Problemas de saúde mental disparam afastamentos de agentes de segurança pública

Neste ‘Janeiro Branco’, voltado ao tema, Tribuna ouviu profissionais e entidades ligadas a policiais penais, militares e civis; estresse das atividades, déficit de efetivo e condições de trabalho precárias agravam situação


Por Sandra Zanella

22/01/2023 às 07h00

“Tenho oito anos de sistema prisional. Entrei muito novo, um menino cheio de sonhos e planos. Trabalhava como peão de obra e, de repente, achei que minha vida iria mudar, que conseguiria ganhar um bom salário e levar qualidade de vida para minha família. Mas muito pelo contrário: o dinheiro custou a minha saúde”, desabafa um policial penal, de 28 anos, afastado da atividade há cerca de dois anos, entre idas e vindas. Neste “Janeiro Branco”, mês dedicado à saúde mental, a Tribuna aborda o tema junto a uma das profissões mais desafiadoras e desgastantes: a do agente de segurança pública. Entidades de classe, incluindo das polícias Civil e Militar, são unânimes em afirmar que os problemas psicológicos costumam ser ocasionados pela própria tensão das atividades desenvolvidas por esses profissionais, aliada à sobrecarga de trabalho e a condições precárias.

Segundo o policial penal, ouvido de forma reservada pela reportagem, a pressão acontece de todos os lados. “Até passei bem os primeiros cinco, seis anos. Sempre tive cargo de liderança e trabalhei na linha de frente. Dei o meu sangue. Fazia horas extras, mesmo sem o Estado nos dar condições. Mas depois me vi abandonado”, lamenta ele, sobre o momento em que precisou de respaldo devido à perda inesperada da esposa. Servidora da área de segurança pública em outro estado, ela também teria sofrido mentalmente.

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Sobre o efetivo na unidade onde é lotado na região, o agente aponta índice de afastamento de até 40%, “a maioria por questões psicológicas”. Com isso, há um efeito cascata, pois quem continua na ativa acaba acumulando funções. “Adquiri hipertensão, síndrome do pânico, asma. Mas tento levar minha vida, fazer de tudo para ocupar minha mente e tentar ser feliz, porque ficou nosso filho de 8 anos, e ele é tudo pra mim. É quem me dá força para viver e não fazer a mesma coisa.”

Precariedade resume para ele o dia a dia no trabalho: “Às vezes promovemos até vaquinha para manter o serviço do Estado: para arrumar viatura, fazer telhado, armário, cama de alojamento, tudo.” Ele pondera sobre ir a fundo nas deficiências: “Só quero paz para seguir minha vida, superar meus problemas e voltar a ser o profissional que sempre fui.”

Desde a desativação do Ceresp e a consequente transferência de 800 presos para outras unidades prisionais, o serviço, afirmam profissionais, teria piorado nas penitenciárias de Juiz de Fora (Foto: Fernando Priamo/Arquivo TM)

Transferência de 800 presos do Ceresp piora situação de penitenciárias

Desde a desativação do Ceresp em abril do ano passado, para obras de melhorias e ampliação, e a consequente transferência de 800 presos para outras unidades prisionais, o serviço teria piorado nas penitenciárias de Juiz de Fora. “Isso somado aos atestados médicos faz com que o atendimento ao IPL (indivíduo privado de liberdade) fique comprometido”, denuncia um policial penal de Juiz de Fora, 47 anos. No começo deste ano, um preso, 33, morreu possivelmente pelo rompimento de drogas no tubo digestivo. “Certo é que todos os IPLs que retornam de saída temporária ou de trabalhos externos sejam submetidos ao raio-X.”

O profissional conta ter sido afastado para cuidados psicológicos quatro vezes. Ele já passou por seis psiquiatras e agora é atendido por psicóloga. “Estou fazendo tratamento e trabalhando, pois há mais de 38% afastados”, revela. “Da minha turma, perdemos vários colegas com a ‘maldição’ do suicídio, contumaz entre nós. É lamentável.”

O servidor teve conhecimento de três suicídios e de três tentativas de autoextermínio de colegas nos últimos cinco anos. Um deles aconteceu em fevereiro de 2022. Um homem, de 45 anos, e uma mulher, 46, foram encontrados mortos a tiros no banheiro de uma casa. Segundo o registro da PM, o casal era de ex-policiais penais, e, próximo a ele, havia uma pistola calibre 380. “Ambos haviam saído recentemente, e sabíamos que ele já não estava bem com o psicológico há muito tempo.”

De acordo com o policial, a sobrecarga psíquica leva a fugas psicológicas. “O álcool faz ou fez parte da vida de 80% dos profissionais. Os remédios, principalmente os ansiolíticos e para dormir – devido ao plantão de 24 horas consecutivas -, todos nós temos em estoque.” Conforme o policial, as escalas exaustivas de trabalho e a dificuldade para usufruir do banco de horas – exatamente pela quantidade de colegas ausentes – contribuem para os problemas mentais.

Ele aponta falta de proteção para quem atua nas penitenciárias Ariosvaldo Campos Pires e Professor José Edson Cavalieri (Pjec), no Bairro Linhares, Zona Leste. “Há insegurança em todo o complexo, pois todos os dias ficam lançando drogas e celulares para dentro da unidade. Recentemente, houve troca de tiros na muralha, onde um policial da guarita foi atingido”. O caso aconteceu em junho do ano passado, quando um policial penal, 27, foi ferido por estilhaços de bala, após dez disparos na parte externa da unidade, em cobertura a uma tentativa de fuga.

“Há abandono no entorno de todo complexo, mato muitíssimo alto, que impossibilita acesso às partes mais inseguras, e sem claridade para que os policiais penais da muralha possam ter amplo campo de visão. Faltam investimentos em projetos para blindagem das guaritas nas muralhas e refletores com feixe de luz forte.”

Sindicato e associação reforçam dificuldades

Os desafios da carreira de agente de segurança pública podem começar mesmo antes da admissão. Neste mês, dois candidatos tiveram mal súbito e morreram após a corrida de resistência do teste de aptidão física do concurso para a Polícia Penal de Minas. Conforme a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), eles receberam os primeiros atendimentos pela equipe médica e foram encaminhados a hospital, mas não resistiram. A pasta ressaltou que ambos apresentaram laudo médico liberando a prática.

Diretor regional do Sindicato dos Policiais Penais (Sindppen), Luciano Pipa Lins afirma que o afastamento de servidores nas unidades prisionais de Juiz de Fora gira em torno de 30% do efetivo. “Antes das festas de fim de ano chegava a 50%. Em plantão para 20 policiais, tinham oito. Agora voltou a ter 15, 16. O Estado vem negligenciando as nossas condições de trabalho, ninguém quer investir em cadeia.”

Segundo ele, “piorou muito” com o Ceresp fechado. “A situação já era precária e, com a interdição, essa massa carcerária foi para dentro das duas penitenciárias, causando superlotação. Faltam manutenção e servidores.” Pipa diz que em cela destinada a seis detentos chegam a ter 30. “Vira uma bomba-relógio. É uma série de fatores que acarreta no adoecimento do servidor.” O sindicalista acrescenta haver uma espécie de retaliação aos afastamentos. “Pessoal não está bem, sai de atestado e, quando volta, ainda é realocado em setor diferente.”

A diretoria regional da Associação do Sistema Socioeducativo e Prisional de Juiz de Fora (Assprijuf) avalia que problemas de saúde mental sempre existiram na classe. “Com o passar do tempo vêm aumentando cada vez mais, devido ao baixo número de efetivo para executar as tarefas diárias, acarretando em sobrecarga do trabalho, que já é estressante.” A entidade reclama da falta de política remuneratória das perdas inflacionárias salariais e da carga horária extra, “relacionada diretamente aos afastamentos emocionais”. Também solicita reforma das unidades, regime de adicional de serviço, Lei Orgânica e pagamento de tíquete refeição. De acordo com a associação, casos de suicídio estariam em ascendência. “Ficamos sabendo através de redes sociais, quando não é alguém próximo ou conhecido.” A Assprijuf oferece parcerias e convênios na área da saúde, que abrange psicólogos, psiquiatras e clínica 24h para suporte.

Sejusp investe em Centros de Atenção Biopsicossocial

Escalas exaustivas de trabalho; dificuldade para usufruir do banco de horas, pela quantidade de afastamentos por motivos médicos; estresse constante; e condições precárias contribuem para o adoecimento, dizem servidores (Foto: Bernardo Carneiro/Imprensa MG)

Por motivo de segurança, a Sejusp diz não divulgar o efetivo de suas unidades ou o quantitativo de servidores afastados e assegura não ter acesso aos dados de suicídios, porque o atestado de óbito do servidor é restrito à família.

Conforme a pasta, a competência da política de saúde ocupacional é da Superintendência Central de Perícia Médica e Saúde Ocupacional, pertencente à Seplag. “Todavia, a Diretoria de Atenção à Saúde do Servidor da Sejusp vem desenvolvendo diversas iniciativas no sentido de ampliar o acesso aos cuidados de saúde mental.” Nesse sentido, o projeto “Cuidar Bem de Quem Cuida”, no eixo Valorização dos Profissionais de Segurança Pública, está sendo desenvolvido. “Serão criados Centros de Atenção Biopsicossocial para atendimento em todas as Regiões Integradas de Segurança Pública”, garante, com previsão de inauguração em Juiz de Fora em curto ou médio prazos.

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A Sejusp informa que as obras no Ceresp devem ser concluídas até o final do ano. A unidade passará de 332 vagas para mais de 500. Em relação ao efetivo, está em fase final um processo seletivo para agente penitenciário (temporário e sem porte de arma), com 3.506 vagas. Além disso, está em andamento concurso com 2.420 vagas para policial penal no estado. Por fim, a pasta lembra que a alimentação é fornecida aos servidores em todas as unidades, por isso não há tíquete.

Aspra aponta déficit de 13 mil PMs em Minas

Presidente da Associação dos Praças Policiais e Bombeiros Militares de Minas Gerais (Aspra/MG), o subtenente Heder Martins de Oliveira define os afastamentos ligados à saúde mental e os suicídios da categoria como uma “verdadeira caixa-preta”. “Não temos dados, porque tem o pressuposto de ser uma questão de atendimento médico e fica sob sigilo. Mas sabemos que vários encontram-se afastados, licenciados.” Segundo ele, os gatilhos são muitos, como a pressão por resultados e a escala de serviço. “O efetivo das polícias militares deveria ser de 51 mil, e nós temos 38 mil, enquanto a criminalidade vem aumentando. Então a busca pelo resultado, pela redução dos crimes violentos e de furtos, exige uma carga horária sacrificante, com elevado nível de estresse.”

De olho na prevenção, a Aspra volta a realizar, em março, um seminário com profissionais de segurança pública sobre o tema, semelhante ao evento promovido antes da pandemia. “Temos praças psicólogos e estaremos convidando especialistas do país todo para jogar luz sobre essa questão.” Um dos participantes é o psicólogo e subtenente reformado, Gilberto Agostinho dos Reis.

“O universo maior na PM é de adultos, do sexo masculino. Esse é o público mais sujeito ao suicídio, e a utilização de armas está no cotidiano do policial militar. Então, em uma situação de estresse elevado ou de transtorno pós-traumático – que acontece nas polícias de modo geral – e se a pessoa já tem uma predisposição interna, há esse facilitador, de estar no dia a dia com a arma”, analisa o especialista. “A atividade também leva a um estresse constante, durante o qual a pessoa pode perder o equilíbrio emocional e se conduzir pelo impulso.”

O subtenente atuou como psicólogo na PMMG por 13 anos e lecionou psicologia aplicada em diversos cursos da corporação. “A atividade policial vai na contramão da natureza humana, que é não querer lidar com a morte, com conflitos que colocam a pessoa em risco.” Ele vai além: “O policial é treinado para matar ou morrer, para sacrificar a própria vida para cumprir a missão, se necessário for. E o funcionamento da corporação é extremamente rígido. Então são muitos fatores que levam ao autoextermínio.”

A Tribuna provocou a PMMG sobre o tema, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria.

‘A atividade de segurança deveria ter mais planejamento e inteligência’

Para o diretor regional do Sindicato dos Servidores da Polícia Civil de Minas (Sindpol/MG), Givanildo Guimarães, o nível de estresse da profissão e a cobrança contribuem para alterações na saúde mental. “Para lidar com situações de conflito o tempo todo você precisa estar muito bem preparado, e há pouca formação. A atividade de segurança deveria ter mais planejamento e inteligência.” Ele comenta o adoecimento mental da categoria. “Em Minas tivemos muitos suicídios. E temos problemas imediatos na subsede com as perícias. É um processo muito abusivo”, resume.

A Polícia Civil esclarece que, por questões éticas e de segurança institucional, não fornece números de servidores afastados por licenças médicas e vítimas de autoextermínio. Por meio do Hospital da Polícia Civil (HPC), a corporação desenvolve iniciativas para cuidar da saúde mental dos seus servidores e dependentes. Desde 2020, há atendimento também por videoconferência, sendo expandido para o interior do estado, e há plantão psicológico via aplicativo WhatsApp. A Diretoria de Saúde Ocupacional realiza visitas técnicas às unidades policiais fora da capital, incluindo Juiz de Fora, “voltadas à valorização profissional e à saúde integral dos servidores”.

A instituição ressalta divulgar nas redes oficiais as campanhas do “Janeiro Branco” e do “Setembro Amarelo”. “Todas essas iniciativas são amplamente difundidas entre os servidores lotados nas delegacias de Juiz de Fora”, afirma. Sobre recentes denúncias do Sindpol em relação à estrutura física das delegacias de Matias Barbosa, constantemente inundada com as fortes chuvas, e da Regional, em Santa Terezinha, a PC garante providências. “Encontra-se em fase de tratativas uma parceria com instituição pública de ensino e pesquisa, que irá viabilizar os projetos de engenharia.”

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