Maria Cysneiros é a primeira trans de JF a ter nome retificado em certidão
Juiz-forana conseguiu mudança, após a publicação do Provimento N.73/2018 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que entrou em vigência há 50 dias
Em Juiz de Fora, agosto é marcado pelos eventos culturais, sociais e artísticos voltados para o público LGBTI+, como a Semana Rainbow, o Rainbow Fest e o Miss Brasil Gay. Contudo, para a estudante Maria Cysneiros, 24 anos, o mês, a partir deste ano, representa muito mais do que isto. É o seu renascimento, a conquista de sua própria identidade. Maria é a primeira pessoa trans do município e, possivelmente do estado de Minas Gerais, a ter a retificação do nome e do gênero na certidão de nascimento, depois que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou o Provimento N.73/2018, que regulamenta a averbação da alteração do prenome e do sexo de transgêneros diretamente no Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN). A medida, em vigor há 50 dias, visa desburocratizar o processo, eliminando a obrigatoriedade da apresentação de laudos médicos e psicológicos, reduzindo o tempo de espera para obtenção do documento.
“Sempre fui Maria, sempre fui mulher. Só que isso não constava nos meus documentos. Agora, finalmente, sou conhecida legalmente como Maria Cysneiros da Costa Reis, do sexo feminino”, comemora, emocionada, a estudante de Arquitetura e Urbanismo e empresária júnior. Este, no entanto, não foi o primeiro ato protagonizado por ela. No final do ano passado, Maria foi primeira atleta mulher transgênero a participar de uma competição universitária no país – a Universitarius -, ao entrar em quadra para defender a equipe de vôlei do Centro de Ensino Superior (CES). “Muita gente pode virar e falar que eu sou uma garota de sorte, mas não me vejo como uma sortuda, e sim como uma pessoa que corre atrás do que é dela e que sabe esperar. Sou uma mulher do tempo. O tempo cura, sara, acalma… é o melhor remédio. Esse documento não é uma conquista só minha, mas de todos os homens e mulheres trans”, ressalta.
Este mesmo tempo, que antes era o grande inimigo e sinônimo de incerteza para muitas pessoas trans, hoje mudou de lado. Em menos de dois meses, Maria teve acesso ao documento retificado, diferente do que aconteceu com a militante trans, ativista LGBTI e integrante do Força Trans (grupo de apoio e acolhimento a pessoas trans, travestis e intersexuais), Bruna Leonardo. O processo, para ela, durou cinco anos e, mesmo assim, sem garantias de sucesso. “Antes era necessário entrar com um processo judicial individual e exigia-se uma série de documentos e declarações médicas, psiquiátricas e psicológicas. Eles pediam perícias e avaliações psicossociais. A gente ficava na mão de pessoas que não vivenciam a transexualidade, que poderiam dar esse parecer favorável ou não. Isto trazia uma série de constrangimentos e criava uma certa ansiedade”, relembra Bruna.
Para ela, a mudança nos trâmites trouxe mais autonomia e autoestima para os trans. “Mostra que cabe a nós externar quem somos. Quando o nome no nosso documento e o gênero não estão adequados ao que nós somos, você é jogado às margens da sociedade, como na escola, no estudo e no trabalho. Trata-se de uma conquista que está entrando para a história do nosso país, que está reconhecendo a identidade e o gênero da pessoa trans. Isto fará com que as pessoas nos olhem como seres humanos, cidadãos, com direitos”, pontua.
Conforme o Sindicato dos Oficiais de Registro Civil de Minas Gerais (Recivil), o código de normas da atividade registral no estado de Minas Gerais confere ao oficial o prazo de 15 dias para análise de documentos apresentados, no caso de necessidade de exigências a serem satisfeitas. “O prazo é muito mais célere que na via judicial”, afirma o advogado do Recivil, Felipe Mendonça, acrescentando que “trata-se de uma medida que visa a regulamentar a brilhante decisão do STF, que interpretou a Lei de Registros Públicos conforme o princípio da dignidade da pessoa humana e, portanto, à luz da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988”.
Discussão no STF
As discussões a despeito da retificação do prenome (os sobrenomes do indivíduo são mantidos) e do sexo de transgêneros diretamente no registro civil voltaram em fevereiro deste ano, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu retomar o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275, na qual se discutia a possibilidade de alteração de gênero no assento de registro civil de transexual sem a necessidade da realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo. No dia 1º de março, o Supremo emitiu parecer favorável. A ação foi ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) a fim de que fosse dada interpretação conforme a Constituição Federal ao artigo 58 da Lei 6.015/1973, que dispõe sobre os registros públicos.
Em 29 de junho, o CNJ publicou o Provimento N.73, que regulamentou o processo e uniformizou o procedimento em nível nacional. Desde então, os ofícios de Registro Civil das Pessoas Naturais de todo o país são obrigados a atender pedidos de alteração de nome e de sexo de pessoas transexuais, independente de autorização judicial, cirurgia de transgenitalização ou tratamento hormonal, mediante a apresentação dos documentos (ver arte) por parte do requerente. Juiz de Fora possui seis cartórios de registro civil. No Cartório Cobucci há, pelo menos, outros sete processos em andamento. Já no Cartório Vilella e no Cartório de Benfica, além dos ofícios localizados nos distritos de Paula Lima, Torreões e Sarandira, houve tímida procura pelo processo até o fechamento desta reportagem.
Renascendo um mês antes do aniversário
Para muitas pessoas, a certidão de nascimento nada mais é do que um papel que fica arquivado em casa e é solicitado em casos bem específicos. Geralmente, fazemos uso da nossa carteira de identidade (RG) ou da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) para nos identificarmos. Mas para Maria Cysneiros, ter em mãos aquele papel timbrado é prova de que, perto de completar 25 anos, ela não só existe, como está mais viva e segura de si do que nunca.
Com a infância e a adolescência marcadas por centenas de episódios de bullying e de agressões, tanto físicas quanto verbais, ao ingressar no ensino superior, Maria questionou a mãe sobre seu futuro. “Um dia estávamos no carro, ela ia me deixar na faculdade, e indaguei: mãe, as pessoas me aceitam na minha família, mas como será fora dela? Como meus colegas de faculdade e professores vão me ver? Meu medo era precisar de assistência e ter a mesma reação que tive na escola, onde ninguém me estendeu a mão. Quando fui falar com a coordenadora do curso sobre utilizar meu nome social, para a minha surpresa, ela fez tudo o que era possível. Se reuniu com os professores e pediu pela mudança do nome na chamada e também para o uso do banheiro feminino. Todos abraçaram a causa, inclusive os alunos.”
Já que os ventos passaram a soprar a seu favor, Maria passou a se sentir mais forte, mais plena. “Hoje sou quem eu realmente sou e as pessoas gostam da pessoa que eu sou, talvez pelo fato de eu ter me encontrado”, comenta. A mãe, sua grande aliada e amiga, foi quem deu a notícia sobre a decisão do STF a respeito da mudança do nome e gênero no registro. “Há uns meses atrás, quando saiu a notícia, achei que ela tinha ficado louca. Foi então que eu assisti ao noticiário e não tive mais dúvidas.” Assim que o dia amanheceu, Maria começou a correr atrás das informações e procurou o cartório, mas foi informada que a medida ainda não tinha sido implementada. “Eles me pediram calma, mas a minha calma foi ligar pra lá toda a semana. Até que numa dessas ligações me disseram que já estava fazendo a mudança. No dia seguinte fui lá e fui informada sobre o trâmite. Em 24 horas dei conta de obter todos os documentos necessários, já que boa parte deles pude pegar na internet.”
No último dia 15, um mês antes do seu aniversário, o Cartório entregou a ela, em mãos, a prova concreta da certeza que sempre teve em seu íntimo: sua certidão. “É um a alegria, parece que estou nascendo de novo. É um novo começo. Por mais que o caminho seja árduo e tentem te puxar pra trás, falo para as pessoas serem elas mesmas, serem felizes, buscar o que realmente traz felicidade a ela e que não interfira no livre arbítrio de outra pessoa. As coisas certas acontecem na hora certa e sem ter pressa. O STF poderia ter aprovamos antes? Poderia, mas foi agora. Por isso, meu muito obrigada”, finaliza Maria, que já utilizou a certidão para retificar outros documentos, como identidade, CPF e título de eleitor.
Orientações para a alteração de nome e gênero a partir do Provimento N.78/2018 do CNJ
Documentos que devem ser apresentados nos cartórios de registro civil:
– Certidão de nascimento atualizada
– Certidão de casamento atualizada, se for o caso
– Cópia do registro geral de identidade (RG)
– Cópia da identificação civil nacional (ICN), se for o caso
– Cópia do passaporte brasileiro, se for o caso
– Cópia do cadastro de pessoa física (CPF) no Ministério da Fazenda
– Cópia do título de eleitor
– Cópia da carteira de identidade social, se for o caso
– Comprovante de endereço
– Certidão do distribuidor cível do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal)
– Certidão do distribuidor criminal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal)
– Certidão de execução criminal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal)
– Certidão dos tabelionatos de protestos do local de residência dos últimos cinco anos
– Certidão da Justiça Eleitoral do local de residência dos últimos cinco anos
– Certidão da Justiça do Trabalho do local de residência dos últimos cinco anos
– Certidão da Justiça Militar, se for o caso
Documentos facultativos:
– Laudo médico que ateste a transexualidade/travestilidade
– Parecer psicológico que ateste a transexualidade/travestilidade
– Laudo médico que ateste a realização de cirurgia de redesignação de sexo
Como funciona o processo:
– O procedimento é iniciado com um requerimento da pessoa transgênero ao solicitar a alteração do gênero e do prenome (preservando os sobrenomes de família)
– O requerimento é formalizado com os documentos e as certidões exigidos. Nota: a maioria das certidões solicitadas podem ser obtidas através da internet
– O Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais, após minuciosa análise, autua os documentos e averba a alteração do prenome e sexo no registro de nascimento do requerente
– Na sequência, é expedida uma certidão já constando a alteração
Atenção:
– A pessoa requerente deverá declarar a inexistência de processo judicial que tenha por objeto a alteração pretendida. A opção pela via administrativa, na hipótese de tramitação anterior de processo judicial cujo objeto tenha sido a alteração pretendida, será condicionada à comprovação de arquivamento do feito judicial.
Fonte: Recivil