Uso sem controle compromete represas


Por Eduardo Valente

19/03/2017 às 07h00- Atualizada 23/10/2017 às 21h06

Quem pode usar as represas? Os cerca de 560 mil moradores de Juiz de Fora, conforme o censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), são os beneficiários e recebem água tratada em seus lares a partir da captação feita em um riacho, o Ribeirão Espírito Santo, e três mananciais, que são João Penido, São Pedro e Chapéu D’Uvas. Mas o mesmo recurso também é matéria-prima para diversão de uma parcela mínima, que faz uso de lanchas e jet skis, e práticas esportivas, como competições de natação. Leis municipais das décadas de 1970 e 1980 proíbem estas utilizações, mas as mesmas legislações, que estão ultrapassadas, carecem de regulamentação e, na prática, acabam ficando sem efeito. No caso mais recente, dezenas de pessoas entraram, ao mesmo tempo, no já assoreado manancial São Pedro para uma prova de triatlo, contribuindo para que a sujeira decantada no fundo do lago voltasse a se misturar com a água. Por esta razão, o evento, que não teve autorização da Cesama, mas ocorreu sem impedimento do poder público, foi condenado por especialistas ouvidos pela reportagem. Na semana em que se comemora o Dia Mundial da Água, na próxima quarta-feira, a Tribuna desperta a discussão sobre como este bem natural é armazenado e protegido em Juiz de Fora.

No entorno da Represa João Penido, há dezenas de construções próximas do manancial. Acessar o lago, que é a principal fonte de abastecimento de Juiz de Fora, é fácil (foto: Marcelo Ribeiro)
No entorno da Represa João Penido, há dezenas de construções próximas do manancial. Acessar o lago, que é a principal fonte de abastecimento de Juiz de Fora, é fácil (foto: Marcelo Ribeiro)

Acessar o lago da Represa João Penido, principal fonte de abastecimento de água da cidade, é fácil, principalmente se o interessado for o dono de uma das dezenas de moradias que fazem divisa com o manancial. Muitas delas, inclusive, são construções irregulares, erguidas em áreas de preservação permanente (APP), conforme afirma o promotor de Justiça de Defesa do Meio Ambiente de Juiz de Fora, Alex Santiago. “O recuo mínimo da APP é de 30 metros com relação ao curso d’água, levando em consideração a cota de ocupação máxima da represa. Algumas propriedades fazem pior que não respeitar a APP, elas estão, na prática, dentro da própria represa.” Segundo a Prefeitura, a legislação municipal prevê um recuo ainda maior, de 100 metros em João Penido.

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A Tribuna esteve no local no último fim de semana e observou grande movimentação de embarcações, sem qualquer impedimento das autoridades. Mais que isso, identificou dezenas de píeres que servem para o embarque e desembarque das lanchas. Estes píeres são ilegais, de acordo com o promotor. “Seriam possíveis somente em casos de utilidade pública ou de interesse social, como preconiza a lei federal 12.651 que instituiu o novo Código Florestal. Estão construindo em áreas de patrimônio público.” A situação se agrava com a possibilidade de acessar o lago por, pelo menos, dois estabelecimentos na região, conforme a reportagem apurou.

Leis municipais que proíbem uso da represa para fins de lazer carecem de regulamentação e ficam sem efeito (foto: Marcelo Ribeiro)
Leis municipais que proíbem uso da represa para fins de lazer carecem de regulamentação e ficam sem efeito (foto: Marcelo Ribeiro)

As secretarias de Meio Ambiente e Atividades Urbanas (SAU) garantiram, em nota, que realizam a fiscalização dos mananciais e do seu entorno juntamente com a Polícia Ambiental, “sendo lavrados autos de infração e embargo de construções. Posteriormente, os documentos fiscais são encaminhados ao Ministério Público para providências cabíveis”. Os mesmos autos, de acordo com a Prefeitura, são remetidos ao Conselho Municipal de Meio Ambiente.

Ação do Ministério público
Questionado pela reportagem sobre o que pode ser feito, o promotor garantiu que vai agir contra os abusos. “Vamos comprovar e instaurar inquérito civil. Estamos falando de aspectos civis e penais. Civil será a reparação do dano, como desfazer o píer e reparar a área degradada. Além disso, vamos cobrar indenização pelo tempo que o espaço foi utilizado. A adoção desta cobrança, pelo Ministério Público, é uma novidade, inclusive. Com relação aos aspectos penais, poderemos processar os responsáveis em crimes cujas penas podem variar de um a quatro anos. Os infratores deverão ser responsabilizados por destruir APP e impedir a regeneração da área.” Sobre o uso das embarcações, se comprometeu a estudar a legislação municipal e, se necessário for, cobrar das autoridades sua aplicabilidade.

Leis há quase 30 anos sem aplicação

Em Juiz de Fora, duas são as leis que citam o impedimento do uso da água da represa para outras finalidades senão o abastecimento público. A mais ampla é a 7.255/87. É citado, no artigo 1º, que, para a preservação permanente da Represa João Penido, ficam expressamente vedadas as seguintes atividades no reservatório: pesca; uso de barcos, canoas, lanchas e congêneres para fins de pesca ou prática esportiva; e natação. Além disso, o artigo 5º expande a regra para os demais mananciais do município. A única ressalva é relacionada ao direito adquirido, ou seja, proprietários das áreas que, em 1987, já usavam embarcações na represa.

Quase 30 anos após a publicação da lei, no entanto, ela ainda não foi regulamentada, o que deveria ter sido feito 30 dias após sancionada, segundo o artigo 6º da mesma lei. Em nota, a Secretaria de Meio Ambiente (SMA) informou que o entendimento com relação ao uso dos mananciais é o que prevê a legislação vigente.

Por causa desta ausência de regulamentação, a Polícia Militar do Meio Ambiente se diz impedida de agir. “A legislação proíbe, mas não cita quais medidas deveriam ser adotadas, se apreensão do bem ou multa do infrator. Então fazemos operações, dentro da disponibilidade do efetivo, com foco na pesca, porque a pessoa deve ter autorização do órgão competente, seguir uma série de regras e obedecer outras para não ser enquadrado em crime ambiental”, disse o tenente Emerson Cezano, comandante do 4º Pelotão de Meio Ambiente da PM. Ainda segundo ele, a habilitação dos condutores e documentação das embarcações são fiscalizadas pela Marinha. Mas segundo ele, “faz muito tempo” que não há conhecimento de uma abordagem nos mananciais da cidade. “A gente nota que há muitos jet skis nas represas, e o número está aumentando, assim como os abusos”, pontuou.

Qualidade da água
O doutor em geografia Cézar Henrique Barra, que coordena o curso de especialização em análise ambiental da UFJF, avalia mensalmente a qualidade da água na represa João Penido há sete anos. Segundo ele, colocar veículos motorizados na água é prejudicial porque o óleo dos combustíveis é um componente de difícil tratamento e remoção. “Estes mananciais são para abastecimento humano. Estamos falando de água para beber, que é o uso mais nobre que se pode fazer de uma represa. Temos poucas represas em áreas urbanas e deveríamos, portanto, preservar e proteger as que temos. O poder público faz vista grossa e empurra as responsabilidades entre eles. Enquanto isso, vão aumentando cada vez mais as ocupações nas margens, acompanhadas de construções de píeres. Desta forma, o impacto será cada vez maior.”

‘Fiscalização que gere consequências’

Impedir o uso da represa para outras finalidades senão o abastecimento humano é considerado um desafio para o diretor-presidente da Cesama, André Borges. Segundo ele, ideal seria que toda a represa fosse cercada para que o acesso de pessoas fosse totalmente restrito. “O problema é que João Penido é formada por terrenos particulares em seu entorno. Muitos estão, inclusive, dentro de APP (Área de Preservação Permanente). É exatamente esta ocupação que nos leva a esta situação atual. Nós precisamos ter uma fiscalização que gere consequências. A Secretaria de Atividades Urbanas (SAU) e a Secretaria do Meio Ambiente identificam construções onde não devem e embargam as obras, levando o caso ao Ministério Público. O que precisamos é que esta ação interrompa o processo de ocupação da APP, inclusive demolindo o que já está construído. Estamos falando de obras grandes, em áreas terraplanadas. Além de tudo, estão jogando terra para dentro da represa”, explicou, estimando que o número de embarcações só será reduzido quando houver o controle efetivo das margens.

Questionado se a regulamentação do uso recreativo seria o caminho, Borges prevê que a fiscalização seria dificultada. Isso porque, segundo ele, o corpo d’água é muito grande, e isso demandaria controle sete dias por semana e em horários estendidos durante o verão.

O presidente da Cesama diz que é difícil coibir o uso atualmente pela falta de regulamentação da lei de 1987. “Não foi definido quem e como iriam fiscalizar. Também não foi discutido se as pessoas com bem adquirido até a publicação da lei poderiam trocar de barco ao longo do anos.”

Atualmente um comitê da Prefeitura estuda a questão da bacia de João Penido com objetivo de regulamentar e definir quais as ocupações possíveis dentro da bacia de contribuição. Para André, uma nova lei restritiva, adequada à realidade de hoje, pode vir a ser um caminho apontado por este grupo.

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Natação prejudica qualidade da água em São Pedro

A Represa dos Ingleses, mais conhecida como manancial São Pedro, abastece moradores da Cidade Alta, representando 8% da população juiz-forana. A Cesama tem a outorga para a captação da água e, apesar de o lago ser bem de utilidade pública, conforme o decreto 7.183/2001, a propriedade é privada. Mesmo assim, isso não significa que o local possa ser usado para outras finalidades. Isso porque a lei 5.005/76 impede a natação nos mananciais e seus tributários, sem apontar distinção entre áreas públicas e privadas.

Há duas semanas, um evento de triatlo ocorreu na Cidade Alta, e uma das provas era a de nado, na represa. Fotos e vídeos publicados nas redes sociais mostram dezenas de pessoas entrando na água ao mesmo tempo, em atitude condenada pelo professor Cézar Barra, coordenador do curso de especialização em análise ambiental da UFJF. O diretor-presidente da Cesama, André Borges, informou que a companhia foi procurada pelos organizadores, e eles pediram autorização para o uso do manancial. “Nós não autorizados o evento, e só soube que ele foi realizado um dia depois, na segunda-feira.”

Cézar Barra explica que a represa está severamente assoreada em razão do acúmulo de sedimentos em seu fundo ao longo dos últimos 50 anos. “A agitação coloca para cima metais pesados e alguns componentes que são prejudiciais à nossa saúde. A própria Cesama não quer mexer neste material, tanto que não faz dragagem no lago, pois seria preciso interromper a captação daquela água por algum tempo”, disse, informando que o manancial tem, em média, profundidade de 1 metro. “Tem muita fossa na beira da represa onde os moradores do entorno despejam esgoto. Este líquido entra no córrego e cai na represa.” Agitar esta água pode resultar, segundo Barra, na proliferação de macrófitas, que são plantas aquáticas que se alimentam de material orgânico. De acordo com o diretor-presidente da Cesama, André Borges, toda a água entregue à população é tratada conforme as normas vigentes.

Outro risco, apontado por Barra, está na característica do solo neste fundo, formado por muito barro. Isso significa que, em algum acidente na área mais profunda, o nadador poderia prender o pé e se afogar.

Triatlo na represa
O evento esportivo, além de ter sido feito sem poder, conforme a legislação municipal, é questionável pelo fato de usar de um bem público para interesse privado. Cada participante da corrida pagou uma taxa de R$ 220. “É um absurdo o que estão fazendo. Quer dizer que qualquer pessoa pode entrar na represa e nadar?”, disse um morador da região que entrou em contato com a Tribuna, mas pediu para não ser identificado. De acordo com a Secretaria de Atividades Urbanas (SAU), nenhum protocolo foi registrado no órgão solicitando autorização para o evento.

O promotor de Meio Ambiente, Alex Santiago, disse que pretende instaurar inquérito civil público para apontar os responsáveis pela realização do evento. “Temos que fazer cumprir as leis relacionadas ao meio ambiente, e este é mais um caso. Eu lamento é que ainda exista a unanimidade enganadora. O discurso moderno é de que todos são a favor do meio ambiente, mas na prática prevalecem interesses econômicos e políticos.”

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