e depende só do querer dos gestores, o que não ocorre na rede pública por diversos fatores, principalmente políticos.” Contudo, Leandro acredita que a prática institucionalizada do xadrez na rede pública pode acontecer em breve, por haver uma movimentação nacional pedindo esta inclusão.

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As aulas de xadrez na Escola Gabriel Gonçalves da Silva acontecem semanalmente em duas turmas, divididas entre alunos iniciantes e intermediários, aqueles que já praticam. O xadrez figura ainda como disciplina regular para as turmas de aceleração, que atendem alunos em defasagem. Também participam das aulas os alunos da Escola Municipal Jesus de Oliveira, localizada a poucos metros da Gabriel Gonçalves.

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