Biblioteca Hebraica preserva história da imigração judaica em Juiz de Fora

Na semana em que foi comemorado o Dia Nacional da Imigração Judaica no Brasil, Tribuna conversou com historiador, que falou sobre a chegada desta comunidade à cidade e sua história


Por Letícia Lapa, estagiária sob supervisão da editora Rafaela Carvalho

19/03/2023 às 07h00

Neste sábado, 18 de março, foi celebrado o Dia Nacional da Imigração Judaica no Brasil. A data comemora a inauguração, em 2002, da mais antiga sinagoga brasileira, a Kahal Zur Israel, instalada em Recife (PE). Em Juiz de Fora, a estimativa é de que existam cerca de 30 famílias de religião judaica, de acordo com Washington Francisco Londres, professor e diretor do acervo da Biblioteca Hebraica de Juiz de Fora, que trabalha diretamente com a trajetória da imigração judaica na cidade entre as transições dos séculos XIX e XX. A biblioteca é um ponto de preservação da história da imigração dos judeus para o Brasil e para o município.

À Tribuna, o professor e diretor do acervo explicou que as pessoas que seguem o judaísmo possuem diferentes costumes entre si, seja na língua falada, nos modos de vida ou nas origens. “É importante ressaltar que o conceito de comunidade não nos coloca em um bloco único de pensamento, tampouco de comportamento, e que o judaísmo, como religião, é uma várias atribuições e heranças da civilização hebraica. Mas não é a única coisa que possuímos, pois religiões, geralmente, impõem modos de vida, e o judaísmo descreve um”, explica Washington.

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Segundo ele, o conceito de comunidade judaica “faz referência a tudo aquilo que pode pertencer à coletividade judaica, como as línguas faladas pelo grupo, que vão desde o hebraico, passando pelo ladino, yidishe ou haketia”. Além disso, existe a questão das origens de cada um na “Diáspora”, que também os diferencia, seja ela sefardita, asquenazita ou tantas outras espalhadas pelo mundo. Ademais, o termo também se refere ao calendário judaico, regido pela Lua, que atualmente está no ano 5783, cujas datas têm início na criação do mundo.

Desta forma, existem historiadores e pesquisadores que buscam entender como ocorreu o processo de imigração dos judeus que residem em Juiz de Fora e suas repercussões ao longo das décadas. Os memorialistas Egon e Frida Wolff, por exemplo, estudaram os fenômenos migratórios judaicos em todo o Brasil, e registraram o relato da presença judaica em Juiz de Fora em 1861, no livro chamado “Judeus no Brasil Imperial”. Outro relato veio do autor juiz- forano Paulino de Oliveira, que também comenta, em sua obra intitulada “História de Juiz de Fora”, sobre a presença de uma colônia de mascates judeus-franceses na segunda metade do século XIX. Foram registradas as famílias Levy, Freres, Abraham e Cohen, vindos das regiões de Alsácia e Lorena, na França, e outros da antiga Prússia, como foi o caso das famílias Moretzsohn, Kaufmann e Lewenstein, todos estes pertencentes ao primeiro grande fluxo de judeus na cidade.

Trajetória remonta ao século XIX

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Famílias judaicas nos anos 50 (Foto: Acervo da Biblioteca Hebraica)

De acordo com o professor de História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), os primeiros grupos judaicos que residiam em Juiz de Fora, na segunda metade do século XIX, eram de famílias francesas e prussianas com um alto poder aquisitivo, ligadas a ofícios de exportação, joalheria e moda, como foi o caso do joalheiro Salomão Levy, que também trabalhava com a importação de moda francesa para cidade, onde dividia espaço com os Freres. Estas atividades conectaram Juiz de Fora a outras importantes cidades do circuito da moda europeia, como Rio de Janeiro e Paris.

Mais tarde, no século XX, na década de 1930, houve outro fluxo migratório de judeus para Juiz de Fora, oriundos principalmente de países da Europa central e oriental, como Polônia, Áustria, Letônia, Ucrânia, Romênia, Rússia e Moldávia, também por conta das tensões políticas e da ascensão do nazifascismo. A chegada desses imigrantes ajudou a consolidar a comunidade judaica na cidade, que cresceu e se desenvolveu ao longo dos anos. Nessa época, os imigrantes trabalhavam no comércio de tecidos e roupas, e, durante muitos anos, ajudando a compor parte do grupo de lojistas da Rua Marechal Deodoro, em amistosa parceria com os já instalados portugueses, sírios e libaneses.

Henrique e Margarida Zemel, no Miss Juiz de Fora de 1950 (Foto: Acervo da Biblioteca Hebraica)

“Não será muito difícil para os moradores mais antigos da cidade se recordarem da Peleteria Polo Norte, do casal Henrique e Margarida Zemel; da Casa Paulista, dos irmãos Luiz, Ari e Jacob Kojuck; da MagazinHollyday, de Abram Tucherman; da relojoaria de SzulimBer; da Casa Félix, do casal Félix e Anita; da Moda Elizabeth, do casal Jacob e Regina; da loja de materiais cirúrgicos do irmãos Jonas e Salomão Kocerginsky; e do sapateiro Schuwarten”, enumera o historiador.

Antes de as famílias se instalarem fixamente no comércio, eles iniciaram as suas vendas como “klientelchicks”, um termo em yidishe que define a categoria dos vendedores de porta em porta, os mascates. Algumas famílias que trabalhavam com as vendas ambulantes eram: Chojniak, Rotter, Aboab, Grinberg, Kosminsky e a de Luiz Goldberg. Com esta última, o historiador teve contato com o filho de Luiz, Jacob Pinheiro Goldberg, nascido em Juiz de Fora em 1933. Jacob deu uma entrevista a Washington informando que seu pai, em 1930, no começo da sua vida na cidade, fez um empréstimo de itens na loja dos Arbex para vender mercadorias em domicílio.

Segundo o historiador, Jacob Goldberg, atualmente, possui 90 anos e é advogado, escritor, assistente social. Ele é doutor em psicologia pela Universidade Mackenzie e professor convidado da University College London Medical School. Em 1998, ele escreveu na coluna de opinião da Folha de São Paulo sobre a sua experiência como judeu em Juiz de Fora. No texto, ele conta que estudava no Instituto Granbery, dirigido por missionários norte-americanos. “Depois da Sexta-feira da Paixão, os coleguinhas de classe resolveram me escalar para o Judas judeu que tinha traído Cristo. Tentaram descontar com pedaços de pau. Medroso, me refugiei no banheiro da escola, ouvindo os gritos: ‘Mata esse judeu que matou Jesus'”, conta ele, no trecho.

A partir de outras entrevistas com os descendentes dos imigrantes, Washington descobriu também interesses na vida política local, havendo até menção da criação de um jornal judaico na cidade chamado “O Volante”. Contudo, a comunidade entrou em declínio com a evasão dos jovens para distritos maiores, fazendo com que apenas poucos judeus jovens permanecessem na cidade.

Comunidade hoje

Famílias Londres, Zemel, Rotter, Vaz, Fogel e Benchimol comemoram o Ano Novo Judaico (Foto: Arquivo pessoal)

O historiador explica ainda que os descendentes dos imigrantes se casaram não somente com outros judeus, mas também com pessoas de outras religiões, ocasionando uma “interculturalização”. Entretanto, também há casos de famílias judaicas que casaram entre si, como foi o caso de algumas filhas dos Levys, casando com os Colucci, e dos Moretzsohns com Horta Barbosa, entre outros.

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O professor Washington evidencia que ainda existem na cidade alguns descendentes dos grupos antigos, do final do século XIX, mas que, muitas vezes, desconhecem a relação de suas famílias com a imigração judaica no Brasil. Atualmente, existem famílias judaicas que chegaram mais recentemente e que mantêm vínculos com a coletividade judaica brasileira, participando de programas e atividade de grupos juvenis e adultos.

Educação e cultura

Mas o principal ponto de encontro local da preservação da memória judaica é a Biblioteca Hebraica de Juiz de Fora, que funciona como um ponto de referência para o resgate da história e memória da imigração, buscando também conectar narrativas da região. “Hoje somos o segundo maior acervo de livros, utensílios e documentos do contexto judaico em Minas Gerais, ficando atrás apenas do Instituto Histórico Israelita Mineiro, sediado em Belo Horizonte, e este feito nos condecorou com o 17º Prêmio Amigos do Patrimônio em 2022, oferecido pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural”, comemora o diretor da biblioteca.

Por não existir uma sinagoga na cidade, as reuniões religiosas ocorrem em espaços reservados, principalmente durante eventos importantes do calendário religioso e civil do judaísmo. “Muitos de nós mantêm laços próximos com as comunidades de Petrópolis e Rio de Janeiro, que nos recebem nas grandes festas de Pessach, RoshHashaná e Yom Kipur (Páscoa, Ano Novo e Dia do Perdão, respectivamente)”, afirma Washington.

Quando questionado se existe algum tipo de preconceito ou intolerância religiosa para com os judeus na cidade, Washington diz que corre estranheza, somada a um desconhecimento sobre o que é o indivíduo judeu, o que é o judaísmo e o que representa o Estado de Israel. Assim, uma parte das missões da Biblioteca Hebraica é trabalhar em processos educativos sobre o Holocausto, o antissemitismo e o combate contra as fake news. Uma das ações é a visitação em escolas da cidade e região, onde o universo da comunidade judaica é apresentado de forma leve e didática, trabalhando para a diminuição das distâncias e combatendo os possíveis focos de preconceitos.

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